A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 5
O barão disparou em direção de Tadeu, atacando-lhe com uma estocada no peito. O rapaz se esquivou por pouco. Ele tentou contra-atacar, porém, antes que pudesse reagir, recebeu um soco no rosto que o arremessou contra a parede.
O golpe escureceu a vista do mercenário. Mal podia acreditar na potência da pancada recebida.
Sem perder tempo, Muromets avançou para Cefas e Tevoul, que apontaram seus mosquetes em sua direção. O barão arremessou a espada contra o ruivo e o fez errar o disparo. Do outro lado, o capitão tentou mirar sua arma, porém Jorodar desviou o cano para o chão no momento que o gatilho foi puxado.
O barão agarrou o oficial pelas mangas do uniforme e o girou no ar, derrubando-o contra o piso. Cefas uivou de dor ao sentir cada ferida da explosão lhe atravessar a carne.
— Vocês deveriam saber que nobres costumam expandir a influência por casamentos — Muromets falou enquanto caminhava para recuperar seu sabre cravado na parede. — Minha avó era filha de um explorador, um grande colonizador de Leifas. Ele fez alianças com vários povos, o que incluiu um casamento arranjado para ela. Posso não ter os olhos puxados, mas meu avô… era um Lorde da Méria.
Um arrepio subiu pelas espinhas do trio da Noligre.
— Ele me ensinou algumas das Artes de Merá, do Vivo e Tocável. Uma delas foi incremento de força.
Heitor se pôs ereto ainda cambaleante. Mesmo sem a mão direita, o feiticeiro ainda era capaz de conjurar fogo em ambos os membros. Ele pôs sua canhota em chamas sobre o seu pulso ferido e queimou a carne até o sangramento estancar, em uma espécie de cauterização improvisada.
— Tadeu! — Cefas exclamou enquanto se levantava com dificuldade.
O oficial tirou seu sabre curto do cinto e o arremessou para o soldado, que desembainhou a arma assim que ela pousou em suas mãos. Os três montaram uma linha, com Cefas ao centro e Tevoul e Tadeu pelas pontas.
— Ainda podem nos deixar partir, soldados — Muromets disse enquanto alisava a lâmina do sabre. — Admiro a bravura de vocês, mas ela não os levará a lugar algum.
— Fique com sua piedade para você, barão — Cefas falou com a arrogância padrão de um oficial. — Somos soldados da Madame Verina, um Noligre luta até o fim!
— É uma pena. Mas, se vocês desejam assim…
Cefas quase falhou em impedir o golpe de Muromets, tendo que recuar em um salto para manter a lâmina longe do seu peito. O barão tentou estocar o mercenário múltiplas vezes, forçando o guerreiro ferido a usar toda sua experiência para bloquear os ataques com o mosquete.
— Capitão! — gritou Tadeu, correndo para socorrer o oficial.
Mesmo ferido, Heitor lançou uma bola de fogo contra o soldado, o acertando no braço direito. Tadeu foi posto ao chão com o impacto, deixando a espada de Cefas escapar da sua mão.
Por sorte, a esfera flamejante estava fraca. O soldado sentiu como se uma panela fervente o atingisse em vez da orbe infernal que parecia. Sinal de que o feiticeiro do fogo estava esgotado.
Mais à frente, viu seu capitão ser posto contra a parede pelo barão. Cefas se defendia com suas poucas forças, mas sua face cansada e as feridas abertas mostravam que sua bravura estava perto do fim.
O jovem mercenário tentou alcançar a espada à sua frente, porém viu uma bota pisar sobre a arma antes que pudesse tomá-la. Era Heitor, com sua mão restante e seu pulso mutilado em chamas.
— Achou que sairia ileso depois de me ferir, miserável?
— Não acha que você está esquecendo de alguém?
— O que você quer dizer c…
Um estampido ressoou pelo cubículo. Uma bala voou pelo ar e furou o olho direito do feiticeiro, derrubando-o feito uma marionete com as cordas cortadas. Do outro lado da sala, Tevoul baixou a arma com o cano fumegando.
— Quase que não dá tempo, ein?
— Você demora um século pra recarregar!
Muromets cortou com a espada em um golpe bruto. Cefas conseguiu bloquear, mas o ataque esgotou as suas forças. Seu corpo calejado mal respondia aos seus comandos.
Aproveitando a guarda baixa do capitão mercenário, Jorodar arrancou o mosquete de suas mãos e o chutou no joelho, prostrando-o.
O mercenário quis gritar de dor, mas até para isso seu corpo vacilava. Ao olhar para cima, viu o nobre esnobe preparando sua lâmina para o golpe de misericórdia.
— Você lutou bem, sulista, mas o jogo estava decidido antes de começar. — Alegria macabra enfeitava o rosto do barão.
Um estampido ecoou pela sala, quase ensurdecendo os quatro vivos. O barão virou-se e viu seu campeão derrotado, com um buraco no lugar de um dos olhos.
Próximo ao cadáver, dois soldados em uniforme verde. Um era branco e ruivo, com o cano de seu mosquete ainda fumaçando. O outro, de pele oliva, segurava uma espada na sua direção.
— Acho melhor se render, barão — Tevoul o aconselhou.
Muromets se posicionou para lutar, sem se intimidar com a desvantagem numérica. Sua face estava resoluta e sua vontade inalterada. Ele exalava perícia em sua pose.
Mas algo havia mudado em seu corpo. No início da peleja, o nobre parecia mais corpulento. Porém, após alguns golpes trocados, sua respiração ficou ofegante. Seus braços também estavam mais finos. Uma fumaça quase invisível exalava do seu pescoço.
— O que tá acontecendo com ele? — Tadeu perguntou.
— Ele não tem contato com uma fonte de poder — Tevoul respondeu. — Um feiticeiro pode lutar por muito tempo desde que tenha essa fonte e não perca sangue. Como ele não tem contato com algo do Vivo e Tocável, então o jeito é usar o próprio corpo. Ele cai durinho no chão daqui a pouco se continuar assim.
— Às vezes me esqueço que seu avô era sacerdote. — Após a explicação do colega, Tadeu se encheu de confiança. — Você não tem chance, barão!
Muromets se fez de surdo à ordem para se render, mantendo a prontidão.
— Venham.
A dupla avançou contra Muromets. Tadeu chegou primeiro, desferindo um corte na direção do peito do homem. O barão bloqueou o ataque e tentou chutar o mercenário, que evadiu o ataque ao pular para a direita.
Aproveitando a abertura inimiga, Tadeu tentou atacá-lo com uma estocada no pescoço. Muromets desviou e conseguiu abrir a guarda do mercenário, agarrando seu braço e o fazendo de chicote para acertar o ruivo, jogando os dois contra a parede.
“Merda, ele ainda tá usando magia!”, pensou o ruivo. “Ele quer mesmo morrer?”
Tevoul ainda se erguia quando o barão disparou em sua direção, a lâmina da espada cortando do alto para sua cabeça. O ruivo ergueu o mosquete para bloquear o golpe e esperou o impacto.
A espada de Muromets se chocou com a espingarda, forçando os joelhos de Tevoul a se curvarem. A lâmina encravou no guarda-mão de madeira e só parou ao se chocar com o metal do cano.
Em um puxão para cima, o barão arrancou a espada presa. Contudo, ao tirar a lâmina, ouviu passos em sua direção. Seus olhos se arregalaram ao notar seu erro.
Com um golpe rasteiro, suas canelas perderam o contato com o chão, o fazendo flutuar no ar. Muromets viu as pernas de um homem ensanguentado passarem por debaixo de seus joelhos enquanto caía, reconhecendo imediatamente o sorriso do capitão mercenário.
O barão pôs seu pé esquerdo o mais para trás que conseguiu, evitando a queda. Ao se equilibrar, cortou o ar com o sabre para decepar a cabeça de Cefas.
Porém, antes de ferir o mercenário, sentiu o metal atravessando seu ombro. Tadeu cravou a espada de Cefas por cima da sua clavícula, o fazendo tombar e largar seu sabre.
— Você está preso, barão de Jorodar — exclamou Cefas, respirando feito um cão exausto. — Bom trabalho, jovens.
Os dois acenaram com a cabeça, mostrando um sorriso tímido e agradecido. Cefas também se alegrou e os cumprimentou com tapinhas nas costas e um sorriso largo entre os lábios.
Muromets assistiu os três comemorarem com desdém. Ele estava acabado. Os braços do barão quase ficaram sem carne após usar seus poderes até o limite, dando-lhe a aparência de um homem faminto.
— É incrível como vermes feito vocês se vangloriam sempre que conseguem se equiparar a um de nós.
Cefas encarou o homem com a testa franzida ao ouvi-lo, mas tentou engolir a ofensa.
— Três soldados sem culotes. Foi isso que precisaram para capturar um único nobre. Será esse o tanto que eu valho em plebeus?
— Jovem — falou o capitão —, poderia tirar a espada da ferida? Acho que o moço está com muita dor.
Tadeu tirou a lâmina do ombro do homem com pouco cuidado, o fazendo chiar.
— Muito bem — disse com um sorriso. Depois, deu dois tapinhas em seu ombro.
Sem medir as forças que lhe sobraram, Cefas usou toda seu peso para um único pisão na ferida do homem, forçando-lhe um brado de dor.
— Você fica melhor com a maldita boca calada.
Após a luta, Tevoul tomou o novo prisioneiro pelo braço esquerdo e o levou escada abaixo, deixando Tadeu e o capitão a sós no que restou da sala. Haviam manchas de labaredas por toda parte, criadas pelas bolas de fogo do falecido Heitor. Seu corpo estava largado no chão, próximo aos restos das matrioscas e da lamparina.
— Esse lugar vai precisar de uma faxina — disse o capitão.
— Senhor, alguma ideia de como vamos sair? A pedra ainda está no mesmo lugar.
— O barão deve saber, afinal, ele que estava escondido aqui feito um rato. Se existia um jeito de fechar, existe um pra abrir também.
Cefas caminhou até o fraque de Muromets, despido no início da luta. Ele se agachou com dificuldade e agarrou a peça de roupa, lançando-a para Tadeu.
— Vê se têm alguma coisa nessa porcaria. — Tadeu começou a vasculhar os bolsos externos do fraque conforme seu superior pediu. — Qualquer coisa que encontrar me avise, vou ver se acho alguma coisa no escritório, quarto ou sei lá o que o barão tenha aqui.
Cefas saiu cambaleante pelo corredor, mas, antes que chegasse na esquina de onde saiu Muromets, ouviu:
— Senhor!
Dando meia-volta, dirigiu-se até o soldado, que balançava um papel em suas mãos. Ele tomou a carta e abriu o documento, tentando ler a escrita da mensagem.
— O senhor sabe ler tautanês?
— Não, mas tem uma coisa ou outra que dá pra entender. — Cefas continuou a ler o documento, por mais que só captasse as palavras que se pareciam com a língua do Sul. Quando terminou de examinar a carta, voltou-se ao subordinado. — Não dá pra ler muita coisa, mas tenho certeza que é algo importante.
— O que te faz pensar isso, senhor?
Cefas virou o documento para o mercenário. Assim como o oficial, Tadeu só falava sua língua nativa, mas o símbolo carimbado na carta falava mais do que qualquer risco de caneta.
Circunscrita em um círculo, era uma mão com todos os dedos colados. Um olho ocupava quase toda a largura da palma e, no pouco espaço em que o pulso aparecia, estava desenhado uma letra do alfabeto tautanês equivalente ao som da consoante “k”.
— É o selo da Igreja de Kolur — disse o capitão.