3552 Sem Memórias - Capítulo 2
— Em que época a humanidade deixou de ser a espécie dominante? Não sei e nenhum ser vivo hoje sabe — afirmou Drake. — Mas temos indícios que foi nessa época que na busca pelo poder supremo, os cranyus foram criados.
— O que são cranyus? Ouvi esse termo o dia todo e ainda não compreendi o conceito — perguntei.
— Você já viu um deles.
Lembrei de forma instantânea da aranha que encontrei na floresta, aquilo era um cranyus. Ela parecia irritada com a minha presença no local. Drake continuou:
— Aqueles que estavam no topo produziram os cranyus para oprimir seus semelhantes. Foram produzidos em massa e em diferentes versões, cada um com uma funcionalidade diferente, uns usados para matar, outros para lutar e alguns para servir.
— E o que aconteceu?
— Essa é a questão, o que aconteceu? Há muitas teorias sobre, mas todas concordam que em uma única noite, a esmagadora maioria da população mundial sucumbiu, os pouquíssimos sobreviventes fugiram para a terra do oriente, o único lugar que sobreviveu ao apocalipse.
— Estamos na terra do oriente?
— Sim, estamos, meu lar e o lar dos que restaram.
— Por que eu sou diferente? Vocês me consideram algo estranho e perigoso.
— Ninguém sobrevive do lado de fora sem as ferramentas certas, e desculpe-me você não possui nenhuma delas.
— Lado de fora?
— As Fortalezas separam os humanos dos cranyus, o lado de fora como apelidamos é onde os cranyus vivem e o lado de dentro é onde os humanos habitam. Assim que terminamos a expedição iremos voltar para casa.
— General! General! — interrompeu um soldado. — Os radares… Os radares…
O soldado entrou abatido e preocupado, suas palavras enroscavam-se umas nas outras.
— Acalme-se e fale logo! — Drake
— Os radares apontaram a movimentação de um organismo estranho, ele está há noventa quilômetros de distância.
Drake levantou-se da cadeira e ficou em silêncio, o que ele fazer naquela situação? Pensava ele.
— Está longe de nós, eu avaliaria como um perigo de nível dois.
— É pior do que parece. Se aproxima em linha reta, com uma velocidade crescente.
— Provavelmente um cranyus verme colossal, envie uma equipe de abate.
— Não é apenas um…
— Não brinque com coisas sérias, hordas não vistas desde do incidente.
— Já detectamos há quase meia hora, mas só podemos confirmar agora.
Ele avançou furioso para cima do soldado, mas respirou fundo e pegou a garrafa em sua mão e em movimento rápido bebeu todo o líquido que sobrou. Satisfeito, limpou-se com as mãos e ordenou:
— Inicie um protocolo de retirada tática, temos que sair. E me avisem sempre que detectarem algo, melhor um alarme falso do que um alarme verdadeiro que mate todos.
— Sim, General! — respondeu o oficial com uma continência.
— Se precisar abandonem equipamento, mas não deixem ninguém para trás, inclusive as crianças.
— Elas irão nos atrapalhar, devemos deixá-las para trás e aproveitar os caminhões com as carcaças.
— Vidas importam mais.
— Até as delas?
O olhar de Drake para o soldado penetrou na alma dele, ele compreendeu imediatamente o que o seu comandante estava dizendo. Quando ele saiu, iniciou-se uma algazarra sem tamanho no acampamento. Todos se preparavam para a retirada.
Aquela conversa me deixou incomodado. Existiam crianças no acampamento? Não resisti à vontade de perguntar:
— Crianças? Existem outros como eu?
— Não, elas são bem diferentes de você, nós as chamamos de forasteiras, são crianças filhas de cranyus, nunca tiveram contato com outro ser humano e em vez de serem atacadas são protegidas pelos cranyus.
— Filhos? Os cranyus geram humanas?
— Algumas espécies são assexuadas, as crianças nascem como um clone do hospedeiro original. Quando chegarmos as Fortalezas iremos fazer alguns testes de DNA em você para identificar melhor essa hipótese.
Drake saiu da tenda e começou a preparar a retirada. Esperei por longos momentos, enquanto a barulheira do lado de fora me impedia de cochilar. Eu refleti sobre como havia parado ali e a criatura com que havia sonhado, aquilo era uma pista? Se sim, o que significava? O sonho parecia ter sido uma lembrança, eu senti o calor que saía das narinas da fera, o cheiro da morte entrava nos meus narizes.
Meu pensamento foi cortado por Roberson, que me levou dali para um carro militar, cinco minutos depois todos estavam prontos para partir. Tudo que podia ser levado, foi levado. E assim nós partimos para o lar do que restou da humanidade, as Fortalezas.
Mas ainda haveria um empecilho em nosso caminho.
Haviam quatro passageiros no carro, eu e Drake no banco de trás e Roberson com o motorista na frente. A viagem foi silenciosa, nenhuma palavra foi dita e a única coisa que eu via no horizonte era a poeira levantada pelo comboio.
Faltavam pouco mais de vinte quilômetros para chegarmos, nesse momento Drake recebeu uma mensagem preocupante no rádio.
— O sinal começou a se aproximar, a retaguarda já teve confirmação visual. É uma horda senhor, deve ter pelo menos dois mil cranyus de três espécies diferentes.
— Operador 5B, confirme as espécies identificadas até o momento — pediu Roberson.
— Touro, Águia e Lobo.
— Acredita que eles têm alguma chance?
— Apesar de serem cranyus de perigo dois, eles irão ganhar nos números.
O general estava visivelmente preocupado, não era nada semelhante ao homem descontraído que conversei antes. Sua perna tremia de inquietação e ele não largava sua pistola por nada, pronto para atirar na primeira coisa que aparecesse em sua frente.
— Drake, nós podíamos contornar as colinas de Sabach e tentar esperar a noite — Roberson tentava convencer o general a evitar a horda.
— Iremos aumentar nossa viagem em quase 12 horas, não teremos como fugir nas primeiras horas da noite, irá demorar pelo menos seis horas para que os cranyus percam toda a sua força e entrem em modo de hibernação. Temos que nos preparar ou iremos sofrer muitas baixas.
Ele ainda falava quando o veículo à nossa frente foi lançado para o ar na nossa frente, ele capotou, mas não foi destruído nem recebeu um arranhão. Assustado, o motorista freou o carro, olhei pelo para-brisa e vi uma minhoca (ou pelo menos um anelídeo parecido) enorme que atacava o comboio, ela entrava e saía da terra com uma velocidade formidável. Os soldados tentavam acertá-la com as suas pistolas, mas sem sucesso. Então um assobio agudo me assustou, a criatura foi golpeada fatalmente, um único disparo de um lança-mísseis a despedaçou.
— Um bom tiro, mas não comemorem ainda, tem muito mais desses vindo! — ordenou Roberson.
Eu saí do carro e me deparei com um ambiente caótico, todos corriam de um lado para o outro, tentando fazer uma defesa contra a horda. Ao longe uma imensa massa negra se movimentava, o céu estava tomado por uma revoada de pássaros pretos, não posso descrevê-los melhor devido à distância, mas eles se aproximavam de nós. Drake estava ao meu lado, nesse momento de caos ele lia um livro, um comportamento um pouco anormal para um comandante.
— O que era aquilo?
— Um cranyus verme, mas um dos pequenos. O que está por vir é bem pior.
— E você está aí? Lendo?
— Informações sobre os variados tipos de cranyus, tentando encontrar alguma coisa sobre as hordas.
— Você é um comandante, você deveria saber isso!
— Escute bem, nunca houve um relato de uma horda desde o incidente na fortaleza dezesseis. Isso significa que eu nunca tive um treinamento para como lidar com isso, nunca se pensou que as hordas voltariam.
— Incidente? Que incidente?
Drake suspirou e ia falar, mas foi interrompido, a horda se aproximava. Ele me entregou uma espingarda de cano serrado que tinha apenas duas balas.
— É sério isso? Duas munições?
— Use com sabedoria — falou ele de forma debochada e se retirou para cuidar das defesas.
Fiquei parado com cara de tacho olhando para a arma em minhas mãos, como eu ia destravar aquilo? Já estava destravado? E o mais importante: como se atira com uma espingarda de cano serrado?
— Menino, você não irá ajudar? — um dos oficiais se aproximou de mim.
— E como eu faria isso? — perguntei.
— Olhe ao seu redor, ajude a posicionar as metralhadoras.
— Não posso, nem sei como fazer isso. Nem sei atirar, Drake me deu essa arma inutilmente.
— Fique abaixado, então, tome cuidado com…
Uma das enormes águias negras que voavam desceu dos céus e agarrou o pobre homem antes mesmo de ele completar sua frase. A assustadora ave carregou o soldado além do horizonte. Eu não tinha tempo a perder, o pior ainda estava por vir.
— O ataque começou! — Um dos soldados gritou enquanto disparava com uma metralhadora em outra ave igualmente grande, a primeira.
— Cranyus touros atacando. Todos a postos, atirem nos olhos — outro soldado avisou.
Um imenso galope de cascos podia ser ouvido, a grande nuvem de cranyus começava a chegar. Então, após a ordem de fogo, tampei os meus ouvidos para o que ocorreria a seguir. Os barulhos de tiroteio eram intensos, num lampejo do que achei ser sabedoria, me joguei para debaixo de um dos veículos. Descobri depois que não havia sido uma boa ideia.
A manada atacava os soldados. Os animais tinham mais de 3 metros de comprimento, os chifres brancos saiam de suas cabeças, eles eram voltados para frente, feitos para estraçalhar e perfurar o que encontrassem. Os animais da manada se pareciam com os bisões, mas sua estatura era maior que as dos convencionais. Quando os chifres das criaturas se chocavam com os veículos, estes eram arremessados com grande força para longe, todavia eles não sofriam amassados nem eram destruídos, os que sofreram foram na sua maioria de leve.
Olhei para os carros sendo empurrados e pensava no pior, o mesmo iria acontecer com o que estava me protegendo. E para o meu azar, meu pensamento estava correto. Um enorme touro empurrou o veículo e o lançou para longe de mim, toda minha proteção desapareceu. Não fiquei ferido, mas minha única defesa se tornou a pequena espingarda serrada que eu havia pego instantes antes.
Me levantei, eu precisava urgentemente de um novo esconderijo, um novo local seguro. Um rosnado alto foi emitido atrás de mim, ao me virar olhei para um lobo de pelagem cinza, um lobo gigante, como todas as criaturas que eu já tinha visto. O animal de pelagem cinza, possuía garras e dentes afiados, capaz de me triturar em segundos, e o mais assustador eram as manchas vermelhas ao redor de todo o corpo dele, poderia ser sangue ou também alguma resina natural, mas eu não desejava saber qual era a verdade.
— Rex quer brincar?
Esta única frase despertou a fúria do animal, que disparou com toda a sua força na minha direção. A única frase que consegui pensar no momento foi: “azedou”, o que eu ia fazer naquela situação? Procurar um novo abrigo? Era o mais sensato e foi o que decidi. Mas como obstáculo eu tinha o meu perseguidor, que com as suas quatro patas musculosas era muito veloz, com uma velocidade superior à minha, ele ia me alcançar, a questão era quando.
Tentei disparar na criatura, e como imaginei o meu disparo foi a metros de distância do meu alvo, “eu te odeio Drake”, pensei. Eu ainda possuía outra bala na arma, a segunda chance de acabar com ela. Ela podia ser gentil e me dar essa colher de chá, mas não, ela tinha que pular em cima de mim e me derrubar de costas no chão, com a queda eu deixei a espingarda cair.
Minha cabeça estava a centímetros daqueles enormes dentes afiados. Usei toda minha força para empurrar a mandíbula dele para longe da minha cabeça com o meu cotovelo esquerdo e com a minha mão direita tentava pegar a espingarda e disparar o tiro final na criatura. Quando eu estava sem esperanças, a criatura soltou um grito de agonia e foi arrastada.
Suspirei aliviado, eu havia sido salvo no último instante. Quem, ou o que, foi o meu salvador? A resposta estava na minha frente: um homem vestido com uma roupa preta e com uma capa com algum símbolo que não pude identificar. Ele agarrou o lobo, segurou a mandíbula dela com as duas mãos e depois a quebrou. O cachorro caiu no chão, com sua mandíbula partida em dois. Aquele cranyus havia sido morto, mas ainda havia centenas no campo de batalha.
Um por um, eles começaram a cair. Um dos touros tentou o atacar pelas costas, com um movimento rápido ele desembainhou uma espada e cortou o animal. Com um gingado único e exótico, ele era capaz de fatiar todos os inimigos sem dificuldades, ele cortou as teias das aranhas e decapitou com movimentos rápidos as águias que tentavam o agarrar, sua presença chamava a atenção da horda, os cranyus o cercavam e o tentavam matar continuadamente.
O rosto dele estava encoberto com uma máscara da mesma tonalidade da sua roupa, não podia ver a face dele, mas eu de alguma forma ele me era familiar. Eu até não podia saber quem ele era, mas eu tinha a certeza que ele sabia quem eu era.