A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 10
O sol já havia deixado o horizonte nos bosques de Novagillisya quando os mercenários encontraram a choupana do frade Astovi. Era um casebre de madeira velha, a cor tendendo mais para o cinza que para o marrom. Parecia que poderia se despedaçar com um único sopro.
Dentro dela, Cefas, Laviel e Leto dividiam o pouco espaço no lugar repleto de mesas, papéis e panos mofados. Lampiões pendurados no teto davam luz ao interior.
— Para um frade, o maldito é bem porco.
— Não é como se ele morasse aqui, capitão — disse Laviel. — Ao que tudo indica, esse era só o lugar para o tal “projeto”.
— Sim, o “projeto”. — Cefas optou por alimentar o vício e tirou outro pedaço de tabaco para mascar. — Alguma coisa, Leto?
— Têm uns papéis com desenhos e escrita tautanesa.
— Poderia me mostrar? — Laviel perguntou, esticando sua mão.
Leto estendeu os escritos, que quase foram-lhe arrancados pelo leifanês. Em uma pressa angustiada, ele leu cada linha do papel em uma batalha contra o tempo.
Cefas mostrou um sorriso de canto ao ver o republicano nervoso.
— Está tão preocupado com o que o louco disse, cabo?
Laviel ignorou o oficial e continuou a leitura. O guia queria se manter sério, muito para se livrar dos comentários de Cefas, porém tudo no papel piorava sua expressão.
— O frade não pode ter ido tão longe…
— É o que achamos — disse o capitão. — O beato deve estar em algum lugar desse matagal. Uma hora meus rapazes o encontrarão, não se preocupe.
— Não é isso! — A expressão de Laviel permanecia abalada. O homem balançou os papéis para os mercenários com os olhos esbugalhados — Astovi estava lendo pergaminhos de Inoculação!
— Inoculação? — intrometeu-se Leto. — Isso não é aquela magia que guarda um poder no sangue? Todas as seis Bênçãos dos Primogênitos de Faor usam essa coisa, não há nada de mais num frade aprender isso.
— Ele tem razão no que diz, Laviel. As Igrejas controlam a magia em quase todo o mundo humano, não há motivo para essa angústia.
— Capitão, o homem… Ele falou que Igri estava aqui!
— Francamente, Laviel. Igri, Carasovi — começou a contar com os dedos —, Husoine, a Madame e todos dessa época estão mortos há trezentos anos! Mesmo que os soldados de Gilina não tivessem matado ela, não há chance dela continuar viva!
— O poder de Igri foi criado por Inoculação, capitão. É possível replicar o processo.
— E por que o frade faria isso? — Leto questionou novamente o guia.
— Eu não sei, mas…
— Laviel. — Cefas suspirou antes de prosseguir. — Por favor, não dê ouvidos a um lunático. Você é melhor que isso.
O oficial pôs sua mão sobre o ombro do guia e deu-lhe dois tapinhas, ambos incapazes de tirar sua agonia. Sem querer prosseguir com o assunto, o capitão foi em direção a porta. Parou antes da metade do caminho.
— Leto?
— Sim, senhor.
— Se o frade está trabalhando num projeto, então existem coisas importantes para ele nessa choupana, correto?
— É possível, senhor.
— O maldito vai aparecer se alguma coisa acontecer com essa barraca — concluiu. — Vá se juntar com sua esquadra e espere pelo bastardo aqui.
— O que o senhor planeja?
— A noite é fria, cabo, precisamos nos aquecer. E eu acho que já passou da hora desse lugar virar lenha.
***
O trio de mercenários observava a choupana crepitar na escuridão. Em meio as trevas, o escarlate das chamas era a única luz além do luar.
— Tanta gente sem um lar por causa da guerra e o capitão decide queimar uma casa! — ironizou Tevoul.
Aos risos, Alen e Tadeu mal podiam se conter das patacoadas de Tevoul. As tentativas de humor do mercenário ruivo aliviavam o clima do grupo.
— Outro dia eu vi um soldado colorado jogar um pedaço de pão mofado no chão — Tadeu disse em um falso tom de lamento. — Achei um absurdo.
— Inacreditável! — Alen se mostrou ultrajado. — Quantas crianças famintas poderiam ter tido uma refeição se não fosse por esse monstro!
Os três soldados riram da própria palhaçada, sem notar a aproximação do seu cabo predileto. Estava com a mesma cara de poucos amigos de antes, atacando-lhes com um olhar que poderia parti-los ao meio.
— Estão rindo do quê? Como querem emboscar o frade fazendo tanto barulho?! — Dessa vez, o grupo optou por deixá-lo se resposta. — Juntem-se ao resto da esquadra e se escondam, o frade aparecerá a qualquer momento.
Leto deixou os três mercenários e partiu. Tadeu, Tevoul e Alen, para evitar mais gritos do líder da unidade, decidiram se juntar ao resto da tropa sem alarde.
A esquadra era a menor formação militar da Companhia Noligre. No total, eram doze homens na formação, um deles com a patente de cabo. O restante era composto por soldados, homens treinados e bem pagos em tempos de paz.
A Noligre havia sofrido poucas baixas desde sua chegada em Leifas. As maiores batalhas da guerra aconteceram nos dois primeiros meses, quando os mercenários ainda estavam em Selamica, o que resultou na companhia passando a maior parte do conflito sem sofrer com lutas ou marchas consideráveis.
Foram duas grandes pelejas: uma foi a batalha de Carasovralo, na qual o marechal Juno, com uma força de 15.000 homens, interceptou e venceu um exército de 22.000, próximo à capital republicana.
A outra foi em Lubenirka, quando o exército do marechal republicano Saravi, de 8.000, foi derrotado pelas forças de Garuín do general Levefder, totalizadas em 12.000. Desde então, Saravi estava abrigado na fortaleza de Bulirka. Rumores diziam que a fortificação cairia a qualquer momento.
— Esse frade não vai aparecer nunca! — disse um dos soldados.
— Cale a boca!
O trio assistiu Dario, o segundo em comando, ser hostilizado pelo resto da esquadra.
— Pobre Dario — comentou Alen. — Ter que convencer o resto a obedecer Leto não deve ser fácil.
— Difícil obedecer alguém que os abandonou — disse Tadeu. — Se dependesse dele, todos nós teríamos morrido.
— Tudo bem que você também não foi o melhor exemplo também, né? — falou Tevoul.
O mercenário ergueu uma sobrancelha, aborrecido com o comentário. O ruivo notou a reação.
— O que foi?
— Como assim “não fui o melhor exemplo”? Queria que eu deixasse eles sós?
— E a gente também não estava só? Engraçado você falar isso depois de atacar quinze homens com três. À baioneta!
Tadeu franziu a testa. Ao fitar Alen, viu o soldado desviar a vista, um claro sinal que concordava com o outro. Teve a impressão que seus parceiros preferiam ter deixado a unidade sozinha.
Tevoul o leu como um livro aberto. Sabia com perfeição o que se passava na cabeça do mercenário moreno.
— Não, Tadeu, não queríamos abandonar o resto da esquadra. Mas você tem que entender que foi mais arriscado do que precisava. Não só hoje, foi o mesmo com o barão de Jorodar.
Tevoul se aproximou de Tadeu com um sorriso conciliador, apoiando seu braço esquerdo ao redor do seu ombro.
— Olha, eu entendo que você é mais agressivo que eu e Alen. Isso é bom! Quantas vezes não foram as suas loucuras quase suicidas que nos deram uma chance? Mas você tem que pensar antes de agir. Você pode ferrar com quem tem o azar de estar perto quando faz uma maluquice dessas.
O mercenário evitou olhar para o colega, mantendo a expressão carrancuda. Tevoul expirou ao ver que falhou em dobrá-lo.
— Minha parte eu já fiz — disse a medida que se afastava de Tadeu.
O clima no grupo esfriou após a curta discussão. Era como se os três tivessem, sem dizer uma única palavra, acordado em fazer o que Leto pedira e esperar calados pelo frade Astovi.
Porém a noite lhes reservava mais do que a tocaia. Enquanto esperavam, um estampido ecoou pelo ar, chamando a atenção de cada homem da esquadra. Logo em seguida, o som de um salvo de múltiplos mosquetes, acompanhados pela gritaria padrão de um oficial.
— Outra emboscada? — perguntou Tadeu.
— Vasculhamos a floresta inteira depois daquele grupo, isso é impossível — respondeu Alen.
— Vem do sudoeste! — gritou um soldado mais afastado.
— Não é lá onde está a esquadra do cabo Fravi? — outro perguntou.
— Deve ser. Alguém! Chame o cabo Leto!
Emergindo da escuridão, com seu bigode fino e cabelo negro comprido, Dario correu em direção ao trio com um mosquete em mãos. Coordenava o resto dos homens enquanto ia de encontro aos três.
— Você! — Apontou para Alen. — Chame o cabo para cá. Agora!
— Já vou! — Com pressa, Alen tomou sua arma. Quando se preparava para correr, voltou-se para a Tadeu e Tevoul — Vocês dois, tentem não morrer.
A dupla se despediu do colega enquanto ele disparava na direção oposta. Por trás das pisadas do soldado, Dario organizava os homens restantes para investigar os sons. Quando estavam prontos, o segundo em comando deu a ordem para os mercenários marcharem pelo bosque.
Eles ouviam os sons de disparos e gritos enquanto se dirigiam ao barulho. Quanto mais penetravam a escuridão, mais os disparos se intimidavam. O rugir das armas esmaeceu até restarem apenas os gritos dos soldados.
Berros viscerais davam calafrios nos guerreiros. Um a um, seus clamores desesperados se calavam em um coro decadente. Antes que chegassem ao lugar, ouviu-se um grito derradeiro, uma súplica por piedade:
— Socorro!
Um chiado de carne rasgada pôs um fim em seu lamento. Só o silêncio restou.
Os soldados se atropelaram para chegar a estrada sob a luz do luar, na esperança de salvar algum de seus colegas. Porém, ao chegar na ampla via, só encontraram a carnificina.
Uma dezena de homens ao chão, ensanguentados e desmembrados. Alguns sem braços ou pernas, outros com furos em seus peitos, como se tivessem sido empalados.
Na noite, o vermelho se transformou em um tom negro e viscoso. O sangue dos mercenários banhava a terra, misturando-se com a água lamacenta do gelo derretido.
— Por Faor… — A voz de Dario soou horrorizada.
— Ele está vivo! — gritou um dos mercenários.
A esquadra correu em direção ao sobrevivente. Apesar de ser um homem de meia idade, o suor que cobria sua face condenada faziam-no parecer um ancião no leito de morte.
— Cabo Fravi! — Dario ajoelhou-se ao lado esquerdo do homem, agarrando-lhe a canhota. — O que houve aqui?!
Fravi estava sem a canela direita. A ferida sangrava sem cessar, deixando o suboficial cada vez mais pálido.
— A Coisa… Ela… — A respiração do homem se tornou pesada, impedindo que ele terminasse a frase.
“Que tipo de feitiçaria aconteceu aqui?!”, pensou Dario. “É impossível que um frade consiga derrotar uma esquadra inteira dessa forma!”
Vindos do mesmo caminho escuro do resto dos mercenários, Leto, Cefas, Laviel e Alen chegaram ao local. Ao ver o que aconteceu com a unidade de Fravi, o quarteto correu na direção dos caídos.
— Dario! — o capitão gritou enquanto se aproximava, parando a um passo do soldado. — Alguma explicação para isso?
— Tentei falar com Fravi, senhor, mas ele está muito fraco pra explicar qualquer coisa.
— Maldição! Aquele frade tem demônios consigo?! O Desalmado!?
Cefas estava tão ansioso que mal se mantinha parado. Leto se aproximou de Dario, na tentativa de obter qualquer informação sobre o incidente. Atrás dos mercenários, Laviel estava apavorado.
O barulho da folhagem torcida alertou o grupo, que apontou suas armas na direção do ruído. De lá, emergiu a figura de um homem baixo de torso gordo e de braços finos.
Adentrando ao alcance da luz do astro noturno, o homem revelou sua cabeça com o topo da cabeça raspado, possuindo uma única listra de cabelos negros da altura de suas orelhas. Vestia um fraque verde abotoado até o pescoço, além de uma calça branca apertada por um calção de tecido nobre.
— É o bastardo! — gritou Cefas.
— Tenha mais educação comigo, estrangeiro. Não sou vossa mãe para que soltem insultos ao vento.
— Frade Astovi, em nome do Exército Republicano de Leifas, você está preso!
— Você vê o que aconteceu com seus homens e ainda age com essa arrogância?
Astovi estendeu o braço para a esquadra derrotada como um artista apresentando sua obra. Apesar de soar como um conselho, era uma clara ameaça.
— Deves estar se perguntando se eu derrotei seus homens, não é?
Cefas manteve a postura séria e desembainhou sua espada. Leto e Laviel fizeram o mesmo. O resto dos mercenários mantinham seus mosquetes apontados para o frade, prontos para o comando de seu superior.
— Ela… Ela está aqui! — Fravi gritou com todas as suas forças restantes enquanto apontava para trás, desmaiando em seguida.
A esquadra deu as costas para o frade para ver o que assustara o homem. Porém, logo cerraram os olhos em confusão. Uma menina. Tinha cabelos claros que escondiam seu rosto e trajava um longo vestido branco. Parecia ter menos de doze anos.
Soldados nunca temeriam uma criança, mas, por algum motivo, fraquejaram perante aquela. Nem falava nem parecia respirar. Estava completamente imóvel, como se esperasse por um comando.
Do outro lado da estrada, o frade pôs seu polegar contra seu indicador e anelar. Em um movimento curto, estalou seus dedos, produzindo o sinal de ataque.
Quase que em sincronia com o som, neblina brotou do chão, como se o orvalho se transformara em vapor. Os soldados viram seu pavor crescer a medida que a névoa engrossava, tornando tanto o frade quanto a menina invisíveis aos seus olhos.
Olharam para os céus, a lua a única coisa visível para eles. Oito espinhos negros brotaram em sua circunferência, provocando uma silhueta negra no astro alvo. Eram feito estacas, tão altas quanto a copa das árvores.
A aparência infantil se transformou em uma aberração. Aos poucos, a silhueta da criatura aracnídea tomou forma pela neblina que se dissipava. Uma tarântula tão grande quanto três adultos, com pernas à semelhança de adagas afiadas.
Nada restou da menina de pele clara. Humanidade alguma habitava aquela besta com quatro pares de olhos que os encarou sem qualquer temor.
Os soldados tomaram passos para trás, apontando suas armas para o monstro, mesmo que sentissem que seria inútil.
— Contemplem minha criação! — gritou o frade a plenos pulmões.