33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 251
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Septuagésima Primeira Página do Diário
Gledson havia desaparecido pouco após me deixar na vila onde minhas irmãs estavam e garantido que ninguém corria risco, ele até trouxe um pouco da comida que não foi destruída e distribuiu entre os moradores, o que me fez ter mais respeito por aquele cara esquisito.
Shiduu se feriu no nosso ataque à caravana de suprimentos. Não estava correndo perigo de morte, entretanto, preferimos retornar ao Leste, nossa missão estava cumprida e nossas cabeças a prêmio.
Agora o nosso problema era definir como fazer para retornar, já que pelo Sul estava inviável, pelo norte seria muito longe, e pelo centro muito arriscado.
Era óbvio que a ponte estava sendo fortemente vigiada pelos soldados do Reino de Prata, então teríamos que buscar outra forma de cruzar a Grande Falha. O problema era que só havia três pontes que cruzavam a rachadura quilométrica que partia o continente em dois e separava o Leste do Oeste.
E para nosso azar, estávamos do lado oeste do continente, cercados de inimigos que adorariam pôr as mão em nós e usar como moeda de troca. E com Shiduu ferida, a capacidade de luta do trio estava bastante reduzida.
Mandei uma mensagem através da minha rede de informações, avisando a Adênia e Miraa que daríamos a volta pelo norte, e que seria demorado devido ao ferimento de Shiduu. Mesmo que não fosse profundo, afetou a panturrilha e diminuía o ritmo da caminhada dela.
Assim, seguimos por uma estrada que acompanhava a Grande Falha longitudinalmente no sentido norte. Não era muito utilizada naquela região devido ao isolamento populacional, o que nos deu certa segurança.
No terceiro dia de viagem, ainda não tínhamos andado o suficiente, mas percebi que chegamos a uma bifurcação, a estrada continuava no sentido norte, e outra seguia para oeste. Considerando o desgaste de ambas, a do oeste era bem mais utilizada, o que indicava haver circulação de pessoas por ali.
A pouca comida que levamos estava acabando, então concordamos com unanimidade em sair da trilha para roubar comida, o que não foi difícil com a quantidade de fazendas na região.
Frutas eram mais fáceis de roubar e não ser pego, porque os animais faziam barulho e, geralmente, os fazendeiros sabiam a quantidade exata de animais de cada espécie que possuíam. Então ficamos ali, em segurança, nos alimentando de frutas e dormindo em celeiros por mais três dias.
Lembrando das minhas peripécias dos tempos de Rato, resolvi roubar comida de uma das casas. Pelo tamanho, era de algum nobre ou um fazendeiro muito próspero. A primeira opção acabou se revelando a verdadeira quando ouvi uma conversa vindo da sala, enquanto me esgueirava pelo sótão para chegar à cozinha.
— Um tremendo gasto de dinheiro e vidas. — disse uma voz masculina — Os nobres da capital inventam suas guerras e somos nós quem acaba custeando tudo.
— Já perdi metade dos meus cavaleiros, e dois terços da safra. — Outro, mais idoso, completou — Graças aos deuses os últimos anos foram bons e a terra nos deu fartura. Mas não vai durar muito se tiver que mandar mais recursos para o exército.
— Aqueles… — O primeiro homem estava nervoso — E quer apostar quanto que nem vão lembrar de nós quando a guerra acabar?
— Isso se vencermos. — Uma terceira voz disse. Essa era mais calma e gentil, uma mulher — Meu falecido esposo tinha boas relações com o Leste, e sempre dizia que lucrava mais com os inimigos do que com os amigos. Tenho certeza que ele seria contra essa invasão, não importa qual motivo a capital queira inventar, nós da fronteira sabemos que é exagero.
Percebi naquele momento que havia uma divisão política no Reino de Prata. Nem todos eram a favor das decisões que saíam da Cidade de Prata. Até desistir de roubar comida, eu tinha uma oportunidade muito maior em minhas mãos e não poderia desperdiçar.
Eu tinha a oportunidade de usar a dúvida dos meus inimigos contra eles mesmos, então precisava de um plano convincente. E a ideia veio quando lembrei do que Gledson tinha me contado sobre a situação do Reino de Cristal.
Criei um personagem e uma história de fundo, pensei em todos os detalhes possíveis e pedi que Shiduu me ajudasse com uns hematomas. Foi visível a felicidade dela enquanto me agredia, e também foi doloroso, mas era pelo bem da missão.
Era óbvio que as duas garotas não concordavam com o plano, principalmente por eu ter um certo histórico de planos que deram errado ou terminaram em mortes, alguns destes eram direta ou indiretamente culpados pela guerra que estava rolando.
Repassamos várias possíveis questões que poderiam me incriminar, mudamos o roteiro algumas vezes, e no fim, Shiddu deu o braço a torcer e concordou com o meu plano. Em partes, ela ainda estava ferida e precisava de mais tempo para se recuperar, e sabia que eu tinha uma capacidade absurda de sobreviver.
Esperei dois dias para dar tempo das manchas roxas parecerem mais maduras e os ferimentos iniciando a cicatrizar, e usando uma armadura de Rancor levemente desgastada de propósito, caminhei pelo meio do povoado da fazenda.
Fiz apenas uma espaldeira e metade do peitoral, assim pareceria como se eu tivesse sido ferido em batalha, e também tivesse me livrado de parte da armadura para me permitir caminhar. Também fiz uma série de agachamentos e abdominais para parecer cansado, e Shiduu, no auge da covardia, me obrigou a ficar sem comer nem beber pelos dois dias.
É claro que eu chamaria atenção, e essa é a melhor forma de passar despercebido. Enquanto veem o que a gente mostra, não observam o que escondemos. Um velho truque muito utilizado pelos ilusionistas e por quem deseja se esconder à vista de todos.
Não demorou muito até que eu visse guardas me seguindo, desconfiados. Era hora do show, eu decidi. E vendo umas mulheres com baldes de água, corri até elas, tomei um dos baldes e bebi quase todo o seu conteúdo. Não só era parte da encenação, como também estava com bastante sede.
Foi uma cena bizarra. Eu tomando água direto do balde, metade da água caindo em cima de mim, a sujeira no meu corpo virando lama, as mulheres correndo e gritando enquanto reclamam do meu fedor… E tudo que me importava era apenas aquela água.
Então senti um impacto nas costelas e caí.
Como esperado da educação básica no Reino de Prata, fui saudado com um bicudão pelos guardas da fazenda. E quando me recompus, algumas lanças miravam em minha direção, e me rendi.
Até aí, tudo como o planejado.
Um guarda mais velho veio até mim e perguntou quem eu era. Deu para ver que ele possuía o respeito de todos, pois algumas das mulheres o cumprimentaram, mas ele não se dignou a devolver o cumprimento.
Então, de acordo com o plano, me identifiquei como sendo um soldado raso do Reino de Cristal que havia desertado. Para ser mais convincente, me ajoelhei aos pés do homem e implorei que não me enviasse de volta às tropas de frente da guerra.
Aquele era um momento decisivo. A minha atuação tinha que ser perfeita para chegar à minha plateia real, que não eram aqueles guardas nem as mulheres ao nosso redor.
— Vamos levá-lo ao Conde! — Disse o guarda mais velho — Ele decidirá o seu destino.
Mal sabia ele que não era só o meu destino que seria decidido ali.