3552 Sem Memórias - Capítulo 3
A situação após o ataque não estava nada favorável para nós, uma nuvem de poeira cobria o comboio, muitos soldados foram feridos e dezenas morreram. Enquanto os cranyus perseguiam a misteriosa figura, os soldados do regimento aproveitaram a situação para se reorganizar e sair da zona de batalha em direção à fortaleza, único local que parecia seguro agora.
— Todos estão bem? — Drake segurou uma escopeta e a apontou para o horizonte, para a direção que a horda tomou.
— Está tudo bem comigo, apenas alguns arranhões — Me levantei do chão avaliando a situação em que me encontrava.
— Han, comece a contar os feridos e contate o quartel-general, temos que sair desse local — Roberson avisou.
— Liguem os veículos, carreguem os feridos e vamos dar o fora daqui — Drake disse e fez, ligando o nosso veículo e ajudando um soldado a ser carregado a um caminhão.
— Mas e os cranyus? Temos muita mercadoria aqui — preocupou-se um dos soldados.
— Deixe-os ir, outra equipe irá coletar os cadáveres — Roberson o respondeu entrando no veículo.
— Garoto, vamos para o carro, temos que sair daqui urgentemente — Drake falou.
Entramos no carro e o comboio militar começou a se locomover, passando-se alguns minutos depois chegamos a uma cúpula de vidro enorme que ia até o céu. Um enorme portão era a entrada para a “fortaleza”, ali enormes artilharias o guardavam. O comboio do esquadrão atravessou o portão e começou a ir em direção a um enorme prédio militar. Havíamos chegado às fortalezas, o complexo mais seguro que existia nesse mundo.
Ao chegarmos ao prédio descemos todos do veículo, novos motoristas assumiram a direção e desceram os automóveis até a garagem subterrânea. Drake pediu que eu o acompanhasse, na recepção todos os militares estavam assustados perguntando ao resto do grupo se estavam bem, como foi o ataque.
— Garoto, Roberson me contou sobre a sua mochila. O pacote de biscoitos é feito por uma empresa que eu não reconheço o nome de forma alguma. O que é “Nyrzyr Industries”?
— Cara… Eu não lembro nem meu nome, como saberei que raios de empresa é essa?
Drake riu com o comentário.
— Gosto do seu jeito, gosto de como lutou contra a horda. Por isso, enquanto eu estiver relatando o ocorrido para os superiores na capital, você irá treinar.
— Que tipo de treinamento receberei? — Perguntei curioso sobre as minhas futuras atividades.
— Apenas para determinar seu verdadeiro potencial.
— Eu não me acho capaz de matar um cranyus, aquele cachorro me trucidou. Se aquele homem não tivesse interferido, eu estaria morto agora.
— A sua nomeação correto daquele animal é cranyus lobo. Com o treinamento correto, você pode derrotá-lo com as suas próprias mãos.
— Como treinarei?
— Um velho amigo meu irá nos ajudar, ele possui uma academia que pode nos ajudar nessa questão. Ele já treinou muitos desafiantes para a arena.
— Quando eu estava no acampamento escutei sobre ela, alguns soldados estavam conversando com um garoto sobre isso.
— Devia ser mais um dos novatos, saído diretamente do inferno.
— Você começa a me assustar cada vez mais. Agora estou curioso sobre o que é exatamente a Arena.
— A arena, uma antiga fortaleza que se tornou um campo de batalha feroz. Um antigo centro de treinamento do exército infestado de cranyus. A fortaleza fica estrategicamente posicionada entre o mar, as montanhas, o deserto do desconhecido e uma imensa floresta, uma área repleta de abrigos subterrâneos e antigos túneis da época da resistência. A arena, além de uma área de testes, é uma prisão.
— Por que alguém entraria nela? É um tipo de teste para se entrar no exército de exploração?
— Eu gostaria que fosse apenas um teste de admissão. A união possuía uma delicada questão demográfica, nossa produção de alimentos pode alimentar até oitocentos milhões de pessoas, nossa população hoje beira os seiscentos milhões, significando uma grande fartura. Um controle populacional simples é efetuado, a partir do terceiro filho de um casal, esses filhos não têm direito a serem país, ocupar posições elevadas no exército e têm de servir por cinco anos o exército. Você é considerado um filho caçula, isso significa que para que você tenha privilégios de filhos primogênitos deve sobreviver a arena para provar suas habilidades e valor para a União.
— E ao entrar na arena, qual é o teste para provar o seu valor?
— Sobreviver, para os desafiantes o objetivo é sobreviver por trinta dias, para os condenados uma pena especial é dada a cada um, pode variar de um mês a até a sua morte. Qualquer pessoa que se inscreva é considerado um desafiante, são pessoas que buscam glória, riquezas e melhores condições de vida. Alguns são apenas pessoas pobres que tentam uma forma “fácil” de mudar de vida.
— A arena possui uma dificuldade real?
— Aquele local é um cemitério de pessoas, a quantidade de cranyus localizada ali é gigantesca, eles atuam isoladamente, mas mesmo assim são muito fortes e a cada dia mais deles nascem. De cada dois mil desafiantes, mil e oitocentos são mortos por cranyus, cento e noventa são mortos por outros desafiantes e apenas dez conseguem concluir o desafio imposto, uma taxa de 0,5% de sobrevivência.
— Realmente é uma dificuldade imensa, o seu amigo deve treinar os alunos dele muito bem.
— Ele é um dos melhores atualmente, um especialista. Ele é muito rígido sobre os treinos, então se realmente quiser relembrar as suas memórias faça o seu melhor
— Não irei decepcionar, eu não desejo ser um fardo para ninguém.
— Tenho certeza disso. Siga-me, irei te dar um nome a partir de agora, não irei te chamar para toda a eternidade de garoto.
— Vai escolher um nome para mim? — Indaguei.
— A partir de agora o seu nome é Nusquam, e significa nada como a sua memória, assim que você se lembrar da sua história o mudaremos. Você será adotado como meu quinto filho.
— Então você possui outros quatro filhos?
— Sim, todos eles são meus filhos biológicos, você treinará com eles para a Arena — Drake disse e então se dirigiu a recepção do complexo militar.
— Boa tarde, general — disse a recepcionista.
— Disponibilize um dos quartos dos oficiais para o garoto.
— Este é o garoto do qual se fala tanto?
— Sim é ele, seu nome a partir de agora é Nusquam.
— Os quartos 619 e 618 estão vagos, cada um poderá ocupar um dos quartos — disse a recepcionista nos dando as chaves dos quartos.
Drake e eu subimos as escadas até o sexto andar. O quarto designado para mim foi o 619, equipado com uma cama de casal, frigobar, guarda-roupa de madeira, telefone fixo, televisão, escrivaninha e banheiro. Ao entrar, exausto, me deitei na cama. Após um rápido banho, liguei a televisão em busca de algo familiar.
Assisti a algumas notícias sobre a expansão de uma mina de carvão e o aumento de doze metros na altura da fortaleza número nove. Desliguei a televisão e me deitei novamente, contemplando o pôr do sol no horizonte. À distância, uma pequena cidade brilhava sob os últimos raios de sol do dia. Enquanto refletia sobre minha família, minha casa e a razão de estar ali, o sono me dominou. Sem perceber, meus olhos se fecharam, entregando-me ao sono.
Acordei com o estridente som das cornetas ao amanhecer, ecoando pelos corredores do prédio. Pouco depois, Drake bateu à porta do quarto, seu uniforme civil parecia ter sido usado por muitos anos, e o boné azul que usava estava visivelmente desgastado.
— Dormiu bem? — Ele perguntou, com um tom de voz cauteloso, como se estivesse tentando entender meu estado de ânimo.
— Sim, acho que sim… — respondi ao esfregar os olhos para afastar o sono que ainda me consumia.
Drake assentiu, como se esperasse essa resposta, e então sua expressão se tornou mais sombria.
— Teve algum sonho? — Ele perguntou, suas sobrancelhas franzindo em curiosidade.
Enquanto respondia, eu tentava lembrar se havia sonhado alguma coisa naquela noite, mas minhas lembranças continuavam misteriosas.
— Não me lembro de ter sonhado esta noite. — Eu admiti, sentindo um calafrio percorrer minha espinha.
Drake suspirou, desapontado com minha resposta, e então continuou, mudando de assunto.
— É uma pena, realmente. O processo de adoção foi finalizado.
Enquanto ele falava, movia-se inquieto de um lado para o outro do quarto.
— E minha família? Eles devem estar preocupados comigo!
Drake abaixou os olhos por um momento, como se estivesse buscando as palavras certas para me confortar.
— Seu DNA foi verificado no banco de dados; você é um completo mistério. Não há registros, parentes próximos, nada. Sua situação está se tornando cada vez mais intrigante — falou com a mão no queixo.
Enquanto Drake falava, pude ver a frustração em seu rosto, como se estivesse lutando para encontrar uma solução para o meu problema.
— Meu passado foi investigado em apenas uma noite? — perguntei, surpreso com a rapidez da investigação.
Drake assentiu, sua expressão séria enquanto olhava fixamente para mim.
— Sim, as instalações permitem uma pesquisa rápida. Infelizmente, para oficializá-lo, tive que registrá-lo como um estranho. O sistema do cartório é eficiente para aprovar nossos pedidos.
Enquanto ele falava, parecia que sua mente estava em outro lugar, como se estivesse preocupado com algo além da nossa conversa.
— Então, se eu quiser adotar uma criança estranha, só preciso ir ao cartório? — questionei ele.
Drake sorriu de leve, como se estivesse se divertindo com a minha ingenuidade.
— Claro que não. Esse é um privilégio dado apenas aos oficiais de alta patente — Drake sorriu orgulhosamente. — E tenho outra novidade, agora seu nome registrado é Nusquam Mitra Lty Ilaknos.
— Seu sobrenome é Ilaknos? Que desgraça de nome é esse?
— É o sobrenome da minha esposa. Agora, como meu filho, você tem todos os direitos legais para viajar pela União. Prepare suas coisas; partiremos em dez minutos para Alfa 1 e de lá pegaremos o trem para Central-0.
— Central-0 é a capital da União? — indaguei ao me levantar.
Drake assentiu, sua expressão séria enquanto se preparava para partir.
— Sim, é onde está localizado o quartel-general do exército. Preciso relatar sobre o ataque e a horda. — Ele explicou, sua voz soando determinada agora.
Enquanto ele falava, podia ver a determinação em seus olhos, como se estivesse pronto para enfrentar qualquer desafio que surgisse em seu caminho.
Após dez minutos, entramos em um veículo civil e nos dirigimos até a cidade de Alfa 1, no caminho do complexo militar até a cidade de Alfa 1 observei diversas fazendas verticais à beira da estrada, pequenas vilas e algumas cidades menores. Passamos também por três postos de controle, se Drake não tivesse me adotado iríamos ficar ali por bastante tempo, a alta patente militar de Drake nos favorecia e muito, assim chegamos a Alfa 1 antes do planejado.
A Cidade de Alfa 1 era uma bela cidade, possuía avenidas largas, os prédios eram bem altos, as pessoas conversavam alegremente nas ruas, numa praça da cidade, uma estátua holográfica de uma mulher segurando uma tocha. Nosso veículo então desceu para o subterrâneo, e estacionamos, ao longe eu via um trem-bala, este era o nosso novo meio de locomoção. Drake então falou para mim:
— As 6 da tarde devemos estar em Central 0, Alfa 1 é uma bela cidade Nusquam, meus avós moravam aqui até se mudarem para Beta 12, eu cresci em Delta 9, bons tempos…
— Possui irmãos?
— Meus irmãos morreram há muito tempo, meu país também.
— Sinto muito, como eles morreram?
— Meu pai teve um infarto quando eu tinha 12 anos, minha mãe pegou uma gripe e faleceu quando eu estava com 15 anos. Não restou outra escolha para mim e para meus irmãos se alistarem na arena, eu sendo o mais novo e o 3º filho da família essa era a minha única saída. Meu irmão mais velho Thomas nunca mais vi, saímos de lados opostos da arena, o meu irmão caçula Brian morreu na minha frente vítima de um cranyus — falou Drake emocionado.
Após embarcarmos no trem, o restante da viagem foi preenchido com conversas triviais que fluíam entre Drake e eu. Atravessamos túneis subterrâneos durante todo o trajeto, e após cerca de uma hora, chegamos à cidade de Beta 2, a segunda fortaleza em nosso itinerário. Cruzamos um esplêndido trilho suspenso que proporcionava uma vista panorâmica da cidade. Beta 2 era um lugar completamente distinto de Alfa 1; suas ruas estavam repletas de mercados movimentados, onde aves como galinhas, frangos, peixes e até mesmo morcegos eram comercializados em gaiolas.
Nosso olhar se perdia entre os templos erguidos nas praças, repletos de devotos. Homens trajando roupas sociais compartilhavam conversas animadas nos bares. A atmosfera era de total despreocupação em relação ao mundo exterior; ali, a única preocupação das pessoas parecia ser satisfazer suas necessidades básicas de comida e bebida.
A estação de trem de Beta 2 era majestosa, adornada por colunas de mármore que emolduravam sua arquitetura imponente. Ao contrário da estação anterior, que ficava abaixo da superfície, esta estava ao ar livre, permitindo-me contemplar a beleza da cidade e a agitação de seus habitantes enquanto desembarcávamos.
Saímos do trem e nos dirigimos a um pequeno café na estação, eu sentia frequentemente a estranha sensação de ser observado. Drake transbordava uma sensação diferente em vez da sua curiosidade, ele tinha uma emoção mais triste, um aspecto de preocupação incessante. Sentamos no café enquanto iríamos esperar o nosso trem partir, quando eu ia beber o meu chocolate quente, Drake olhou para mim um pouco assustado e disse:
— Você inconscientemente segue regras de etiqueta que só são usadas pelo alto escalão do governo.
— Isso pode ser alguma lembrança do meu passado?
— Provavelmente, um resquício de suas memórias que continuam presas no seu dia a dia, você é proveniente de uma família que gosta ou é forçada a seguir regras de etiqueta. Isso já reduz nossa vasta gama de possibilidades.
— Possuo mais algum hábito que poderia dar mais pistas?
— Seu jeito de caminhar poderia nos dizer mais, infelizmente não sou um especialista na área. — Drake então focou sua atenção para algo que estava atrás de mim, tive vontade de virar e observar o que ele olhava. — Nusquam não se vire, atrás de você, dois homens vestidos com um casaco preto e capuz estão nos observando desde que chegamos a estação. Nenhum dos dois estava no nosso vagão, eu verifiquei cada um dos passageiros e nenhum deles estava vestido dessa maneira ou se comportava como um militar.
— Temos como saber quem são eles?
— O capuz me impede de ver os seus rostos mais claramente. Termine de beber, aja normalmente, eles não podem desconfiar que sabemos da sua localização.
Desviei então minha atenção para o noticiário que passava na televisão do café, que acabava de iniciar uma reportagem sobre a horda que havia nos atacado no dia anterior.
— Uma notícia urgente, pela primeira vez em 54 anos uma horda de cranyus foi detectada, a horda atacou o 17º esquadrão de extermínio. Até o momento foram contabilizadas 612 mortes e mais de 800 feridos, isso totaliza quase 70% de casualidades no esquadrão. Fontes de dentro do exército descreveram que a horda foi embora após um ataque desconhecido de um homem com uma armadura prateada atacar os cranyus. Vamos falar com o nosso correspondente que está acompanhando tudo, bom dia Alan, onde você está? — A âncora do jornal falava na televisão.
— Bom dia, Elizabeth, eu estou na frente da base militar sul da fortaleza 1. Aqui os feridos do ataque estão sendo tratados pelos melhores médicos militares. As informações que temos até o momento…
— A notícia já vazou, isso é ruim. — Drake falou preocupado.
— Você está em maus lençóis!
— Nossa viagem até a capital será repleta de repórteres tentando falar comigo e uma hora ou outra você irá aparecer nas manchetes dos jornais. Pessoas mal intencionadas podem começar a nos perseguir, caso não já estejam fazendo isso — Drake se referia aos dois homens encapuzados que pareciam nos observar.
— Termine de comer, quando acabar vá direto para o trem! — Drake saiu então e se dirigiu até os dois, que prontamente se levantaram e se dirigiram até o fim da estação.
Os três andaram a passos lentos em direção aos vagões de carga, eu os observei até que eu os perdi no meio da multidão. Me virei para terminar o meu café e um homem estava sentado no lugar de Drake, ele vestia um longo casaco dourado com uma coroa bordada nas suas costas, no seu rosto uma máscara prateada escondia sua identidade. Minha vontade era de gritar e fugir.
— Não se mexa e não grite, isso só vai piorar nossa situação — disse ele, e outra pessoa surgiu nas minhas costas e o cano de uma arma encostou na minha cabeça.
— Quem são vocês? — Eu estava assustado e meu corpo estava paralisado de medo.
— Não fale, apenas escute. Somos seus aliados, não queremos machucar você nem ninguém, mas se for preciso faremos isso pelo bem maior de todos. A equipe não poderá fazer sua proteção adequadamente, mas alguém sempre estará te vigiando das sombras. Sinto muito pela sua memória, mas agora ela é um obstáculo para o progresso da nossa missão, quando você se lembrar entenderá o que fizemos. Confiamos em você, vejo você em breve. — Com essas palavras, ele desapareceu na minha frente como mágica, como uma ilusão da minha mente.
— Nusquam, vamos — falou Drake, que apareceu um instante após o sumiço deles.
— Para onde eles foram? — perguntei um pouco perturbado.
— Saíram da estação, não consegui segui-los do lado de fora.
— Estou falando dos dois que estavam sentados na minha frente.
— Nusquam, vamos! — Drake ficou visivelmente alterado ao escutar minhas palavras.
— Você entendeu o que eu disse? — questionei ao ver sua súbita mudança de atitude.
— Exatamente por isso temos que sair daqui, eles já chegaram até você.