33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 237
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- Capítulo 237 - Sexagésima Segunda Página do Diário
Sexagésima Segunda Página do Diário
O que eu atingi, definitivamente, não era humano. Ou, pelo menos, não aparentava minimamente um ser humano normal.
Era uma coisa gigante, formada por partes de diversos animais, com braços longos e finos dos quais saíam asas como a de morcegos; as pernas eram curvadas como a de um canguru; nas costas tinha uma carapaça de placas como um tatu; a cara lembrava a de um rinoceronte, mas com a boca de um felino de presas afiadas.
Devia ter mais uma dúzia de outras características animais que eu não percebi, até porque uma perna se esticou em minha direção na velocidade da luz e me arremessou por cima de Leonardo. Se não fosse pelas armaduras de Rancor, ambos teríamos nos machucado muito.
Uma breve olhada pro lado foi o suficiente para ver meu pai e o Cavaleiro de Prata voltando a trocar golpes violentos, o que indicava que a aberração seria problema meu dali para a frente.
— Você não sabe o quanto eu queria fazer isso… — Aquela voz estranha do ser parecia se dirigir a mim como um conhecido.
— Eu causo esse efeito nas pessoas. — respondi — Geralmente, todo quer me matar por esporte, é o seu caso?
— Não está me reconhecendo?
— Eu lembraria se já tivesse visto uma coisa tão feia na minha frente!
— É só o efeito do meu “modo quimera”…
Modo quimera? Uma quimera é um ser mitológico que tem o corpo representado como uma fusão de vários animais. E quem tem poder animal é…
— Kawã? — Ergui uma sobrancelha em dúvida.
Como resposta tive um açoite de asa de morcego com garras afiadas na minha direção. Senti o Rancor ceder levemente sob a pressão do ataque.
A pele do meu peito por debaixo da armadura de Rancor ardia devido ao calor gerado pelo atrito das garras com o peitoral. Algo inimaginável até aquele momento. Eu tinha encontrado alguém que podia me pressionar ao ponto de afetar minha armadura com ataques físicos.
Não era o momento de brincar ou baixar a guarda. Estava em guerra e a minha cabeça estava a prêmio no Reino de Prata. Lutar apostando a minha vida era um entretenimento para mim, mas dessa vez tinha mais gente envolvida.
E o inimigo agora tinha uma vantagem: a velocidade.
Eu sempre me orgulhei de ser veloz, desde os tempos de Rato. Mas comecei a ganhar massa muscular e força nos meus treinamentos a custo de não evoluir na velocidade. Eu ainda era ágil, muito útil para esquivas, no entanto, o meu inimigo me atacava com a velocidade de um trem bala e eu mal conseguia escapar de dois ataques seguidos.
Cada soco ou chute que Kawã desferia era uma incerteza quanto ao alvo ou força de impacto. Ele era como uma fera selvagem que via em mim a sua presa.
Mal consegui me manter de pé depois de uma voadora com os dois pares de patas de canguru que ele acertou em mim, atingindo ao mesmo tempo a cabeça e o ombro.
Considerei desfazer a armadura para ter mais mobilidade, entretanto, temi que se um ataque daqueles me atingisse em cheio eu poderia não sobreviver para receber um segundo.
Decidi focar na defesa.
Foi a melhor decisão que podia ter tomado. Kawã era agora um monstro que juntava as mais perigosas características dos animais e se guiava pelo instinto animalesco dos seus poderes.
A cada ataque sentia as garras cortarem fundo na minha armadura e meu corpo ser arremessado com força. E quando um pedaço era tirado, eu rapidamente focava em reconstruí-lo.
A maioria dos ataques era focada na região do meu pescoço, como uma fera que desejava rapidamente matar sua presa, e eu agora era como uma tartaruga escondida em um casco resistente. Estava protegido até certo ponto, mas não conseguia contra-atacar ou fugir.
Estava chegando ao limite da liberação de Rancor, mais um pouco e começaria a sentir os efeitos danificando o meu corpo. Precisava a qualquer custo encontrar uma brecha para mudar o ritmo da luta, ou melhor, do espancamento.
Foi quando percebi que os ataques estavam ficando cada vez mais lentos. Se antes eu recebia um ou dois ataques por segundo, agora demorava uma a dois segundos entre um ataque e outro.
Parecia que não era apenas eu que estava perto do limite do poder.
Foquei a maior parte da resistência da armadura na região em torno do pescoço, desfazendo a maior parte do restante em névoa, deixei apenas uma camada fina, que fazia parecer que ainda estava intacta. Arriscava minha vida com esse plano, e caso não fizesse, poderia perdê-la de qualquer forma.
Isso deixou a minha armadura leve ao ponto de eu conseguir me pôr de pé rapidamente depois de mais uma ataque visando o meu pescoço. E quando calculei que viria o próximo golpe, caí para trás, o que não foi suficiente para impedir de ser atingido, mas o suficiente para me deixar no mesmo lugar.
Senti minhas costelas e a clavícula esquerda serem prensadas ao ponto de estalar. Era hora de finalizar o plano e usar a névoa de rancor espalhada nos arredores. Cada pedaço da armadura que foi arrancado agora era poeira escura e nos circundava.
Desfiz o elmo e vi Kawã pronto para arrancar a minha cabeça com as garras da mão direita enquanto me prendia ao chão com a esquerda. Eu só teria uma chance de evitar o meu fim.
Com a névoa que foi gerada do elmo desfeito, criei uma algema na mão direita e a prendi a correntes de Rancor indo a várias direções. Mais um milésimo de segundo e não teria sido suficiente, pois as unhas afiadas da monstruosidade estavam a milímetros da minha jugular.
Fazia tempo que eu não sentia medo de verdade.
Até cheguei a duvidar se o meu plano tinha mesmo dado certo. E como um animal capturado, Kawã entrou em estado de frenesi, mordendo as correntes e tentando se libertar com força bruta.
Àquele ponto, não tenho mais certeza se sua consciência humana ainda se mantia ou se seus instintos animais o haviam dominado por completo. Ele até mesmo me deixou de lado e lutava agora apenas por sua liberdade.
Senti pena, era uma pessoa, agia como animal, e o pior de tudo, era um herói que tinha chegado nesse mundo junto comigo. Não era digno de ser tratado como um animal. Eu tinha uma missão a cumprir, e sabia que da mesma forma, Kawã só cumpria ordens.
Decidi que não o manteria algemado como um animal ou escravo, mas o acorrentada como prisioneiro até que seus aliados chegassem, depois o libertaria em troca de eles não invadirem o Sul.
Me pondo de pé, senti muita dor no tórax, efeito dos repetidos golpes de Kawã. Mesmo com a armadura, ainda recebi muito choque, o que abalou meus músculos da região.
Respirando fundo e me metendo de pé com dificuldade, juntei a névoa de Rancor em torno de Kawã e o acorrentei. Só então me deixei cair e descansar, não teria muito tempo até que os reforços chegassem.
Meu pai ainda estava lutando com o Cavaleiro de Prata, Leonardo parecia estar se recuperando a consciência. Eu ainda precisava tirar o corpo de Zang-Nee e seus soldados dali e devolvê-los ao Sul.
Caminhei até Leonardo, tinha outro problema a resolver com ele antes da chegada dos reforços do Reino de Prata. E já podia ver as bandeirolas azul-celeste tremulando no horizonte.
— Você lembra o que fez aqui? — perguntei.
— Lembro. Eu fiz merda.
— Posso te ajudar a se safar, mas vai ter que confiar em mim.
— Por que vai me ajudar?
— Porque eu não posso deixar o Cavaleiro de Prata ficar com essa coisa que você usou. Seja lá o que for isso aí… E você não pode voltar pro Sul, então o que te resta é ser amparado pelo Reino de Prata.
— Você tem razão, qual o plano?
Plano? É claro que eu não tinha um plano. Eu tinha metade de um plano e ainda era muito ruim, e tudo dependeria do quanto Leonardo era bom ator e se Kawã recuperaria a consciência humana a tempo.
— Então… — hesitei em falar — Leonardo, agora você será meu prisioneiro…