A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 3
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- Capítulo 3 - Sol algum ilumina abaixo da terra
Walifer tirou sua alabarda encravada da barriga do inimigo com a fúria controlada, deixando uma ferida mortal.
Ao ter certeza que o homem estava derrotado, o coronel ajeitou seu chapéu torto e lançou uma série de comandos aos seus homens, a fim de assegurar a vitória sobre a resistência inimiga.
O ataque contra a entrada do quartel foi um sucesso. Ao contrário do que se esperava, havia uma única esquadra de doze homens protegendo a fachada, o que facilitou o trabalho de uma companhia inteira de um batalhão.
Cem homens foram destacados para invadir o local, do qual cerca de cinquenta estavam dentro do prédio conquistado.
— Nenhuma baixa! — um mercenário disse a Walifer, aproximando-se do coronel.
— É de se admirar, capitão — respondeu —, ainda mais considerando que o inimigo perdeu seis.
A entrada do quartel se dividia em três corredores: dois aos flancos e um ao centro do prédio. Mesmo com a vitória no assalto inicial, os poucos defensores recuaram para os laterais, onde era provável haver mais tropas esperando os mercenários da Noligre.
— Pressinto uma armadilha — disse o capitão.
— É o que parece, Cefas. A questão é: em qual dos três caminhos?
Cefas desabotoou o uniforme e tirou um pacote de papel do bolso interno. Era um pequeno cubo de tabaco. Desembrulhou o papel, pôs dentro da boca e começou a mastigá-lo, talvez para ajudá-lo a tomar uma decisão.
— Se os malditos correram pros flancos, então é certo que o barão não está no corredor do meio. — Cefas desviou a atenção de Walifer apontando para os corredores, alternando entre direito e esquerdo. — A dúvida é em qual das laterais.
— Vamos nos dividir em três esquadras: eu pela direita, você pela esquerda. Leto pode ir pelo meio.
— Não — respondeu olhando para o corredor do meio enquanto soltava o papel. — Deixa que eu vou pelo centro, o Leto pode ir pela esquerda.
— Tem certeza? Você mesmo falou que não acha que o barão está no meio. Vai deixar um cabo ter a glória que pode ser sua?
— Eu não preciso de glórias que já tenho, Olie — respondeu com um leve sorriso. — Além disso, você me disse que o cabo está se esforçando e merece um pouco de fama. Isso se o barão estiver na esquerda, é claro.
Walifer concordou e fez como Cefas pediu, por mais que tenha estranhado sua generosidade súbita. Sem demorar dois minutos, o grupo se dividiu em três esquadras de quinze homens e avançaram cada um por seu corredor.
Cefas podia ter falado que o barão estava escondido longe do centro, mas a verdade é que seus sentidos lhe diziam para procurar pelo meio. Havia algo no corredor escuro que gritava esconder um nobre fujão.
Junto de outros doze homens, Tadeu e Tevoul faziam parte da unidade de Cefas, marchando pelo corredor que terminava em uma porta negra. Assim que ficaram a menos de cinco passos da entrada, o oficial ordenou que a coluna parasse.
— Isso tá com cara de emboscada — concluiu Tevoul. Era sutil, mas o soldado ruivo estava preocupado. — É melhor o capitão ter calma, sabe-se lá quantos soldados têm aí.
— Contanto que a gente entre pra pegar o tal barão, por mim ele pode entrar de qualquer jeito — falou Tadeu.
— E virar uma peneira no processo, não é? — ironizou. — Você parece que não tem noção do que diz. Cefas não é louco de entrar sem…
Eu um golpe violento, Cefas chutou a porta na altura da maçaneta. Com a espada na mão direita e uma pistola na outra, saltou para dentro, buscando pelo inimigo. Chamou seus homens para dentro ao constatar que a sala estava vazia.
Os olhos verdes de Tevoul quase caíram da caixola. Os homens de trás o cutucaram, pedindo para que ele se movesse.
— Parece que quanto menos cabelo, mais louco um homem fica.
Depois do homem, os dois mercenários foram os primeiros a cruzar a porta arrombada, o resto da esquadra se dividindo na sala atrás de ambos. Tevoul mantinha-se assombrado com o capitão, enquanto Tadeu era indiferente.
— O nome disso é instinto, Tevoul — disse Tadeu. — O capitão sentiu que não tinha ninguém e entrou.
— Acho que uma pessoa pode ter “instinto” e “bom-senso”, não acha? — Tevoul falava baixo. O oficial da companhia estava perto de mais para falar isso em plena voz. — Ele poderia ter morrido se tivesse alguém lá.
— Ele não tem medo de liderar da frente, isso já faz dele melhor do que o Leto. Só foi um pouco irresponsável.
“Um pouco?”, o ruivo se perguntou.
Era uma sala escura. Os escassos lampiões iluminavam apenas o suficiente para que ninguém tropeçasse nos móveis. Lembrava um escritório, contendo uma mesa larga repleta de papéis e livros espatifados. Atrás, uma cadeira acolchoada.
Também haviam largas estantes com livros em três paredes. Uma delas, oposta à entrada, era construída com uma madeira diferente, mais robusta que das outras. Ao inspecionar mais de perto, os mercenários perceberam que a parede atrás do móvel era oca.
— Sempre a entrada secreta na prateleira de livros, não é? — falou Cefas. — Esses malditos não têm uma gota de criatividade?
Ao contrário da maioria das aventuras com passagens secretas em estantes, nenhuma alavanca escondida foi necessária. Ao tirar alguns livros das prateleiras, o interior que deveria ser secreto foi encontrado com facilidade pelos soldados da Noligre.
Sem perder tempo, os mercenários tomaram machados e derrubaram as prateleiras, abrindo um caminho para a tropa avançar pela passagem.
O caminho escondido mais parecia uma mina abandonada. Era escuro, medindo, no máximo, dois metros em altura e largura. Mesmo com poucos lampiões, era fácil notar que o corredor era longo.
À frente da coluna, Cefas segurava um lampião na altura do rosto. Suas feições ficavam visíveis sob a pouca luz: tinha costeletas grossas e cabelos volumosos, mesmo que a linha da testa já estivesse no topo da cabeça. A pele era mais escura que o tom oliva sulista, porém ainda distante da pele negra de um asteni. Olhares atentos notariam que já estava nos seus trinta e poucos.
Após quase meio minuto de uma caminhada cuidadosa, Cefas conseguiu enxergar um objeto no lado esquerdo da passagem. Estava preso na parede e, àquela distância, o escuro tornava impossível discerni-lo pelo formato.
— Vocês dois — chamou Tevoul e Tadeu —, vão ver o que é aquilo pra mim.
Os dois mercenários se entreolharam. Tadeu não se importou com a ordem, porém Tevoul vacilou. Ao contrário do seu parceiro moreno, o soldado de olhos verdes tinha um instinto de sobrevivência racionalista e elevado, popularmente conhecido como “medo de morrer”.
— Tem certeza, capitão? Nós podemos deixar aquilo e continuar sem…
— Claro que tenho certeza, soldado. Afinal, eu preciso de um pouco de “bom-senso”, não acha?
Um arrepio correu na espinha do ruivo. Os ouvidos de Cefas eram bem melhores do que ele imaginava.
— Nós vamos, capitão — Tadeu tomou a lamparina do oficial.
O ruivo franziu a testa. Como Tadeu não o esperou, o mercenário tentou acompanhar o colega com uma corrida curta. As pisadas fortes revelavam aborrecimento.
— Você não tem o direito de tomar uma decisão por nós dois! — exclamou como uma esposa irritada.
Tadeu se manteve sério e sequer desviou a atenção para Tevoul, fingindo-se de surdo.
— E se aquilo for uma armadilha? O que vamos fazer, Tadeu?!
— Nós dois estamos armados. Atiramos se vier alguma coisa.
Aos poucos, a forma do objeto ficou mais nítida: uma alavanca.
— Use o cérebro pelo menos uma vez, Tadeu. Uma alavanca, no meio de uma caverna escura, enquanto um barão se esconde no lugar. Vai me dizer que isso não é algo suspeito?! É a armadilha mais óbvia de todas e você vai direto pra ela!
— Não vou ser preso por insubordinação por conta do seu medo.
A essa altura, ambos já estavam ao lado da alavanca.
— Medo? Desde quando eu tenho medo? Fale uma única vez em que eu fui covarde!
— Uma hora atrás, dois contra dois, você escolheu o soldado ferido. — Tadeu pôs a mão direita sobre a alavanca metálica.
— Eu que feri ele, nada mais justo que eu…
— Rebelião na Javera, fazíamos guarda noturna, alguém estava com medo dos “monstros da noite”.
— A Javera já foi terra dos elfos, você já viu…
— Isso faz quatro mil anos.
— Você já viu um Cuestavrilt? O monstro é um touro com cauda de escorpião e tentáculos!
— Quatro mil anos, Tevoul.
— É a merda de um touro-escorpião, Tadeu! Com tentáculos e um olho gigante na cara!
De longe, Cefas observava a dupla com a impaciência crescendo até se tornar raiva. A discussão quase o fez gritar dali mesmo, mas teve autocontrole no último momento.
“Eu mereço”, pensou o capitão. “Que Faor e Goren me perdoem, seja lá qual foi meu pecado.”
Cefas tomou o lampião de um dos soldados e caminhou até a dupla enquanto escondia sua raiva. Os dois se digladiavam com tanta intensidade que sequer notaram o homem se aproximar.
— Será que os paspalhos se lembram do que deviam fazer? — perguntou ao chegar do lado da dupla.
— O problema é ele. — Tadeu apontou para o colega.
Cefas olhou de relance para Tevoul. Imediatamente acreditou em Tadeu, já que lembrava do ruivo inventando desculpas quando ele deu a ordem.
— Eu?! — Tevoul se fez de sonso ao receber o olhar do capitão. — Eu nunca falto com o serviço, soldado, e irei provar!
Tevoul agarrou a alavanca com o punho esquerdo firme, mostrando uma determinação inexistente no seu coração e cabeça. A puxou para baixo com toda sua força.
Assim que a alavanca tocou a base, sons de engrenagens estalaram no teto e paredes. O corredor tremeu enquanto poeira se desprendia do topo, assustando o trio de mercenários. O último ruído foi longo rangido metálico, acompanhado por um sonoro impacto.
Um estrondo rugiu pelo espaço apertado e fez a estrutura balançar, erguendo uma grossa nuvem de poeira. O trio mercenário levou as mãos para os olhos para protegê-los da terra levantada.
Quando a névoa se dissipou, a revelação: uma gigantesca pedra bloqueava a passagem, dividindo o capitão e os dois amigos do resto da Noligre.
Cefas ficou boquiaberto após o susto, mas, após recobrar a compostura, encarou a dupla com os olhos inflamados. Tadeu e Tevoul se encararam, preparando uma resposta para se isentarem da ira do superior.
Em uníssono, apontaram um para o outro e exclamaram:
— Foi culpa sua!