33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 227
Chá da Tarde
Foi a primeira vez que a maioria das pessoas ali viu André demonstrar um sentimento que poderia ser considerado fraqueza. Não que o achassem fraco, mas ninguém jamais imaginou o rapaz, que era conhecido por ser bruto e insensível, chorar em público.
Mesmo assim, ninguém o julgou mal. Zita tinha retornado dos mortos, o que poderia ser considerado um milagre se não fosse a própria heroína explicar que tudo não passou de um plano maluco e arriscado para recuperar a joia da vida que estava dentro do magma incandescente da Montanha de Fogo.
Sônia era uma das pessoas que estavam visivelmente afetadas pela história. Como alguém que não era daquele mundo e confia na ciência acima da magia, não se contentou em ficar em silêncio e acabou dando um longo sermão no casal desajuizado.
Sermão esse seguido por lágrimas da mãe biológica de André, que sem perceber, havia mudado o foco do sermão para as responsabilidades da vida de casados que teriam adiante.
— Sou muito nova para ter netos! — Sônia terminou o sermão — Já não basta a minha filha ter a minha idade, agora meu filho mais novo vai casar…
Era visível que o fato de Maria Júlia ter passado por uma distorção temporal de 40 anos, deixando-a com praticamente a mesma idade de sua mãe, afetava e muito o psicológico da pobre mulher, que não pôde acompanhar o crescimento de seus filhos.
Enquanto se afastava chorando, amparada por Maria Júlia, Sônia resmungava coisas aleatórias sobre assuntos diversos. Ela também estava bastante abalada com tudo que aconteceu até ali.
Foram poucos dias desde que chegaram naquele mundo, e mesmo assim, uma quantidade absurda de coisas aconteceu. Deuses foram libertos, o Guardião vagava pelo mundo, heróis morreram ou perderam seus poderes, Alice assumiu o trono que um dia foi de seu pai, e André pediu Zita em casamento.
Parecia uma sequência de eventos aleatórios, mas não para André, na cabeça dele aquilo tudo era parte de um grande plano. Um quebra-cabeças complexo que levou mais de quatrocentos anos para ser montado. E finalmente as últimas peças estavam se encaixando.
O próximo passo era a investida final, onde tudo daria certo ou seria jogado no esgoto. Um passo em falso e tudo que Haroldo preparou durante sua longa vida nesse mundo seria desperdiçado.
André não queria dar espaço para as coisas acontecerem ao acaso. Ele arriscou demais ao deixar Zita se arriscar e, literalmente, dar sua vida pela missão.
Agora a última etapa dependeria apenas dele. Não havia motivos para deixar mais ninguém se arriscar. Mas antes havia algo que ele precisava fazer.
— Mas quando será o nosso casamento? — Zita perguntou.
— Eu tenho uma sugestão, — André sorriu timidamente, como só fazia quando estava a sós com a ruiva — Falta pouco para o Festival das Luzes, no Reino do Leste. Queria saber se podermos celebrar nosso casamento na abertura do festival…
— Já ouvi falar desse festival, parece ser uma data importante. — Zita ponderou.
— É uma forma de agradecer ao sol, e como você é meio que a deusa do sol agora, seria uma homenagem a você…
…
Nas semanas seguintes, após se espalharem as notícias da volta de Zita, o continente inteiro passou por uma época de paz absoluta. Um período no qual as pessoas de bem puderam respirar e viver com menos medo.
Nem mesmo os deuses ou o Guardião do Mundo fizeram aparições em público. E os boatos mais recorrentes afirmavam que o desconhecimento da extensão atual do poder de Zita era o principal motivo.
Ela voltou dos mortos rodeada de fogo e o Deus do Fogo continuava desaparecido. Por mais absurdas que parecessem, as suspeitas de que a ruiva havia se tornado a nova deusa do fogo tinha algum fundamento.
Por ser a mais bem fundamentada, ou no caso, ser a única com um fundamento lógico, foi rapidamente aceita pela população. Os mais pobres e de menor poder político foram os que mais se agarraram a essa teoria e depositaram sua fé em Zita.
Não demorou muito até que uma religião começasse a formar, tendo como figura de adoração a nova deusa do fogo. Apenas dois meses e meio haviam se passado desde seu retorno e algumas cidades do norte do Reino de Prata assumiram a adoração à deusa Zita como religião oficial.
As notícias não demoraram a chegar no Reino do Leste, graças à rede informações das Pessoas Livres. Mesmo que Adênia possuísse autonomia sobre a organização, eles ainda eram fiéis a André.
— As pessoas sempre buscam algo maior em que acreditar. — disse Sônia, admirando a planície à frente, enquanto tomava um chá em uma das varandas da Montanha Solitária — Quanto mais fraco o ser humano, maior a fé que ele deposita em algo invisível e sobrenatural. Quanto mais nos conhecemos, mais desistimos de acreditar em deuses, astrologia e essas coisas religiosas e pseudo-científicas.
— Eu imagino que qualquer pessoa que tenha mais conhecimento em meio a uma sociedade cientificamente atrasada pode se designar um “deus” e dificilmente será desacreditada. — Maria Júlia completou — É por isso que não temos religiões no Reino do Leste, a única manifestação cultural que pode ser assemelhada com religião é o Festival do Sol, onde festejamos as colheitas, a vida e lembramos dos que nos deixaram.
— As pessoas idolatram o sol como um ser divino e senciente? — Sônia questionou.
— Não… É mais uma alegoria simbolizando o quão importante é a luz do sol para as produções agrícolas do nosso reino.
— Eu meio que tenho o poder do sol agora… — Zita entrou na conversa.
— Você é feita de plasma e emite raios ultravioletas? — Sônia deu uma olhada de canto de olho para a ruiva.
— Se eu quiser, sim.
— Ainda acho que magia é só uma forma de energia pouco entendida. — Sônia torceu o lábio — Se não tivessem encerrado a minha pesquisa depois do incidente com aquela porcaria de chave, eu teria conseguido compreender como funciona e replicar artificialmente.
— Se quiser, posso mandar fazer um laboratório para a senhora continuar a estudar de onde parou. — Maria Julia disse, servindo mais chá para as outras duas mulheres.
— Você acabou de colocar eletricidade no seu reino, a rede atual é tão simples que não suportaria a carga necessária. Mesmo que Lídia e Kai tenham se esforçado bastante para fazer, o que eu considero algo incrível para um mundo atrasado cientificamente, melhor não deixar o povo sem luz. — Sônia balançou a mão, dispensando a ideia — Além disso, não há mais tempo, o André disse que vamos encerrar tudo isso em breve.
— Então ele falou para vocês? — Zita perguntou, havia um traço de tristeza em sua voz.
— Não devo dizer que concordo com o plano dele, mas não vejo outra forma de encerrar isso. — Sônia despejou um pouco do conteúdo de um cantil na xícara de chá, completando até a borda, em seguida bebeu o conteúdo em um gole — Querem um pouco?
— Também não gosto de como as coisas estão se destinando, mas concordo que é a forma mais correta. — Zita recebeu o cantil de de Sônia e cheirou — Isso é cachaça?
— Cachaça cearense, eu trouxe um pouco escondida!
— Sinto saudades do papai. — Maria Julia disse com tristeza — Imagino o tempo que ele passou sozinho nesse mundo, todo o trabalho que ele teve para deixar tudo arrumado para esse momento.
— O Haroldo era mesmo um cara incrível. — Zita comentou — Ele me ajudou muitas vezes.
— Em breve estaremos com ele mais uma vez. — Sônia segurou a mão de Maria Júlia, e virando-se para Zita, perguntou: – Morrer dói?
— Não… — A ruiva respondeu com melancolia — è mais como uma sensação de alívio. Como se estivesse voltando para casa…
— Hum… Vai ser mais fácil sabendo que estão comigo.
— Chega desse papo de morte! — reclamou Maria Julia — Me dá um pouco dessa cachaça e vamos falar de casamento, festa e lista de convidados.
Ela tinha razão, o casamento de André e Zita seria em duas semanas, não tinham tempo a perder pensando em coisas tristes.