33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 233
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- Capítulo 233 - Quinquagésima Oitava Página do Diário
Quinquagésima Oitava Página do Diário
No meio de tantos acontecimentos repentinos, jamais esperei encontrar meu pai no meu quarto enquanto meus guardas e meu irmão jogavam e a sacerdotisa grávida assistia.
E a forma casual como ele falou comigo foi a gota d’água.
— Fica feliz que eu esteja bem? — reclamei — Eu não estou bem!
— Desabafar pode fazer bem… — Van-Nee sugeriu.
— Querem que eu desabafe? Pois bem: — Suspirei e coloquei tudo para fora — Aparentemente eu sou um idiota que faz parte de um esquema divino para começar uma guerra, mas não sei os motivos, afinal sou apenas bucha de canhão…
— Bucha de quê? — Jairo murmurou. Ele não sabia o que era um canhão.
— Aí passei um ano comendo o pão mofado que o diabo amassou, — ignorei Jairo e continuei, — e pelo que sei, meu pai ali estava a par da situação e deixou eu me ferrar bonito….
— Você sabe que não foi bem assim! — Haroldo franziu a testa.
— Fui jogado num buraco cheio de gás tóxico, com uma flecha no ombro, e nem sei bem o que aconteceu lá, porque pelo que sei, pode ter sido uma alucinação.
— Quem você acha que enviou Miraa para te salvar? — Haroldo argumentou.
— Ganhei um poder que na verdade é uma maldição e está destruindo e reconstruindo meu corpo. Quase morri mais vezes do que consigo me lembrar, estou tentando impedir uma guerra, Leonardo está contando comigo para salvar a sacerdotisa ali, — apontei para Van-Nee, — e você vem me dizer que está tudo bem?
— Essa é a versão resumida de tudo que deu errado. — Brogo comentou — A versão entendida é mais pesada, e a versão onde as coisas deram certo não existe.
Era bom ver que Jairo e Brogo tinham um pouco em comum comigo, pelo menos, assim eu não me sentia tão sozinho. E quando lembrava de tantas pessoas que ajudamos a libertar e escolheram ficar com o grupo de Adênia, sentia que tudo que passei tinha uma motivação real.
— Eu sofri muito até chegar aqui, mas agora tenho um propósito! — falei em bom tom — Quero dar liberdade a essas pessoas. Quero livrá-las dessas amarras do passado, dos deuses, dos heróis, das guerras…
— E se não tivesse sofrido tudo isso? — Haroldo me questionou — Se tivesse sido mandado para o Castelo de Prata com os heróis, será que teria tamanha determinação em mudar o mundo?
Eu nunca havia parado para pensar no caso. Entendi com aquela pergunta, que os heróis não tinham passado pelas mesmas provações que eu, por isso viam o mundo de outra forma.
Por ter ficado um ano nas periferias da capital do Reino de Prata, fui capaz de ver as diferenças sociais, enquanto eles eram cegados pelo brilho do luxo e as promessas de glórias.
Ao viver entre os mais pobres e necessitados, desenvolvi empatia pelos que sofriam. Já os outros, viveram os últimos anos ignorando esse fato, acreditando que era apenas a ordem natural da sociedade.
Meu foco era ajudar as pessoas, o foco deles era a guerra. Era por isso que ao serem mandados para reinos diferentes, alguns deles começaram a encarar as coisas por outros pontos de vista.
Por isso que Zita, Felipe e Leonardo estavam confiando em mim. Eles perceberam que tudo que viveram foi uma grande mentira, e poderiam haver outras mentiras mais espalhadas pelo mundo.
Então era isso que Felipe buscava!
Desabafar naquele momento tirou um peso das minhas costas e a poeira dos meus olhos. Comecei a ver que quem estava errado não eram os herói, mas alguém os manipulava perfeitamente.
Alguém tão esperto que conseguia rivalizar com meu pai, um homem que estava vivo pelos últimos quatrocentos anos. E só tinha uma pessoa assim em quem eu conseguia pensar:
—O Cavaleiro de Prata. — murmurei —Você estava me protegendo dele!
— Você está finalmente ficando inteligente. — Haroldo riu — Consegue imaginar o que teria acontecido se ele soubesse de primeira que você é meu filho?
Então foi tudo parte de um plano? Ele sabia de tudo e não fez nada? Aquilo me dava um baita desânimo. Só o que consegui fazer foi fechar a porta atrás de mim, sentar no chão e olhar pro teto.
— Descanse, garoto. — Ele continuou — Em dois dias teremos uma aventura diferente e mais perigosa que qualquer coisa que você já tenha enfrentado.
— Você vai conosco até o Leste levar a Van-Nee para a segurança? — perguntei sem tirar o olhar do teto cheio de teias de aranhas.
— Eu não, e nem você! — Haroldo tinha um tom de alegria na voz — Dessa vez será uma aventura perigosa de pai e filho. E como vieram quatro pessoas do Leste, precisam voltar apenas quatro para não chamar atenção.
Ele tinha razão. No meio de tantos acontecimentos nas últimas poucas horas, eu não tinha pensado nesse detalhe. É claro que chamamos atenção se saíssemos com mais pessoas do que entramos, e mesmo que quisesse disfarçar como carga, a carroça não era adequada e também chamaria atenção.
A melhor forma era eu ficar para trás e garantir que eles partissem em segurança. Me condenei em silêncio por ter deixado passar um detalhe importante, mas fiquei agradecido por meu pai ter visto a tempo e pensado em uma forma de corrigir.
E ali mesmo onde estava, eu dormi. Encostado na porta, com a cabeça voltada para cima. Estava cansado e tenso, mas consegui me deixar relaxar por alguns instantes.
E tive sonhos bons, o que era muito raro.
Sonhei com Zita sorrindo, com minha mãe cantando, com minha irmã me ensinando e meu pai lendo a minha história favorita. Então meu sonho virou uma aventura com anões e elfos para libertar um reino de um dragão.
Foi o melhor sonho que tive em quatro anos.
Talvez estar perto do meu pai me fizesse sentir conforto o suficiente para relaxar a mente mesmo quando eu dormia. Ele me deixou ficar forte, mas isso veio carregado de dores e traumas físicos e mentais.
Mas foram justamente esses traumas que salvaram a minha vida e de mais uma dúzia de pessoas. Foi graças à forma como esse mundo me tratou que eu pude crescer como homem, guerreiro e herói.
Quando acordei, Brogo e Jairo tinham saído do quarto. Udoo e Haroldo conversavam próximos à janela, e Van-Nee dormia na minha cama. Pela forma como estava escuro, já era tarde da noite. Eu dormi a tarde inteira e não percebi, agora estava morrendo de fome.
Udoo e Haroldo me viram levantando do chão, dolorido pela forma como dormi, mas não disseram nada. Apenas saí do quarto e fui até o bar próximo à hospedagem onde estávamos e comi até matar a fome.
Apesar de não ser fã de bebidas alcóolicas, pedi uma caneca da pior cerveja que já tomei na vida. Após a oitava caneca, não lembro de muita coisa, apenas de uma briga de bêbados e um anão sendo arremessado pela janela.
Lembrei da primeira vez que entrei em um bar com Surii, Shiduu e Baruu. Pelo menos dessa vez terminei melhor, não me envolvi na briga, paguei minha parte e voltei para a hospedagem.
Por ter dormido a tarde inteira, não sentia um pingo de sono, e mesmo que o álcool estivesse fazendo um certo efeito, meu corpo tinha uma maldição inteira corroendo ele, não era cerveja que me intoxicaria.
Virei a madrugada olhando a cidade construída em perfeita sinergia com a floresta, algo realmente admirável. O silêncio noturno e os poucos sons de corujas e grilos era uma sinfonia perfeita para a melancolia.
E antes que o sol clareasse a copa das árvores, ouvi meu pai me chamando. Ele estava com uma capa sobre os ombros e segurava outra. Me entregando a segunda, ele disse:
— Partimos agora para evitar uma tragédia, não há tempo de se despedir. Você os verá de novo, não se preocupe.