A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 6
A estante do escritório de Juno era pouco maior que ele, muito por conta da estatura do comandante. Além de ser bastante alto, a palidez e o físico pouco encorpado davam-lhe uma aparência vertical exagerada.
Sem dificuldade, tirou um livreto de capa preta da estante, pondo-o sobre o birô. A mesa estava repleta de cartas, documentos e livros. Sentou-se na cadeira e juntou alguns dos papéis, batendo-os contra a madeira para que ficassem alinhados.
Era a parte mais burocrática do seu trabalho. Começou a comparar os escritos dos papéis com o conteúdo do livro, escrevendo nos documentos de acordo com o que estava no pequeno manual. Era uma tarefa tediosa comparada à batalha, mas Juno sabia que a burocracia militar era tão importante quanto a habilidade de taticista.
Em vez do seu uniforme escarlate padrão, o marechal vestia roupas de civil naquele dia. Calças e colete negros, camisa branca por baixo, acompanhados por uma gravata plastron azul. Formal o suficiente para o trabalho, casual o bastante para que estivesse confortável.
O rosto do marechal era jovem. Tinha acabado de sair da flor da idade, mas retinha o ar do jovem adulto que ascendeu a marechal no Exército Real de Leifas. O maxilar era fino, sem qualquer bigode ou barba, à exceção das costeletas espessas. Seu cabelo castanho tinha uma franja que chegava perto dos seus olhos cor de mel, dificultando que qualquer um entendesse o que sentia.
— Podemos entrar, senhor? — perguntou um homem jovem de longos cabelos negros.
Dois homens chegaram em sua sala. Sem entrar, prestaram continência ao superior. Vestiam elegantes uniformes azuis-marinhos, enfeitados com medalhas, botões, bordados, alamares e dragonas douradas. Abaixo da cintura, calças brancas e botas negras. As espadas enfeitadas encerravam qualquer dúvida de que eram membros do generalato.
— Pode sim, Kurco — autorizou o marechal.
A dupla entrou no escritório, um deles segurando um envelope amarelado. Era velho, com cabelos já grisalhos, mas a ausência de entradas em seu cabelo e seus olhos azuis garantiam que tivesse uma aura mais nova do que tinha direito.
— Algum motivo específico para a visita?
— Tem a ver com a captura do barão de Jorodar, senhor — disse o grisalho. — O grupo que o prendeu encontrou essa correspondência — estendeu a carta para Juno — em uma das peças de roupa de Muromets.
— Muromets foi capturado semana passada, por que isso não chegou antes?
— Segundo o oficial do regimento mercenário — explicou Kurco —, o conteúdo aparenta ser muito importante. Ele recusou qualquer tentativa de passarem a carta por um terceiro, exigindo que apenas alguém com a patente superior ao de major-general recebesse a carta e que o primeiro a lê-la fosse o senhor.
— O coronel mercenário — completou o segundo general, chamado Rovibar —, Olie Walifer, disse que esta era sua terceira tentativa de entregar a carta, sendo impedido nas anteriores. Por sorte, Kurco passava por perto no momento que os guardas do acampamento o barravam.
— Isso foi hoje de manhã. Esperei até a tarde porque sabia que estavas bastante ocupado hoje — Kurco terminou a explicação.
Juno abriu o envelope enquanto os dois explanavam, começando a leitura assim que o general de cabelo comprido fechou a boca. A primeira coisa que seus olhos deram conta foi o símbolo da Igreja de Kolur, conhecido como “A Mão da Sabedoria”.
Por mais que fosse um homem difícil de ler, o marechal foi incapaz de esconder a surpresa ao ler a carta. Os outros dois generais estranharam a reação súbita do comandante, crescendo em curiosidade ao perceber que Juno se mostrava mais surpreso conforme lia.
— É uma carta do frade Astovi para o barão — explicou em um tom calmo.
Foi uma surpresa para os dois generais. Kurco, em especial, chegou a deixar escapar um assovio de espanto.
— Incrível como bastardos se entendem! — O jovem general de cabelo longo quebrou o formalismo com uma risada. — O que ele queria com o Jorodar?
— Segundo ele, está trabalhando em um “projeto”. A carta inteira é sobre isso, mas ele evita dizer o que é. Astovi faz questão de dizer que explicará depois.
— Muromets não possui muitas ligações com a Igreja de Kolur, qual o sentido do frade procurá-lo? — indagou Rovibar.
— Aparentemente — Juno estendeu a carta para Rovibar, que começou a lê-la —, Muromets sabia alguma coisa das Artes de Merá, do Vivo e Tocável, que atraiu o interesse de Astovi. O frade achava que as habilidades que o barão de Jorodar herdou do avô mério poderiam ser úteis para seu trabalho.
— Realmente, não diz em momento algum o que é — Rovibar disse ao terminar a leitura de metade da mensagem. — Parece que ele tem alguma carta na manga. O fato dele esconder de Jorodar até que estivessem juntos mostra que ele desejava sigilo máximo.
— Seria um golem? — Kurco perguntou. — O conhecimento da Bênção de Merá e do Vivo e Tocável ajudaria a lidar com a Matéria Virgem. Como é bruxaria élfica, não duvido que Astovi estivesse com dificuldade.
— Pouco provável — respondeu Juno. — Golems são armas gilinesas e Astovi abomina tudo que venha dos odavitas. Isso sem falar que gilineses e gomeneses escondem os procedimentos para produção de um golem a sete chaves, tanto que até hoje só temos teorias de como funcionam.
— Por sorte — Rovibar falou com um sorriso no rosto —, Astovi está por perto. A mensagem informa que Jorodar devia encontrá-lo em Novagillisya, uma vila ao sudeste.
— Ele informou até o imóvel. Uma cabana um tanto afastada, dentro do bosque que cerca o vilarejo.
— Então vamos para Novagillisya! Quem deverá fazer a captura do frade? — indagou Kurco.
— O regimento da Noligre é a escolha mais óbvia. Eles prenderam Muromets, nada mais justo que eles tenham a honra de capturar Astovi.
— Fazes bem, senhor — disse Rovibar. — Demos um voto de confiança e eles cumpriram a missão. Os regimentos da Noligre são uma força digna de respeito.
— Primeiro Grozyr, depois Muromets, agora o frade Astovi… — Kurco mostrou um sorriso no canto da boca. — Estás bem encaminhado, Juno. Quem sabe se no futuro até Nofrezyr aparece!
As palavras do jovem comandante mudaram a face do marechal. Suas sobrancelhas afundaram nos olhos, tornando o branco dos olhos do marechal a única luz em seu rosto.
Kurco recebeu um olhar tão odioso que seu peito parou por um momento. Ele tentou esconder o arrependimento com um sorriso forçado inútil. Um ninho de vespas havia sido chutado.
— General Rovibar, poderia deixar-nos a sós? Tenho um assunto a tratar com o senhor Survin — falou com calma.
Ao ouvir Juno chamar Kurco pelo primeiro nome, Rovibar entendeu que era a conversa passava longe de ser simples. Sem uma única palavra, ele assentiu e saudou o superior. Deu meia volta e saiu da sala com pressa nas pernas.
O marechal assistiu o homem grisalho se retirar, esperando com paciência que o general fechasse a porta.
— Perdão, Juno. — Kurco se adiantou.
— Muitos pedem perdão, Survin, mas quantos entendem a ofensa?
— Você sabe que eu não queria falar do filho de meretriz na frente de Rovibar. Se estivéssemos a sós, você sequer teria feito alarde.
— Mas não estávamos a sós, general. — Sua voz soou baixa, mas implacável. — Já disse: não quero nenhuma menção ao gilinês enquanto ele não estiver nas minhas mãos, compreendido?
— Sim, marechal — Kurco assentiu envergonhado.
Ao ver seu subordinado se submeter, Juno expirou.
— Por mais que não seja a primeira vez que você faz isso, e nem será a última, serei tolo em aceitar suas palavras como a garantia.
Mais uma vez, Kurco assentiu. O marechal se sentiu mal, uma vez que o general era um amigo antigo. Porém, desde que virou comandante em chefe e cônsul republicano, tentava manter uma relação puramente profissional. Seu cargo de autoridade suprema do Exército Republicano de Leifas era indiferente à amizade. Precisava se mostrar duro quando desobedecido.
— Enfim — tentou mudar de assunto —, novidades das tropas na vanguarda? Alguma movimentação dos soldados da princesa?
— Segundo Madro, o I Corpo de Exército não encontrou sinais de movimentação suspeita inimiga. O exército alvirrubro mantém os ataques de reconhecimento em força na linha de contato desde a última batalha.
— Ainda se recuperando da derrota — Juno concluiu. — Vai demorar um tempo para que voltem a nos atormentar.
— Pelo que os espiões nos disseram, o Grão-Mestre Maravi e a Ordem dos Cavaleiros de Erinovi continuam em Revragova.
— Por mais que eu ache que eles não atacarão, essa notícia é da semana passada. A situação pode ter mudado.
Kurco negou com a cabeça. Com uma expressão relaxada, mostrou-se recuperado da reprimenda.
— Pouco provável. Seis mil cavaleiros não farão uma diferença grande. O que falta no exército da princesa Nasti é infantaria e, principalmente, artilharia, já que a maioria das forjas estão em nosso território.
— Então temos uma chance sólida de atacar o sul. Aproveitaremos a fraqueza da princesa para finalizar o príncipe Garuín.
Dessa vez foi Kurco que fechou a cara. Juno fingiu-se de cego com a atitude do general e voltou a atenção para a mesa, dividindo-se entre ler o livreto e anotar nos papéis.
— Tens certeza que vais avançar contra Garuín? Ele é só um moleque de oito anos, a princesa deveria ser nossa prioridade.
— O problema não é Garuín, Kurco, mas quem controla ele. Você sabe muito bem disso.
O general decidiu se manter em silêncio. A bronca por citar o nome proibido pesou em sua decisão de evitar o assunto.
— Me diga, Kurco, como estão as forças da princesa na frente sul?
— Os alvirrubros quase não tem forças no sul. Não haverá resistência da coroa de Revragova no território garuísta.
— E os garuístas, como estão suas forças?
— Estimamos duas divisões de infantaria e uma brigada de cavalaria, além de trinta canhões. Devem ser pouco mais de dez mil homens.
— Algum comandante notável nas fileiras dos gravatas azuis?
— Se não me falha a memória, apenas o general Levefder.
“O que ele quer com esse interrogatório?”, indagou Kurco, sentindo-se ansioso. “A maior parte dessas coisas ele já sabe ou nem se preocupa.”
— Considerando os números do inimigo, seus comandantes e a situação das tropas da princesa, você acredita que nós conseguiremos derrotá-lo sem prejudicar o teatro de operações?
A pergunta foi como um xeque-mate. Juno lançou Kurco contra a razão e os números em poucas palavras.
— Temos quatro corpos de exército, fora o de Saravi, cercado em Bulirka. Nossas forças são mais que suficientes para lidar com o inimigo — falou com decepção, porém conformado.
— Isso mesmo — disse o marechal, satisfeito. — Não só temos homens suficientes, como temos soldados presos em terreno inimigo, bem lembrado da sua parte. Estás dispensado.
Juno fez como se Kurco já tivesse saído da sala, voltando para o trabalho burocrático dos papéis. Ao notar que seu subordinado permanecia estático, interrompeu o trabalho e o fitou sem virar sua face, como em uma ordem para deixá-lo só.
Kurco expirou, admitindo a derrota. Ele saudou o marechal e, após dar meia volta, saiu pela mesma porta que entrou minutos antes, abandonando o comandante e seus papéis.