33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 210
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Quinquagésima Página do Diário
Estranhamente, a expressão de Miraa esboçava um certo alívio, como se a morte para lá de esquisita que Yobaa sofrera minutos antes fosse algo que a deixasse menos preocupada. Imaginei que ela nos contaria o que estava acontecendo, então sentei e esperei o retorno dos meus irmãos em silêncio.
Shiduu estava mais preocupada, ela não saiu nem por um segundo do lado de Miraa, sempre perguntando se nossa mãe estava bem, e de vez em quando dava uma olhada sorrateira para o trono de pedra, onde ainda permanecia um pouco do pó de pedra, o que restara de Yobaa.
Não demorou muito para que Renee chegasse de volta acompanhado pelos outros filhos de Miraa. Percebi muitos olhares curiosos passarem por mim e vasculharem o grande salão, possivelmente à procura de Yobaa.
— Sentem-se novamente! — Miraa falou, sem dirigir o olhar a nenhum de nós em específico — Há uma longa história que preciso contar a vocês. Não garanto que ela possa ser totalmente verdadeira, mas foi o que ouvi de meu mestre…
— Cadê o Yobaa? — Surii cochichou ao meu ouvido.
— Meio que morreu… — respondi.
— Como assim “meio”?
— A gente trocou uns socos, eu joguei ele no trono e o cara virou pedra. Depois virou poeira…
— Você matou ele? — Surii quase falou alto.
— Eu não matei, apenas joguei ele no trono, não faço ideia do que aconteceu depois…
— VOCÊS DOIS AÍ! — Miraa apontou para Surii e eu — Também é importante que prestem atenção no que vou falar…
Ela parecia muito cansada, como se estivesse fazendo um esforço tremendo apenas para continuar ali. Achei melhor não a cansar ainda mais, e me afastei de Surii.
— Nem sempre existiu magia nesse mundo, — Miraa começou a falar, — mas havia um guardião. Esse guardião tinha a missão de cuidar desse mundo, zelar pela sua segurança e tudo mais. No entanto, ele era preguiçoso, e por causa disso preferiu deixar que os humanos usassem sua magia para cuidar de si mesmos, e criou os deuses ao escolher humanos para herdarem partes específicas de seu poder.
— Aos reis, ele deu tronos e coroas para guiarem as pessoas no caminho correto. — Miraa continuou — E no menor dos reinos, criou a sala da verdade, onde os monarcas se reuniam de tempos em tempos para decidir o destino do mundo. E quando os deuses se revoltaram contra o guardião, prendendo ele em um estado metafísico entre o mundo real e a existência superior, os reis começaram a cobiçar o poder uns dos outros.
— O Reino de Prata, o mais importante desde sempre, começou a questionar o motivo pelo qual a sala da verdade, a origem de toda a magia desse mundo, havia sido entregue para o mais fraco dos sete reinos. Isso fez com que os outros reinos também se achassem no direito de questionar isso. Assim, depois da grande guerra dos deuses, houve a primeira guerra dos reinos, que dizimou quase todo o Reino de Pedra.
— Justamente nessa época um homem estranho apareceu nesse mundo. Ele usava sua inteligência para resolver conflitos sem derramamento de sangue, e conseguia criar as mais diversas e inesperadas estratégias. Seu maior feito foi transportar praticamente todo o Reino de Pedra para essa planície onde se encontra a Montanha Solitária.
— O Rei, reconhecendo o quanto ele fora importante, deu-lhe o trono e a coroa, e todo o povo o saudou como primeiro Rei do Leste. Mas ele não aceitou, com a garantia de que a única pessoa que poderia se sentar nesse trono — Miraa olhou para o trono em pedra talhada — ainda estaria por vir. Ele então governou o Leste por muitos anos, criando todo o sistema que hoje temos e a complexa estrutura de leis e cultura do nosso povo.
— Quarenta anos atrás, quando fui escolhida para ser a senhora do Leste, perguntei ao meu mestre o porquê de o símbolo do poder do Leste ser uma montanha de pedras entulhadas e não um castelo, como nos demais reinos. Ele me respondeu que isso era uma mensagem para o verdadeiro herdeiro do trono, que ele deveria saber o que significa a “Montanha Solitária” e o “Rei sob a Montanha”. E então ele me contou o nome secreto da montanha, aquele que somente os Senhores do Leste conhecem…
— Érebor! — falei, como se a palavra saísse da minha boca sem que eu tivesse controle — E o seu mestre foi o Haroldo, certo?
Miraa me lançou um olhar e um sorriso triste.
— Sim, ele preparou tudo isso para você. Por isso o trono não aceita outro que não seja o herdeiro de Haroldo. Mesmo assim, depois de quatrocentos anos vazio, o trono acaba atraindo o desejo de que alguém se sente nele. É parte da magia original que há nele, por isso Yobaa enlouqueceu e, ao sentar-se, foi reduzido a pó…
— E se o Deco sentar ficará tudo bem, certo? — Tibee perguntou.
— Esse é o problema, — Miraa continuou com o mesmo tom sério — mesmo que ele tenha adivinhado o nome da montanha, não há garantias de que ele seja o herdeiro.
— Mas eu lembrei! — falei entusiasmado — Lembrei de tudo que aconteceu antes de eu vir para esse mundo! Haroldo é o meu pai, e ele costumava ler para mim, antes de dormir, um livro sobre anãos e uma montanha solitária! Por isso que eu sempre me senti em casa aqui, é igual na história que meu pai lia! Um reino sob uma montanha, um trono vazio…
— Você lembrou de tudo mesmo? — Shiduu questionou.
— Sim! Eu estava justamente na sala da verdade, e Haroldo havia deixado pistas sobre o meu passado. Isso despertou minhas memórias! Lembrei da minha família biológica: Meu pai, Haroldo; minha mãe, Sônia; e minha irmã mais velha, Maria Júlia.
— Isso ainda não prova nada! — Miraa interrompeu o que eu estava falando — Mesmo que tudo isso faça sentido e você seja o herdeiro, já escolhi Shiduu para ser minha sucessora, e você ainda não “derrotou o dragão”.
— Não lembro de ter dito que no livro havia um dragão… — Falei, incrédulo.
— Fui aprendiz de Haroldo por uma década. Acha que ele nunca nos contou a história preferida dele? O Hobitt, certo? Então derrote o dragão metafórico e seja o rei sob a montanha!
— Havia mais alguém que era aprendiz de Haroldo? — Baruu perguntou — No jeito que falou, parecia haver ao menos outra pessoa…
— Sim. — Miraa suspirou — Long-Hua, ele e eu fomos alunos do mesmo mestre por dez anos…
Aquela última frase me deu uma ideia. Talvez esse tal Long-Hua pudesse me ajudar a encontrar o dragão metafórico que Miraa tinha citado. De toda forma, a cada segredo revelado, mais mistérios surgiam. Meu próximo passo seria ir atrás de Long-Hua, depois, buscaria Haroldo e o faria explicar como ele viveu por quatrocentos anos, e por que me deixou viver igual a um cachorro desde que cheguei nesse mundo de merda.
Mas eu deveria fazer as coisas com calma, primeiro usaria a grande rede de informação a meu serviço para consertar os problemas que Yobaa causou. Só depois de deixar o Reino do Leste nos eixos é que eu poderia pensar em mim mesmo. Não conseguiria dormir direito enquanto soubesse de pessoas inocentes passando fome, nem mesmo que eu tivesse que dar a eles a porção que eu, na posição de Filho do Leste, tinha direto de comer.
Pelo menos para isso servia todo o sofrimento que passei. Eu não conseguia ignorar a dor de pessoas enfrentando a mesma amargura que eu passei.