33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 221
Cartas perdidas – parte 1
DE ANNE PARA ZITA
Oi amiga.
Faz bastante tempo que nos vimos, não é? Queria que nesse mundo existisse celular ou internet para poder nos comunicar com mais facilidade.
Eu queria que tivesse pelo menos energia elétrica e ar-condicionado. Mas isso você já sabe pelo tempo que me ouviu reclamar, quando moramos no Castelo de Prata.
Então…
O que realmente me faz escrever para você é um desabafo que preciso fazer. E também confidenciar um segredo.
Para começar, você precisa entender que eu sei que tem uma quedinha por aquele garoto, André. Talvez seja a única que vai com a cara dele, até.
Pessoalmente, eu não tenho nenhum problema com ele, até já tive quando estudamos na mesma escola, mas ele não lembra mais de mim, sem contar que agora somos heróis e temos deveres para com os reinos, e o André está causando muitos problemas para o Reino de Prata.
Por mais que eu não seja uma heroína do Reino de Prata, o acordo com a Torre dos Sábios, onde fui lotada, me colocou de frente ao problema.
Então, indo ao assunto: você já soube que seu amorzinho está libertando os escravos por onde passa?
Eu não sou a favor da escravidão, mas é assim que as coisas funcionam nesse mundo. Se não existirem escravos, quem vai realizar os trabalhos para que a economia funcione?
Ou pelo menos era a forma como eu pensava antes do que aconteceu. E posso te garantir que foi a coisa mais louca que já me aconteceu em toda a vida. Não tem como contar só a forma resumida do babado, então te prepara.
Lembra da Iffy? Aquela menina que passou uns dias com a gente no castelo logo que chegamos. Eu mantive o contato com ela por esse tempo todo, e acabamos construindo uma amizade sólida, e sempre que tenho uma folga vou visitá-la.
Ela é a única filha do Barão de Utab, que se recusou a casar novamente depois que a mãe dela morreu, mas isso não é importante para a história. O que interessa é que sempre fui bem recebida na mansão da família e o Barão usava as minhas visitas como forma de ganhar apoio político.
Ambos ganhávamos.
Aí juntou de eu estar lá em Utab de boas justamente quando o André apareceu lá causando as dele. Eu havia acabado de presenteá-la com um colar de ouro e recebemos a notícia de que um filho de algum comerciante importante do Reino do Norte estava visitando a cidade.
Como parte da cortesia, Iffy foi cumprimentar o visitante. Algo que eu acho desnecessário, mas é parte dos procedimentos da nobreza. E quando a gente chega lá, está o André.
Tu me acredita que ele se passou por filho de um nobre importante para entrar sorrateiro em Utab? Eu estava ali também com a missão de prendê-lo, mas quando o vi, preferi garantir a proteção de Iffy. Imediatamente a puxei pelo braço e tirei dali, levando ela para um local seguro.
Depois fui chamar os guardas do reino que haviam sido despachados justamente para capturar o André. Foi de uma ousadia absurda, mas invadimos o escritório do Barão e iniciamos uma luta ali mesmo.
Foi uma luta bem equilibrada, e se não estivéssemos nos segurando para capturar ele com vida, garanto que teríamos ganhado. Por mais que ele deva dizer por aí que foi o contrário.
O problema é que ninguém nos avisou que ele tinha aquele poder absurdo de criar armas ou se proteger com uma armadura de fumaça preta praticamente indestrutível.
Custou uma noite quase inteira de luta e a vida de meia dúzia de guardas para conseguir pressionar o André, mas ele mostrou uma agilidade impressionante, bem diferente do garotinho assustado que conheci no passado.
Contudo, o que me surpreendeu foi que ele teve a oportunidade de me matar, mas recuou. E quando a mansão desabou, ele usou o resto do poder para salvar a Iffy, enquanto eu ficava apenas olhando sem reação
Naquele momento eu me odiei mais do que o odiava, mas ainda não queria admitir. Foi ali que descobri que mesmo sendo uma heroína escolhida por um deus, ainda sou fraca e incapaz de salvar quem amo.
Ao mesmo tempo lembrei do motivo que odiei André desde o nosso mundo original: No fundo eu era apaixonada pela irmã dele, mas por ser incapaz de admitir, o machucava como forma de provocar ela.
Estava destruída física e mentalmente, suja de terra, sangue e urina, carregando a derrota iminente e envergonhada por ter sido completamente humilhada mais uma vez na frente da pessoa que amo, só me restou perseguir ele.
Mas foi aí que tudo mudou: Iffy se colocou entre mim e ele, dizendo que me amava. Consegue acreditar? Acha que me sobrou alguma reação depois disso que não fosse cair de joelhos e chorar?
Iffy me abraçou e disse que ficaria tudo bem, o que eu temo que tenha sido apenas para me acalmar. Ela perdeu a casa e sua família acabara de sofrer um prejuízo incalculável, não ia ficar tudo bem.
Tenho certeza que as coisas vão ficar muito piores daqui para a frente, principalmente porque o pai dela não gostou muito de saber que a única filha gosta de menina.
Já faz algumas semanas que tudo isso aconteceu, e agora nós duas estamos morando em uma casa de campo da família dela. E durante esse tempo pude treinar e refletir sobre a vida sem ninguém para me dizer o que fazer.
Consegui compreender, em partes, o que o André estava pensando. Percebi que ele nunca atacou ninguém indefeso ou desarmado. Pelo contrário, fomos nós que o atacamos.
E ele tinha razão em querer proteger as pessoas mais indefesas, já que ninguém o protegeu desde que chegou nesse mundo.
Somente quando me senti mais desamparada é que pude me colocar no lugar dele e descobrir que no fundo somos mais parecidos do que eu imaginava.
Já não sei quantas vezes chorei pensando no quanto sou burra, imatura e egoísta. Só queria a felicidade de Iffy e também a minha própria, mas não pensei nas pessoas ao redor.
Mesmo assim possuía o orgulho de bater no peito e dizer “sou uma heroína”. Belos heróis nós somos, todos nós.
Então decidi que vou ajudar Iffy a reconstruir a região de Utab. Ela é bastante respeitada pela população, eu darei apoio com os meus poderes e influência política no Reino de Prata e também na Torre dos Sábios.
Farei o meu melhor.
Enfim, era isso que eu precisava dizer. Me sentia angustiada, precisando desabafar sobre como eu me sinto. E você é, depois da Iffy, a pessoa em quem mais confio.
Só espero que me entenda do jeito que sou, pois eu mesma ainda estou buscando me compreender. E da mesma forma que sei que você ama o André, eu amo a Iffy.
E só quero uma chance de ser feliz ao lado de quem amo.
Da sua melhor amiga, Anne.