A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 1
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- Capítulo 1 - “As bandeiras foram pintadas vermelhas do nosso sangue”
O dia estava nublado no palácio de Carasovralo. As nuvens, anunciando a época da neve e do frio, criavam uma aura azulada sobre os campos cinzentos.
Longe da janela onde o rei Grozyr estava apoiado, uma grande coluna de fumaça se erguia, não menos que a uma légua dali.
O rei já estava saindo da vida adulta, prestes a entrar nos seus sessenta. Sua pele, no tom alvo dos homens do norte, já estava enrugada. Também tinha longos cabelos lisos e cinzentos que passavam dos seus ombros e olhos castanhos fatigados.
Tirou a coroa da sua cabeça e admirou as joias. Acariciou o forro do símbolo de sua autoridade com um sorriso entre os lábios, lembrando-se com nostalgia de quando era o dono indiscutível do país.
O velho monarca estava cansado. Durante os anos que ficou à frente de Leifas, Grozyr cometeu muitos erros, por mais que não admitisse nenhum, tampouco assumisse a responsabilidade. Agora, graças a essas falhas, sequer sabia onde seus dois filhos estavam.
Mas a verdade é que, por mais alheio que fosse o rei, há muitos anos o povo sofria com seu descaso. Fome, guerra e morte. Restava apenas um dos quatro cavaleiros. O mensageiro do fim.
— Kruvan? — O rei vestiu a coroa.
Por detrás da penumbra que escapava da gélida luz da janela, aproximou-se um homem pálido, de longa barba negra, vestindo uma túnica branca folgada.
— Estou aqui, Vossa Majestade — o homem se introduziu.
— Onde estão os marechais?
— Os duques estão em Revragova, Sire. Amound ainda não voltou de Gilina e Saravi está no sul — Kruvan explicou, quase gaguejando.
— O Grão-mestre Maravi?
— Foi conter a revolta em Danuvralo. Provavelmente voltará em breve.
O rei não expressou nada além da mesma face séria e preocupada diante da resposta. Porém, logo notou que faltava um dos seus sete comandantes. Nojo invadiu sua cara ao lembrá-lo.
— E quanto ao marechal Juno?
Como um prenúncio da morte, se ouviram dois estampidos abafados. Um sonoro grito feminino e dezenas de passos em fuga deram calafrios aos dois. Kruvan parecia ter congelado, mesmo que o inverno ainda estivesse no início. O rei Grozyr, por sua vez, permanecia com sua faceta desesperançosa.
Postos em alerta devido a movimentação no corredor, outros dois homens entraram por detrás da sala. Tinham túnicas como a de Kruvan, também vestidos de curtos chapéus cilíndricos.
— Espero que ele chegue logo, Sire.
— Ter que depender daquele miserável me embrulha o estômago — disse o rei. — A guarda do palácio não vai segurar por muito tempo.
— Faor ouvirá nossas preces, Majestade. Juno chegará em breve e nos salvará. Sua coroa continuará a brilhar em sua cabeça.
Ao ouvir as palavras de seu acompanhante, o rei soltou uma única risada sem esperança.
— Quisera eu ter seu entusiasmo, Kruvan.
Mais disparos de mosquete ressoaram pelos corredores apertados da residência real. A grande multidão crescia em fervor, proclamando gritos de guerra e cânticos jurando morte ao rei. Os defensores do palácio tentavam responder com barulho, mas suas vozes denunciavam que quebrariam a qualquer momento.
O barulho enfurecido da leva se aproximou das portas do salão. Tiros ficavam mais frequentes, enquanto gritos e gemidos de dor se intimidavam perante o bradar rebelde.
De repente, uma sequência de tiros ecoou pelo corredor, calando os revoltosos. Após um breve silêncio, ergueu-se uma voz jovial e firme, gritando comandos aos soldados e à multidão.
— Ele chegou! — Kruvan gritou em êxtase.
Grozyr franziu a testa, mas optou por aceitar a vitória. Mostrou um sorriso no canto dos lábios.
— O infeliz conseguiu mesmo? — perguntou. — No fim das contas, parece que ele foi de alguma serventia.
As pesadas portas de carvalho se abriram, produzindo um sonoro rangido metálico, revelando dois soldados granadeiros¹ de uniformes vermelhos com abotoamento duplo. Além do uniforme escarlate, tinham calças negras e vestiam barretinas² de pele de urso.
Entre ambos, o incontestável salvador do rei: marechal Juno. O homem, pálido, de cabelos castanhos e volumosos, vestia um imponente uniforme vermelho de dragonas e alamares³ dourados. Era de grande estatura, tanto que poderia ser confundido com um dos seus granadeiros se não fosse seu bicórnio⁴ de plumas amarelas e vermelhas.
O rei Grozyr estranhou a cena. Mesmo que estivesse alegre pelo salvamento, os uniformes dos militares não se pareciam em nada com os do seu exército. Na realidade, eram o completo oposto, sendo o padrão dos seus guerreiros o uniforme branco com detalhes vermelhos, o que os rendeu a alcunha de “alvirrubros”.
Juno caminhou em passos mansos até o rei, cobrindo metade da distância entre ambos. Foi acompanhado por oito granadeiros usando grandes chapéus de pele de urso, além de um outro soldado vestindo dólmã e peliça⁵ verdes de um hussardo⁶.
— Grande Juno! — O rei caminhou em direção ao comandante junto dos outros três.
Juno permaneceu indiferente. A libertação escondia qualquer alegria na sua face.
— Salvaste o rei dessa maldita revolta — dizia com entusiasmo —, todo o povo lembrará de você! Não só hoje! A história, Juno! A história se lembrará para sempre de você!
Mesmo com as bajulações fajutas do rei, Juno manteve-se em um silêncio tão aterrador quanto dos gritos da invasão anterior. O rei estranhou, mas continuou a rasgar elogios ao marechal.
— Belos uniformes! São novos? — Fingiu-se interessado enquanto seu coração cedia ao medo. — Confesso que nunca fui grande apreciador dos uniformes do nosso exército. Tirando as calças brancas, são idênticos aos uniformes de Selamica, só trocando o verde pelo vermelho! Nossos homens pre…
— Acabou, Grozyr — disse o hussardo de verde.
Em perfeita sincronia, os oito granadeiros apontaram seus mosquetes na direção dos quatro homens. O rei, em especial, sob a mira de cinco armas.
— Juno… — sussurrou assombrado. — O que significa isso? O que significa isso?! — Sua voz se transformou em ira.
Os dois homens vestidos como Kruvan ergueram suas mãos na direção do marechal, fazendo-o cambalear. O comandante traidor se desequilibrou. Juno começou a soar e respirar com fadiga, como se tivesse corrido uma maratona.
A dor era agoniante. No seu pescoço pálido, seus músculos se enrijeceram, roxos como em um hematoma. Suas veias ficaram negras de cima para baixo, crescendo o sofrimento do militar que apertava os dentes.
O marechal tremia, mantendo um esforço imenso para não se ajoelhar. Mesmo com a dor excruciante e a respiração pesada, Juno mantinha a mesma face robusta da chegada. Se prostrar deixou de ser uma opção.
— Insolente… — Grozyr falou com a raiva controlada na voz. — Realmente acha que pode me trair? Desgraçados como você estão destinados a se ajoelhar para gente como eu, marechal, por mais que você resista. Vocês! — Se dirigiu aos granadeiros apontando-lhe mosquetes. — Abaixem suas armas. Eu sou seu senhor, não esse farsante.
Dois tiros, duas balas de chumbo dos mosquetes. Tudo que precisou para pôr um fim nos dois protetores do rei ferindo o marechal.
A arrogância do velho monarca foi destruída. Juno se recompôs, pondo-se totalmente de pé. Ereto, o marechal encolhia o rei, que não alcançava a altura dos seus peitos.
— Marechal Gratzy, ponha-se no seu lugar! — berrou o rei.
— Hoje me chamas de “Gratzy”? — Juno abriu a boca pela primeira vez.
— Eu deveria ter deixado Nofrezyr ter ido até o fim e acabado com você! Ingrato, você estaria morto se eu não tivesse intervisto!
— Se foste tão bom quanto dizes, Nofrezyr sequer teria me tocado.
Ao terminar a frase, Juno estendeu a mão direita para a cabeça do rei apavorado. Mesmo que quisesse reagir, era incapaz. Suas pernas bambearam, puro medo exalava dos olhos. O suor congelou. O temor de terminar como seus dois feiticeiros só permitia que ele fizesse uma única coisa: tremer.
— Não o toque! — Krudan gritou para o marechal.
Juno se fez de surdo para o homem, sua mão bem em frente à testa do rei. Vendo que o comandante traidor o ignorou, Krudan atacou o comandante golpista, agarrando-lhe o braço.
O marechal recuou um passo e tentou se libertar. Ele não queria ferir o homem. Vendo que Juno evitou usar violência, Krudan enxergou a chance de salvar seu rei.
Escondida em suas vestes, o homem sacou uma adaga sedenta por sangue. Juno foi rápido e segurou o braço do homem. O marechal lamentou. Não por medo da morte. Naquele momento, Juno sabia que o capacho do rei havia selado seu destino.
Krudan arregalou os olhos ao sentir sua carne sendo rasgada. Uma dor mortal invadiu-lhe a barriga, banhada de sangue por um sabre de cavalaria. Ao olhar para sua esquerda, viu o hussardo de verde com ódio intenso no olhar.
A adaga caiu no chão antes de ferir o traidor. Krudan cedeu à dor aos poucos. Seu sangue maculou as vestes brancas, tornando o alvor impuro ao se misturar com o vermelho que escorria da ferida.
— Não precisava fazer isso, Purleki.
— Ele queria feri-lo, marechal — o homem respondeu, embainhando sua espada. — Não podemos permitir tal afronta.
Grozyr recuou alguns passos ao ver toda sua escolta caída ou ferida mortalmente. Juno se aproximou do rei com a mesma frieza de antes, quase fazendo o monarca perder o equilíbrio.
Sem ninguém para pará-lo, Juno estendeu novamente seu braço para a cabeça do rei, dessa vez tomando-lhe a coroa.
— Acha que serás rei por ter tomado a coroa?! Nunca terás nobreza! Nunca serás ninguém!
— Eu sei disso — Juno respondeu enquanto contemplava a joia. — De fato, não sou ninguém. E também é verídico que não tenho sobrenome, como vocês gostavam de dizer. — Falava com mansidão enquanto olhava para a coroa, deixando o monarca transtornado. — Mas uma coisa que me disse hoje é mais verdade ainda, Grozyr.
Ele parou de apreciar a peça e fitou os olhos do rei, penetrando o peito do monarca como uma espada.
— A história se lembrará para sempre de mim.
Juno arremessou a coroa para a sua esquerda, como a vasilha velha e sem serventia que era. Naquele instante, o pedaço de metal parecia cair com o tempo desacelerado. A face do monarca mostrava o medo imensurável do seu destino, enquanto o objeto descia para sua condenação.
Como um assassino cruel, acostumado à matança, a afiada guilhotina desceu ao pescoço do rei. Uma grande multidão vibrou com o som da lâmina se chocando com a base, decapitando o outrora soberano. Pessoas tentavam subir no palco da execução, sendo barradas pelo grupo de soldados de uniformes vermelhos que faziam a escolta do lugar.
O carrasco tomou a cabeça do rei ainda pingando sangue. Ele se aproximou da cerca do cadafalso, tomando cuidado para não ser puxado por alguém da multidão. Segurando o troféu pelos cabelos, deixou que o sangue do monarca decapitado corresse pelas suas mãos. Erguendo a palma para a massa enlouquecida, proclamou:
— É vermelho!
O público ficou descontrolado. Em uma cena que arrepiaria a espinha do mais indiferente, milhares de pessoas gritaram com toda a força de seus pulmões. Uns em celebração, outros em lamento.
Notas do autor
¹Granadeiros: tipo de soldado dos séculos XVIII e XIX. Originalmente, como o nome diz, carregavam granadas, porém seu propósito mudou com o tempo, tornando-se um tipo de soldado de choque. Eram os homens mais fortes e altos dos exércitos, formando a infantaria pesada.
²Barretinas: chapéus cilíndricos usados pelos soldados no começo do século XIX. Ainda costumam ser usados pelas bandas escolares no dia da independência e pelo Batalhão Duque de Caxias. Existem versões variadas do chapéu, como a barretina de pele de urso, comumente usada por granadeiros. O melhor exemplo de peles de urso são os chapéus da Guarda do Rei no Reino Unido, aqueles que não se mexem mesmo que você tente.
³Dragonas e Alamares: dragonas são o acessório dourado que se usava no ombro dos uniformes antigos. Os alamares são cordinhas douradas que os militares usam ao redor do braço e do ombro.
⁴Bicórnio: chapéu de duas pontas comum nos exércitos e marinhas da época. É comumente associado a Napoleão.
⁵Dólmã e Peliça: o dólmã é uma peça de roupa enfeitada com linhas douradas horizontais por todo o peito. A peliça é uma peça similar, porém era mais grossa e costumava ser vestida em um dos ombros feito uma capa, servindo como uma proteção a golpes de espada.
⁶Hussardo: tipo de soldado de cavalaria leve originário da Hungria. Eram os cavaleiros mais extravagantes e enfeitados no campo de batalha, vestidos de dólmãs e peliças, desempenhando funções de reconhecimento e contato com civis. Há também sua variante (bem mais famosa) de cavalaria pesada, os hussardos alados poloneses, que saíram de moda no fim do século XVII.