33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 204
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- Capítulo 204 - Quadragésima Quarta Página do Diário
Quadragésima Quarta Página do Diário
Três dias, esse é o tempo necessário para ir do extremo norte do Reino do Leste até a Montanha Solitária. Só paramos umas poucas vezes para trocar os cavalos em determinadas cidades e durante as noites para que os meus dois acompanhantes pudessem descansar. Até a maioria das refeições fizemos em movimento, na maioria das vezes carne seca e frutas.
Foi tempo o suficiente para praticar meditação e colocar os pensamentos no lugar. Normalmente as pessoas preferem praticar meditação em ambientes calmos, isolados do restante do mundo, mas eu sou sempre uma exceção a seja lá qual for a regra. Praticar em cima de uma carroça em movimento sob o sol quente ajudaria a manter a calma, nem que apenas um pouco, durante as lutas que estavam por vir.
E eu sentia que não seriam poucas.
Conforme nos aproximávamos da sede do poder no reino, a paisagem ficava cada vez menos familiar. Não que eu houvesse esquecido como era a região, mas que tudo estava muito diferente do cenário que encheu meus olhos de felicidade na primeira vez que eu vi.
Os campos agrícolas que se estendiam pela planície, antes sempre cheios de vida e alimentos sendo plantados e colhidos, agora pareciam uma amostra do inferno. Se bem que eu não acreditava muito em pós vida, mas aquilo já era o suficiente para duvidar da minha descrença.
Os grãos não foram devidamente colhidos, deixando as plantas tombarem sobre o próprio peso e morrerem. Muitas ferramentas estavam largadas pelos campos, como se seus donos tivessem sido obrigados a fugir no meio do trabalho. E as pessoas… Não havia pessoas trabalhando como eu sempre vi.
Os poucos seres humanos que eu consegui ver, procuravam se esconder conforme passávamos. Seus rostos, antes cheio de vida e sorrisos, agora demonstravam tristeza e desesperança em meio ao aspecto de desnutrição.
Não havia crianças brincando nas frentes das casas, nem carroças transitando além da nossa, ninguém cantava músicas típicas da época de colheita, muito comum de se ouvir nos campos de grão e pomares nessa época enquanto homens e mulheres davam seu melhor para alimentar o reino.
Aquilo tudo foi causado por Yobaa! Eu senti um ódio aumentar dentro de mim a cada passo que os cavalos davam enquanto puxavam a carroça. Não podia deixar maus sentimentos me dominarem, então respirei fundo e comecei a liberar a raiva de dentro de mim na forma de névoa escura.
Se meu poder vinha do meu ódio, era só tirar meu ódio do meu coração. Isso na teoria daria certo, mas era hora de testar na prática. A primeira leva de Rancor foi moldada em um par de manoplas, e isso ajudou a esfriar a minha cabeça.
Não tive certeza de que funcionava ou era só um efeito placebo, mas por ora serviu.
Vi que muito à frente, na entrada da cidadela que circundava a Montanha Solitária, havia um grupo de soldados fechando a estrada. Eles usavam armaduras completas de cor escura, com detalhes dourados, além de longas espadas de duas mãos presas ao lado de seus corpos.
Eram a tropa de cavalaria do Leste, leais guerreiros que juraram servir ao reino até suas mortes. O problema é que eles eram liderados por Yobaa, e seu juramento foi ao reino e não a Miraa, assim era fácil eles acharem que estavam fazendo o certo para protegerem o Leste.
De certa forma, eu não tirava a razão deles. Era uma questão de ponto de vista, o único problema era que estava totalmente errado, deturpado e contrário ao que Miraa queria. Entre as opiniões de Miraa ou Yobaa, eu confiava cem por cento na minha mãe adotiva.
— Parem aqui! — disse aos dois que estavam comigo — Podem voltar, eu vou sozinho daqui pra frente.
— Você tem certeza? — O condutor da carroça pareceu preocupado comigo, mas parou o veículo e começou a mudar de direção para voltar no mesmo instante.
— Eu descansei o suficiente, está na hora de esticar as pernas um pouco! — Pulei da carroça e agradeci pela carona.
Quando Gruder conseguiu transporte para mim, disse que Adênia cuidaria do pagamento, eu deveria apenas voltar ao centro do reino para resolver o problema causado por Yobaa. Fiquei grato aos que me ajudaram, depois eu encontraria uma forma de recompensar a todos.
Por enquanto, eu deveria me concentrar em chegar à Montanha Solitária matando o mínimo de pessoas. Normalmente eu não ligava o suficiente para evitar mortes, mas agora eram pessoas do Leste, que nasceram e treinaram a vida inteira no único lugar desse mundo que pude chamar de lar.
Eles eram, de certa forma, como irmãos adotivos. Aprendi amar e respeitar todas as pessoas do Leste, não deixaria que ninguém as machucassem, nem mesmo se fosse um dos filhos de Miraa. Principalmente o mais detestável de nós onze.
Eu nunca esqueci do dia que Yobaa me derrubou, pisou em minha cabeça e ficou rindo. Se bem que segundos depois eu quase o matei. Não pude me impedir de sorrir enquanto lembrava que fui a pessoa que mais chegou perto de o matar, e estávamos perto de nos reencontrarmos.
Torci para que ele estivesse tão ansioso quanto eu.
— Parado! — Uma voz abafada me fez sair de maus pensamentos — Não dê um passo sequer ou seremos obrigados a usar a força!
Era um dos soldados de Yobaa, que fechavam a estrada. Não fui capaz de reconhecer de primeira devido ao rosto estar escondido e a voz abafada pelo elmo fechado. Mas tive um palpite de quem poderia ser.
— Matoo! — exclamei — Quanto tempo cara? Não está me reconhecendo? Sou eu…
— Eu sei quem você é! — Ele sacou a espada — Todos nós sabemos quem é Deco do Leste e como trouxe a guerra ao nosso reino!
— Ah! Beleza… — Respirei fundo e mantive a calma — Por um acaso o Yobaa está por aí? Preciso bater um papo com ele…
— É justamente por isso que estamos aqui, — ele respondeu em um tom mais agressivo ainda — Yobaa nos deu a ordem de não deixar que você passasse enquanto ele resolve as coisas com a Senhora do Leste.
— E com resolver as coisas, você quer dizer o quê? Que eles estão batendo papo e tomando chá, ou que ele vai tentar matar ela?
— Não tenho que te dizer nada. — Matoo me apontou a espada.
Não sei se você que lê está acostumado com algumas regras de etiqueta espadachim do Leste, mas quando alguém aponta uma espada desembainhada para outra pessoa, significa que está o convidando para uma brincadeira chamada “perde quem morrer primeiro”.
Mais uma vez respirei fundo e mantive a calma, mas senti o rancor deixando o meu corpo.
— Olha, Matoo… Se Yobaa mandou que vocês me mantivessem aqui fora, a forma mais segura é conversando comigo, sacou? — falei lentamente enquanto caminhava em direção a ele.
Matoo não respondeu, apenas levantou a espada com as duas mãos, um movimento de preparação de ataque direto. Se aquilo me acertasse diretamente, poderia me partir ao meio como se eu fosse de manteiga.
Mas eu não era.
Liberei todo o Rancor de uma vez, formando uma armadura de escuridão ao redor do meu corpo. Senti meu coração mais leve e ao mesmo tempo ouvi o som claro de uma lâmina se chocando contra minha armadura de Rancor.
Era minha vez de revidar.
Como já havia decidido que não mataria nenhum deles, criei uma espada duas vezes maior que a de Matoo, mas sem lâmina. Mesmo com a armadura, seria difícil ele não ser fatiado por uma lâmina de Rancor. Então fiz um movimento de baixo para cima com a espada sem fio, arremessando meu oponente uma dezena de metros ao ar.
Desfazendo minha armadura, usei a névoa escura para criar meia centena de armas, desta vez afiadas, apontado cada uma para um dos soldados de Yobaa. Sorri gentilmente, ou pelo menos tentei, e disse:
— Com ele eu peguei leve, mas não tenho tempo de bater em todos vocês sem matar, vão me deixar passar ou preferem ir de espetinho?
Por incrível que possa parecer, todos eles abaixaram as armas.
Acho que no fundo nenhum deles queria realmente arriscar a vida em uma luta contra mim enquanto tinha coisa bem mais importante em jogo. Então resolvi tentar ser gentil, algo que eu não estava muito acostumado. Diminuí o tom maligno da voz e disse calmamente:
— Desculpem o inconveniente, mas eu prometo que vou trazer as coisas de volta ao normal…