33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 225
Cartas perdidas – parte 5
DE LONG-HUA PARA MIRAA
Olá, velha amiga.
Sei que não gosta de ser chamada de velha, mas é assim que estamos. E pensar que faz quarenta anos que te conheci, como o tempo foi injusto conosco. Eu, um órfão do Sul que fui resgatado por um homem lendário, e você, a filha daquele homem que apareceu após trezentos e sessenta anos como se tivesse viajado no tempo.
Ou talvez no espaço.
Pensar que nós dois já fomos duas crianças assustadas em treinamento com Haroldo em meio às viagens malucas daquele cara pelo continente me faz pensar o quanto tivemos sorte de ter um ao outro em nossas aventuras.
E cá estamos. Dois líderes dos seus respectivos Reinos, ambos temidos e respeitados, sem que os reis engomados sequer sonhem o quão próximos já fomos. Às vezes fico rindo sozinho quando lembro que um dia achamos que poderíamos ser um casal.
Não que as noites que dormimos juntos ou passamos acordados, não tenham valor para mim. Mas concordamos em silêncio que o mundo precisava de nós em locais diferentes, cuidando de metade do continente para que não matassem a outra metade, nem se matassem.
Sempre fui o mais saudosista dos dois, mas acredito que você não esqueceu de tudo que passamos. Não é à toa que adotou duas crianças do meu povo dentre os seus filhos.
E por falar em filhos, precisava mesmo de onze crianças para disputar a sucessão do Reino do Leste? Vai ter briga no futuro, hein. Espero que tenha os ensinado a compartilhar.
Por falar nos seus filhos, vi o mais novo esses dias. Deco, não é? Um nome engraçado, considerando os diferentes significados nas línguas antigas: No oeste, Desnutrido; no Leste, a cor da alvorada.
Um garoto tão dualista quanto os nomes que carrega. André e Deco; tem a aparência de um selvagem, com a educação de um lorde; o físico de um mendigo com a habilidade de um guerreiro; e mesmo com o jeito de lobo solitário, tem a capacidade de atrair as pessoas ao redor de si.
Sem contar aqueles olhos afiados, que lembram demais o jeito que o nosso mestre, seu pai, me olhava quando estava nos treinando. Como se se conseguisse ver coisas que os olhos humanos normais não fossem capazes.
Quais as chances dele ser o irmão mais novo que você tanto falava a respeito? Mesmo considerando a diferença de idade, não é de descartar a possibilidade, já que seu pai chegou aqui trezentos e sessenta anos antes de você, e só está vivo por causa da jóia da imortalidade.
Mas acredito que você já sabe de tudo isso, inclusive, deve ter certeza se ele é ou não seu irmão. E se ainda o trata como filho é para proteção, só não sei se para a sua ou a dele.
Mais uma vez eu não consigo saber o que se passa na sua cabeça.
Foi uma boa jogada mandar logo ele para uma negociação de não agressão. Qualquer outro faria parecer que você está com medo ou com intenções bélicas. Entretanto, o Deco consegue passar uma sensação amistosa enquanto impõe respeito.
Isso foi importante para causar uma boa impressão nos outros, quanto a mim já havia o visto em ação quando causou uma certa confusão no Reino de Prata e roubou a Semente da Floresta.
Posso garantir que ele subiu muito no meu conceito por tamanha coragem.
Enfim, falando de assuntos adultos agora. A guerra que tanto postergamos está na nossa porta, e não tem muito o que fazer para impedir. Quero então saber se vamos manter o pacto de isolamento de nações, fazendo parecer que não somos aliados ou posso formalizar a reunião com o seu filho.
Por mim manteremos a velha amizade e o estilo de falso isolamento enquanto fazemos o controle da paz do nosso lado do continente por debaixo dos panos. Você sabe que eu gosto de manter as coisas como estão quando o time está ganhando.
De qualquer forma, o exército do Sul está preparado e com as armas afiadas, temos mantimento para três anos de guerra e os cidadãos estão prontos para qualquer possibilidade de invasão. Não somos do tipo que foge e se esconde, então se alguém quiser vencer vai precisa matar cada pessoa.
Aquela história, sabe? Lutaremos enquanto cada homem, mulher e criança tiver forças. Não tem muito o que fazer, é a nossa cultura, somos sobreviventes. Dos sete reinos, somos os que guardam a memória da última guerra dos deuses.
Tenho medo que nossos filhos e netos tenham mais essa história triste para contar a seus filhos e netos. Não é esse o legado que desejo deixar para as gerações futuras. Então, se houver uma chance, por mínima que seja, de acabar com essa baboseira o mais rápido possível, farei.
Não me importo se é uma guerra profética em que os heróis estão destinados a salvar o mundo, não quero sacrificar meu povo. Estamos dispostos a lutar para proteger nossa terra, mas não a sermos sacrificados em problemas de deuses que nunca fizeram nada por nós.
Espero que compreenda.
Long-Hua.
Representante do Povo do Deserto.