33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 234
- Início
- 33: Depois de Salvarem um Mundo
- Capítulo 234 - Quinquagésima Nona Página do Diário
Quinquagésima Nona Página do Diário
Partimos aos primeiros raios de sol da manhã. Apenas meu pai e eu em um cavalo cada, e mesmo que eu não fosse fã de montar equinos galopantes, não discuti com a decisão. Cavalos eram muito mais rápidos quando estavam sem carroça.
E cruzamos a floresta como duas flechas.
Nas estradas incrivelmente aplainadas do Reino do Sul, cruzando a Floresta Sagrada, os cascos dos animais pareciam flutuar sobre nuvens, e não me causava o desconforto comum desse tipo de viagem.
Não tardou muito a chegarmos na região que marcava o final da grande floresta. Era visível o tamanho das árvores se reduzindo conforme avançávamos na direção noroeste.
Ao mesmo tempo que seguia meu pai na direção norte, percebia ele sempre pegar o sentido oeste nas bifurcações. Se continuássemos naquele sentido, chegaríamos à fronteira do Reino de Prata antes do meio-dia.
Também consegui perceber as marcas de cascos do dia anterior, o que significava que haroldo estava no rastro de Zang-Nee e Leonardo. E pelo jeito que havia falado, ele estava preocupado com o que poderia acontecer se os dois se encontrassem.
Por mais que Long-Hua parecesse calmo, Haroldo tinha muito mais experiência, se precisasse confiar no instinto de um dos dois, escolheria o do cara que viveu quatrocentos anos. E nem era por ser meu pai, Afinal, aprendi a não confiar em ninguém que não fosse eu mesmo, mas por Haroldo ter treinado Long-Hua e Miraa.
Se os dois líderes do Leste e do Sul eram tão fortes e inteligentes, o que poderia ser dito sobre o homem que os ensinou presencialmente?
Além de tudo, eu queria mesmo passar um tempo com o meu pai, matar a saudade e fazer uma lista longa de perguntas. É claro que eu tinha consciência de que ele poderia ter mudado muito nos quatrocentos anos que passou longe da família. O tempo muda as pessoas, e esse mundo também não ajudava muito.
Eu mesmo já tinha passado por tanta coisa nestes últimos quatro anos que já nem me reconhecia. O garotinho medroso que chegou sem memórias não era o mesmo que agora estava arriscando a vida para proteger as pessoas, muitas delas eu nem conhecia.
Então Haroldo fez um sinal com a mão indicando que devíamos reduzir o ritmo. Via, não muito à frente, uma vila pequena com casas simples feitas de madeira ou argila e cobertas com palha.
Ali paramos para deixar os cavalos descansarem, e também foi importante para eu fazer uns alongamentos. Mesmo a viagem tendo sido boa, ainda não era do meu costume andar a cavalo.
Enquanto os animais descansavam à sombra e com um cocho de água limpa, sentamos embaixo de uma árvore e comemos umas frutas que Haroldo havia preparado com antecedência. Aparentemente ele já sabia que teria que sair na madrugada.
— Como foram os últimos quatrocentos anos? — perguntei, tentando fazer a pergunta soar naturalmente.
— Cansativos… — Ele respondeu com um suspiro — Por vezes eu quis desistir de viver, mas tenho que acabar com isso aqui e voltar para a nossa família…
— E acha que as coisas serão fáceis? Digo, que podemos voltar e viver como se todas as merdas desse mundo não fossem afetar as nossas personalidades no futuro.
Ele olhou para o céu por entre as folhas da árvore.
— Já pensei muito nisso. E só encontrei uma solução possível, mas ela é muito radical…
— Radical quanto?
— Qual o mais longe que uma pessoa pode ir em prol de um objetivo? — Ele me encarou.
— Morrer por aquilo? — pensei em voz alta — Ou talvez, sacrificar pessoas importantes pelo objetivo… Só consigo pensar em coisas dolorosas!
— E não está errado. Para chegar ao único resultado possível onde teremos nossa família de volta como era antes, temos que fazer sacrifícios extremos!
— Mas, se morrermos, como teremos a nossa família de volta? — Aquilo estava bastante confuso.
— Eu já morri uma vez, — Ele disse, — Você já morreu também, certo? Só vamos repetir o processo de mudança de mundo, o problema é que dói muito…
— Então temos que morrer de novo? Eu não gostei muito da última vez…
— Você meio que já está morrendo. Essa coisa que você chama de poder é como um câncer que se alimenta do seu corpo, e ao mesmo tempo te reconstrói. Mas vai chegar o momento em que a névoa vai vencer!
— Você sabe da maldição?
É claro que ele sabia. Meu pai acumulou muito conhecimento nesses séculos vagando por esse mundo de merda. Com toda certeza aprendeu que a névoa escura da Grande Falha era uma espécie de maldição rara e perigosa.
— Maldição? — Ele me encarou como se não acreditasse no que eu falei — Aquilo não é maldição nenhuma! É a poeira da criação, a névoa que existia no universo quando o bigbang aconteceu, e os deuses usaram ela para prender o Guardião porque era mais forte que ele. O que você chama de maldição é a pura energia da Existência, a maior e mais poderosa forma de consciência de todo o universo, ou talvez, de todos os universos, no plural.
— Então, isso significa que somos de um universo diferente?
— Sim. Mundos habitáveis em universos separados.
— E essa coisa que tá presa no meu corpo é tipo… uma coisa sideral… ou…
— Pode chamar de “energia residual da criação”. Ou também, de matéria escura.
— Acho que já ouvi falar disso!
— Sua mãe estudava uma forma de usar isso como fonte energética sustentável, aí quando aconteceu o acidente no laboratório, seu corpo recebeu um pouco e ficou com essa energia presa por um tempo. Então você está meio que acostumado…
— O senhor também foi pego na explosão, então deve ser por isso que viveu tanto tempo!
— Não. A energia foi suficiente apenas para me trazer aqui. — Ele mexeu no bolso da camisa — O que me mantém vivo é isso!
Em sua mão estava um pequeno cristal em que várias cores cintilavam como se dançassem umas sobre as outras.
— Esse é o poder da vida. — Ele passou o pequeno cristal entre os dedos — Aqui tem o que restou da imortalidade que os deuses roubaram. Não foi fácil conseguir, mas enquanto estiver comigo, os deuses e o Guardião estarão vulneráveis.
— Essa coisa te deixa imortal? — Para mim, aquilo era incrível.
— Deixa. Mas o poder se desgasta com o tempo, e vai retornando ao Guardião. — Haroldo guardou o cristal no bolso — Logo perderá sua função e o Guardião será imortal mais uma vez.
— Então isso vai ser muito ruim!
— Vamos nos concentrar no hoje, — disse ele se levantando, — um problema de cada vez. E temos um bem grande nas mãos agora.
— Do que está falando exatamente?
— Eu sei o que vai acontecer. — Agora ele tirou uma ampulheta do bolso — O artefato do tempo me faz ver o futuro, na verdade, vejo todas as possibilidades de futuro sobrepostas, e quanto menos chances de mudar, menos possibilidades eu vejo.
— É tipo uma bola de cristal?
— Quase isso. Mas tem um futuro prestes a acontecer que não tem como ser evitado: o início da guerra.
Aquilo foi um baque. Eu estava investindo tanto para evitar essa guerra e ele veio dizer que não podia ser evitada. Foi como se jogasse um balde de água gelada em uma fogueira.
— Se não pode ser evitada, qual o sentido de lutar? — Questionei.
— Guerras não podem ser evitadas, mas podem ser vencidas. Cabe a você decidir o caminho a tomar. Vai ficar deitado no chão enquanto decidem o seu destino ou vai se levantar e vir comigo escrever um futuro?
— O que a sua bola de cristal diz sobre o final da guerra? Vamos vencer?
— Essa é a parte mais legal, ela não mostra um único futuro, mas vários. E em alguns deles, você é o grande vencedor!
— Então vamos concretizar esse futuro!
Levantei e abracei-o. Ainda era estranho ter meu pai comigo, mas sentia que podia tê-lo comigo no processo de escrever o futuro que desejávamos.