A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 19
Ainda tomada pela ira, Luci atacou o homem na cabeça, apenas para ver a arma atravessá-lo como se fosse um fantasma. Outra ilusão. A imagem esmaeceu de sua vista, mostrando um sorriso enquanto desaparecia.
Ela olhou para os lados, mas não encontrou o frade em seu entorno. Mordeu os dentes ao notar que o maldito estava invisível.
A distância, os passos de Tadeu e Tevoul tornavam-se cada vez mais próximos. Luci dividiu sua atenção entre a dupla e procurar por Astovi, tomando a pistola que o velho deixou no chão para se defender.
Quando a dupla parou a poucos passos de distância, ela notou sua aparência. Um era alto e atlético, com sobrancelhas grossas, cabelo volumoso e pele bronzeada. O outro, um pouco mais baixo, tinha olhos azuis e cabelo ruivo, parecendo-se mais um homem do Norte do que do Sul.
Um frio repentino subiu em sua coluna ao reconhecê-los.
“Merda, são os soldados que eu atirei!”
— Você! — gritou Tadeu, apontando para ela.
A reação da moça não foi outra além de voar para a direção oposta. Ela tomou o braço direito de Igri e fugiu com os dois mercenários fuçando seus calcanhares.
Mas a dupla não era sua maior preocupação. Galpão adentro, no meio de sacas de trigo, farinha e outros produtos, Luci e Igri escutaram gritos oriundos do lado de fora. Um grupo de invasores se aproximava. Com a atenção voltada para os do exterior, as duas mal se incomodaram com os dois soldados se aproximando.
Enquanto o grupo esperava por quem quer que estivesse cercando o lugar, Igri ouviu gemidos de dor, além de um barulho de rastejar. Ela olhou para trás e viu um homem rastejando pelo galpão. Seu “Mestre”.
Luci notou a garotinha encarando o espaço à sua direita. Ela olhava fixamente o vazio.
— Tudo bem, Igri?
A menina fixou-se nos olhos macabros e incomumente grandes do feiticeiro. Ele mexia a boca e imitava a fala.
Nada. Nada. Nada.
— Nada — disse Igri.
Luci desconfiou, mas, como parecia ter ninguém naquela direção, optou por ignorar. A garota devia estar perturbada depois de tudo, afinal. Um adulto ficaria atordoado com o tamanho estresse daquele dia maluco, quanto mais uma criança indefesa.
A porta no fim do armazém voou para dentro, o barulho do metal chocando-se com o piso ecoou pelo galpão. De lá, cinco homens vestidos de forma ordinária e armados com espingardas correram para o interior.
Aproximando-se da dupla, Tadeu percebeu que não haviam recarregado as armas.
— Vocês — falou chamando a atenção das duas —, por aqui!
As garotas, sem escolha, optaram por acompanhar os mercenários que minutos antes as perseguiam. Os quatro correram para se esconder por trás de uma dentre as dúzias de pilhas de trigo ensacado que enchiam o galpão. Tempo precioso para preparar seus mosquetes.
— Você tem quantos cartuchos? — Tadeu perguntou, notando que a mulher parecia ser do Sul.
— Quatro — respondeu Luci, ainda com medo de ser reconhecida.
O soldado revirou sua bolsa de munição, pegou alguns pacotes de papel e os entregou à mulher. Ele sinalizou para Tevoul, que fez o mesmo.
— Senhorita, não sabemos o que faz com essa criança — Tadeu tentava falar com a formalidade de um oficial e falhava constantemente —, mas a gente já viu do que essa garota é capaz. Precisamos levá-la para as autoridades da República.
O ruivo estendeu a mão para Luci, como se pedisse o seu mosquete. A garota recusou. O mercenário fez o mesmo gesto para o colega, que cedeu sua arma.
— Que tipo de perigo uma criança oferece? Ela vem comigo.
— Têm homens perigosos atrás dela. Um deles até feriu um dos meus companheiros enquanto a gente procurava. Esses que entraram aqui podem ser perfeitamente o grupo dele.
Um peso colossal saiu dos ombros da jovem. Eles não sabiam que ela atirou neles, afinal. Tevoul mais uma vez estendeu a mão para Luci, que dessa vez aceitou entregar sua arma.
— Eu nem sei quem vocês são, quem me garante que vocês não querem o mesmo?
— Ali! — gritou um dos homens.
Um disparo acertou a saca de trigo ao lado esquerdo de Tevoul, que se agachou enquanto segurava a barretina. Tadeu engatilhou o mosquete e saiu da cobertura, lançando uma bala no peito direito do homem.
Com a posição descoberta, os quatro correram na direção do fim do galpão. O grupo contornou sacas, caixotes, barris e todo tipo de obstáculo agachados, escondendo-se dos invasores enquanto um novo plano não nascia.
Tadeu estava à frente do grupo, seguido por Tevoul, Igri e Luci. Em uma curva para a direita, deu de cara com o inimigo. O homem apontou a espingarda para o coração do mercenário.
— Estão aqui! — gritou o rebelde.
“Merda, estou sem munição!”
Vindo de trás do soldado, Igri correu para sua frente e levantou seu braço direito, fazendo o corpo do invasor espasmar assim que puxou o gatilho. A bala voou para longe, errando o mercenário.
Tevoul e Luci correram para o lugar e devolveram dois tiros que derrubaram o homem.
— Vamos sair daqui, rápido! — gritou Luci enquanto o resto lhe seguia.
Tudo aconteceu muito rápido. Enquanto corria pelo galpão, o soldado fitava Igri com confusão. Perguntava-se o que aconteceu.
“Ela me salvou? Por quê?”
Tudo que tinha feito à garota até o momento era persegui-la. Segundo seus superiores, era uma “arma” criada pelo frade. Mas, como quando a encontrou da última vez, era diferente.
Após a corrida em meio ao estoque, o grupo alcançou o lado oposto do armazém. Para sua miséria, a saída ainda estava distante.
— Merda… — disse Luci ao ver-se encurralada.
A mulher tomou outro cartucho e mordeu o papel. Depois, depositou a pólvora na caçoleta para a ignição. Os mercenários fizeram o mesmo.
— Qual o seu nome? — perguntou Tadeu.
Luci fingiu que não escutou e continuou a recarga da sua arma, puxando a vareta para socar a pólvora.
— Eu sou Tadeu, soldado da Companhia Noligre, 3º Regimento, 2º Batalhão.
— Vocês também são do Sul, não é? Logo vi.
— Eu sou do Império, Gunere. Tevoul é de Mautinir, mas mora na Tarisína. — Tadeu recarregava sua arma. — Você quer ficar com a garota, eu tenho ordens para levar ela comigo.
— Vamos discutir isso quando o último bosta morrer, tudo bem?
“Vai ser mais difícil do que eu pensei”, Tadeu expirou sua decepção. Ele já tinha ouvido de seu pai que mulheres eram complicadas, mas nunca imaginou que se aplicasse a cenários de vida ou morte.
Mais um disparo se ouviu, dessa vez da arma de Tevoul. Pela indignação dele, notou-se que tinha errado o alvo. Aproveitando-se da distração, Tadeu se esgueirou para ver além do esconderijo, de onde viu dois homens se aproximando em passos macios até o seu grupo.
— Eu vou ir até o outro lado para distraí-los. Você consegue acertar um? — perguntou para a mulher.
Luci balançou a cabeça em afirmação, mesmo sem ter tanta confiança.
— Ótimo. Tevoul, consegue cuidar do que está aí?
— Deixa comigo.
Após a afirmativa do colega, Tadeu encheu seus pulmões e engatilhou a arma. Hesitou por segundos, mas, em um lapso de coragem, disparou para o outro lado do galpão a toda velocidade.
Um dos homens o notou correr e chamou a atenção do outro. O espingardeiro ergueu sua arma e a alinhou contra o soldado apressado, pronto para o disparo.
Luci foi mais rápida. Seu dedo puxou o gatilho, fazendo sangue espirrar do homem antes que ele ferisse o mercenário. O outro se espantou ao ver o colega cair. Sem terminar de recarregar seu mosquete, largou a arma e correu por sua vida, sendo acompanhado pelo invasor restante.
Um peso colossal se desprendeu dos quatro quando o último atravessou a porta. Tudo que restou dos homens que os caçavam era o som de seus passos em fuga. Pelo menos por enquanto, estavam vivos.
Os quatro saíram do armazém, rezando para que não fossem emboscados por outro grupo. Um ilusionista e um bando de atiradores já estava de bom tamanho. Eles se amontoaram na fachada do galpão com certa troca de olhares. Apesar de aliados por um tempo, a desconfiança que os cercava não amenizou. Era claro que o objetivo dos mercenários era bem diferente da moça.
— Vocês querem ela, não é?
Igri arregalou os olhos e encarou o rosto de Luci, que logo lhe disse para não se preocupar.
— Sim, queremos — disse Tadeu. — Não é nada pessoal, moça, são apenas as ordens que nos deram.
— Que garantia eu tenho que vocês vão cuidar dela melhor que eu?
— O Conselho Republicano inteiro está atrás dela. Eles vão saber tratá-la melhor que qualquer um de nós.
— O Conselho Republicano? — disse em um tom irônico nada sutil. — O mesmo conselho que começou essa guerra e, que por coincidência, você é leal?
— Ela tem um ponto.
— Tevoul, não é hora.
— Que motivos você tem para confiar no Conselho Republicano além do pagamento do seu salário?
— Ela tem ótimos pontos!
— Se eu soubesse, teria deixado aqueles dois homens em Jorodar arrancarem suas tripas.
Tevoul calou-se. Eram raras as vezes que ele irritava Tadeu ao ponto de receber uma ameaça.
O jovem mercenário se alternava entre olhar para a mulher e para a criança. A moça parecia decidida a não entregar a garota que, por sua vez, escondia-se atrás de suas pernas.
Buscando uma solução, Tadeu refletiu sobre como sua visão sobre a garota tinha se moldado. Igri parecia tão indefesa quanto qualquer menina da sua idade, talvez até mais. Lembrou-se também de como ela se pôs entre ele e o homem no galpão. Seja lá como, ela tinha salvado sua vida.
“Ela só feriu pessoas quando o frade estava por perto”, concluiu. “Ela é só um instrumento. Talvez o Conselho Republicano não saiba disso.”
— Tadeu! Tevoul! — gritou um homem.
Os dois mercenários reconheceram a voz na hora, por mais que desejassem não ouvi-la tão cedo. Leto.
— Cabo… — Tevoul disse com desprezo.
— Vejo que conseguiu a garota!
— Como está Alen? — Tadeu tentou mudar de assunto.
— Está bem. Agora, me dê a garota!
Luci recuou com a aproximação do líder de esquadra. Tadeu se pôs entre os dois, tentando afastá-lo de ambas. O homem ergueu uma sobrancelha.
— Aconteceram… várias coisas, Leto. — Estava nervoso. — O que eu vi pode até mudar tudo que sabemos sobre a garota. Não podemos entregá-la para o Conselho Republicano, não agora.
— Não se preocupe quanto a isso, soldado. Não tenho intenção de entregar a pirralha ao Conselho.
— Ah! — respondeu aliviado. — Que bom que entendeu, Leto. Espero que…
— Eu vou matá-la aqui mesmo.