A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 4
Cefas seguiu pelo corredor à frente dos dois imbecis que o prenderam. Ele se recusava a olhar para a dupla, deixando que os gritos carinhosos que proferiu após o “incidente” explicassem como se sentia.
Ele escondia em sua faceta, mas sabia que compartilhava a culpa com os dois por provocá-los pela demora. Mesmo assim, preferiu ficar calado, mantendo a cara carrancuda. A experiência lhe dizia que soldados postos contra a parede tentariam se redimir quando surgisse a oportunidade.
O longo caminho em linha reta terminou em um semicírculo para a direita, redirecionando o trio para outro corredor. Ao contrário do passado, esse era mais curto, terminando poucos passos a frente dos mercenários.
O mais intrigante era o que estava no fim do caminho: uma escada caracol de ferro, subindo no sentido horário, iluminada por uma luz vinda do topo.
— Será uma saída? — Tevoul perguntou, ainda relutante em falar com Cefas.
— É possível, mas só subindo pra descobrir. Chequem seus mosquetes e a munição.
Ainda nervosos e tentando manter a paz com o superior, os dois soldados inspecionaram as armas, conferindo a pólvora nas caçoletas e o quão bem presa estava a pedra de pederneira.
Depois, checaram as bolsas. Como esperavam um confronto longo para conquistar o quartel, foram entregues vinte cartuchos para cada mercenário no ataque, a maioria sequer usada.
O grupo — Cefas, Tevoul e Tadeu, nessa ordem — subiu pela escadaria. A escalada foi demorada, uma vez que os rangidos estranhos dos degraus obrigavam os mercenários a ter cautela extra na subida.
Felizmente, a escada se mostrou mais firme do que aparentava e levou os três em segurança para o topo. No alto, encontraram um ambiente iluminado por pequenas janelas, fazendo o dia parecer nublado.
O lugar era largo como uma sala, por mais que a mobília fosse escassa. As paredes do lugar eram verdes em um tom desbotado e seu piso era feito de longas tábuas de madeira escura. Uma janela de portais brancos estava ao fim de um corredor que entroncava em dois caminhos perpendiculares.
O mais estranho do lugar era a sua decoração: havia múltiplas mesas aos lados da sala. Sobre elas, bonecas matrioscas, um dos símbolos da cultura leifanesa. As primeiras eram da altura de uma garrafa de bebida, diminuindo de tamanho conforme se afastavam da entrada.
Cefas ficou curioso e aproximou-se de uma boneca, por mais que os mesmos instintos que o levaram até ali o diziam para manter distância. Pôs o seu lampião sobre a escrivaninha, logo a direita da matriosca.
Era pintada como uma camponesa de vestido azul e véu avermelhado. Ele estendeu sua mão direita para pegá-la, mas, quando quase tocou o objeto, hesitou. O sorriso da mulher de madeira era ardiloso demais para o seu gosto.
— Pelo visto, os incompetentes deixaram alguns entrarem! — disse um homem vindo da direita do corredor lateral.
Os três mercenários ouviram um balbuciado incompreensível do estranho. O sujeito caminhou até ficar a cerca de quatro passos de Cefas, encarando os homens da Noligre.
— Ah, perdão. Pelo tom da pele, devem ser Selamicos. Mercenários, talvez? — o homem deduziu, já falando a língua dos povos do Sul.
Os três acenaram em afirmação. O homem vestia um extravagante fraque dourado com um colete branco por baixo, junto de culotes cinzentos em suas pernas. Era de meia-idade, estatura mediana, olhos claros e cabelos negros encaracolados.
— Prazer em conhecê-los! Sou Vrazhin Muromets, também conhecido como o Barão de Jorodar!
Pegos de surpresa, os mercenários tiraram os mosquetes das costas e os apontaram para o homem o mais rápido que puderam. O barão se assustou ao ver três armas lançadas para si, mas conteve-se, mostrando uma face sorridente.
— Acredito que vocês não querem fazer isso.
— Temos ordens para capturá-lo, barão — disse Cefas. — Não se mova e não serás ferido.
— “Não serás ferido?” Essa é boa! — O homem começou a rir alto, como se um amigo lhe contasse uma piada. — Se eu me render, os republicanos me cortam a cabeça de qualquer jeito! — O tom brincalhão do homem sumiu, mostrando um sorriso nefasto no rosto. — Na verdade, eu prefiro outra opção. Heitor!
Outro homem apareceu do mesmo corredor de onde veio o barão. Era alto e de um físico invejável, por mais que a túnica desbotada de cores verde e amarelo impedisse que seus músculos fossem vistos.
— Oh, conterrâneos! — Heitor disse ao ver homens da sua etnia.
O emblema do sol de oito pontas branco bordado no escudo vermelho era indistinguível: a Igreja de Goren.
Antes, os mercenários estavam confiantes que capturariam o barão, mas a presença de um feiticeiro mudou tudo. Dependendo de sua habilidade no Morto e Intocável, o manipulador das Artes de Goren poderia ser inofensivo ou mortal. A margem para erro desapareceu.
— Sugiro que baixem suas armas, amigos — disse o feiticeiro Heitor. — Meu patrão é um homem compreensível, mas também não quer perder o pescoço, entendem? — falou rindo enquanto olhava para as faces sérias dos homens de verde.
— Fora de questão, feiticeiro. Como um oficial do 2º Batalhão, 3º Regimento, tenho ordens para capturar Jorodar e levá-lo ao Conselho Republicano.
— Eh, eu tentei. Vai ser do jeito difícil, então.
O feiticeiro olhou para a mesinha, vendo a matriosca ao lado do lampião de Cefas. Seus olhos refletiram a chama da lamparina queimando o combustível, provocando um sorriso perturbador em sua face. Após admirar o fogo por alguns segundos, Heitor encarou o grupo de mercenários com pura malícia.
— Pelo visto, você já facilitou pra mim.
Tadeu viu a paixão que o homem olhava para o fogo com confusão, mas, em um lapso de descoberta, tentou avisar seu oficial:
— É um feiticeiro do fogo!
Antes que Cefas entendesse a mensagem, Heitor moveu seu braço esquerdo. O fogo da lamparina ascendeu em uma grande labareda, queimando a boneca e dançando pelas outras matrioscas, explodindo pólvora e estilhaços de madeira conforme as acertava.
Toda a sala se tornou um inferno. Cefas foi acertado em cheio, sendo ferido pelos pedaços de madeira e vidro da lamparina que voavam pelo ar. Ao cair, seu sangue começou a escorrer das feridas.
Tadeu e Tevoul correram para acudir o capitão. Por sorte, nenhum dos estilhaços parecia ter perfurado de forma profunda, para a infelicidade de Heitor e do barão Muromets.
— Você deu sorte. — Heitor caminhou até a mesinha em chamas devido o querosene do lampião destruído. — A explosão foi pequena, não deu pra colocar pólvora suficiente pra te matar. Mas não se preocupe — o feiticeiro pôs as duas mãos sobre o fogo, deixando que elas se inflamassem —, eu não cometerei o mesmo erro duas vezes.
Heitor concentrou seu poder na canhota, fazendo-a queimar em chamas do tamanho de uma cabeça humana. Com seu braço esquerdo, arremessou uma bola de fogo crepitante nos mercenários.
O trio se dispersou pulando para os lados, Tadeu pela direita, Cefas e Tevoul pela esquerda. A bola de fogo errou os três, por pouco não ferindo mais o capitão ensanguentado.
Se levantando do chão, Tadeu apontou sua arma para Heitor e disparou, acertando-lhe de raspão a coxa.
O feiticeiro soltou um grito curto de dor ao ser atingido. O soldado aproveitou a distração de Heitor e correu pela esquerda do homem, tentando deixá-lo ao alcance da sua baioneta. Em um golpe feroz, mirou no peito do feiticeiro, que se esquivou e agarrou o mosquete com suas mãos em chamas.
Ele segurou a arma e começou a fazer o metal ferver. Tadeu tentou manter a arma em suas mãos o quanto pôde, mas Heitor segurou com mais força, trocando a cor do metal de cinza escuro para vermelho incandescente.
O soldado teve que soltar a arma antes que o calor torrasse suas mãos. Heitor aproveitou a guarda baixa de Tadeu e o golpeou no peito com o joelho, o lançando contra a parede e arremessando uma bola de fogo em sua direção.
O mercenário pulou para o lado, escapando de ser tostado pela segunda vez. No curto tempo que teve, olhou para os companheiros. Seu colega ruivo tirava os estilhaços do capitão que, por sua vez, assistia o embate com paciência.
Ele se lembrou de como Heitor feriu Cefas, ascendendo a pólvora escondida com o fogo da lamparina, um golpe covarde para alguém que tinha todas as vantagens. Logo sua mente lhe deu uma ideia: ele poderia devolver na mesma moeda.
“É isso!”, pensou enquanto despia-se da caixa de munição.
Heitor estava irado com o mercenário. Mesmo que de raspão, Tadeu havia o ferido e tinha se mostrado um inimigo complicado. Ele precisava acabar com isso.
Chamas mais poderosas se ergueram da sua destra enquanto Tadeu tentava contorná-lo, a fim de atacá-lo pela direita.
— Morra, miserável! — ergueu a mão direita para o alto, preparando o arremesso.
Usando a caixa de munição como um mangual, Tadeu girou a bolsa de couro negro na direção do feiticeiro. Antes que Heitor pudesse arremessar a bola de fogo, o mercenário acertou sua mão flamejante com quase vinte cartuchos de pólvora e chumbo.
A bolsa entrou em ignição, lançando uma sonora explosão de fumaça cinzenta. Feiticeiro e mercenário foram arremessados com a onda de choque.
Prostrando-se em um joelho, Tadeu tentou se erguer enquanto resistia ao zumbido em seu ouvido. Olhou para o lado e viu sua barretina queimada, bem como Tevoul e Cefas se aproximando dele, o último com mais calma.
— Tá querendo morrer, infeliz?! — Tevoul perguntou num tom de ira e preocupação.
— O senhor está bem? — Tadeu indagou para Cefas.
— Estou vivo, soldado — respondeu com um sorriso genuíno. — Aliás, “a sorte ajuda os audazes” é um bom ditado, mas não abuse.
Tadeu riu timidamente enquanto Tevoul lhe estendia a mão para levantá-lo. Quando a fumaça se dissipou, os três encararam o corpo inerte do feiticeiro.
— Ele morreu? — o capitão perguntou.
Como se ouvisse as palavras de Cefas, Heitor se mexeu. Estava trêmulo. Várias vezes tentou se pôr de pé, mas seu corpo sempre colapsava antes que dobrasse o primeiro joelho.
— Bravo! — O barão começou a aplaudir a barbárie. — A todos vocês, bravo!
Jorodar assistiu em uma distância segura durante toda a peleja. Apesar de suas palavras serem as de uma pessoa em uma plateia, a feição do homem era óbvia: estava furioso.
Ele se aproximou do seu subordinado, tomando todo cuidado para manter o trio mercenário em sua vista.
— Minha mão… senhor. Não sinto a minha mão.
O barão procurou pela mão direita do seu guarda-costas, mas ela havia deixado de existir. Seu antebraço terminava em seu pulso, sem restar qualquer resquício da palma ou dos dedos.
— Perdoe-me, senhor. Eu falhei.
— Não se culpe, Heitor, fizeste o seu melhor. Mas precisas ficar de pé, o combate não terminou.
Muromets tirou seu fraque e o jogou no chão, revelando um sabre de infantaria curto em sua cintura. O barão desembainhou a espada e se pôs em posição de combate.
— Vamos, Heitor! — Tentou levantar o ânimo do guarda-costas. — A batalha só termina quando esses três morrerem!