A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 7
Quinta-feira, dia 12 de Fevereiro. Passaram-se uma semana e meia desde a captura de Muromets. O regimento da Companhia Noligre permaneceu estacionado em Jorodar e, por ironia, o quartel invadido tornou-se sua base temporária.
A unidade mercenária era formada por dois batalhões que se alternavam entre cuidar da instalação conquistada e patrulhar o entorno da cidade. Neste dia em específico, O 2º Batalhão Noligre ficou responsável por guardar o perímetro urbano.
Os soldados odiavam as patrulhas, mas até o mais reclamão admitia que era preferível ao combate. A beleza dos bosques leifaneses também ajudava a matar o tédio, uma vez que a vegetação temperada era quase mística para pessoas acostumadas com o clima tropical.
Músicas em flauta e tambor soavam pelos instrumentos da banda, acompanhados por um coro tão desafinado quanto alegre. Cantavam para si refrães sobre glórias antigas, do tempo em que seus batalhões ganharam a merecida fama.
Lutamos por Madame Verina,
Se erguerão os bravos do Sul!
Serão milhões em Gilina,
A se curvar ao estandarte azul!
— Eles vão caminhar um bocado pra chegar aqui — Tevoul disse ao ver a companhia cantarolar pela estrada.
— Mais ou menos meio quilômetro — respondeu Tadeu.
Ambos estavam em uma área arborizada afastada do centro urbano. Entre a cidade e o bosque havia um largo campo de vegetação rasteira, ideal para pastagem e plantio.
Tadeu contemplou a beleza do local junto do amigo. A paisagem era reconfortante. Um equivalente mental da sensação de tirar quilos de carga das costas após um dia de labuta.
— Tadeu Ávera, o homem que capturou o barão de Jorodar! — Tevoul proclamou. Depois, sentou-se em um tronco de árvore caído. — Até que o velho deu problema.
— É, foi difícil. — Tadeu sorriu. Ele se escorou na árvore mais próxima do amigo. — Depois você diz que não sei lutar com espadas.
— Não finja que aprendeu de repente, Tadeu. Se você tivesse lutado só, teria sido fatiado pelo barão.
— Acredite no que quiser. — O mercenário fingiu que fazia pouco da opinião do colega. No fundo, sabia que era verdade. — Acha que vamos receber uma medalha?
— Se o capitão for humilde… Mas tenho a impressão que o senhor Cefas Orleno vai dizer que fez tudo sozinho.
— Pior que o Cefas é do tipo que faria isso. — Tadeu aborreceu-se, exalando todo o ar do peito.
Seu amigo ruivo notou o descontentamento. Tevoul sabia do valor exagerado que seu parceiro dava em ser reconhecido, mas nunca deixou de achar um tanto estranho.
— Não acha que você leva isso muito a sério?
— Como assim?
— Ah, não sei. — Tevoul procurou uma forma de explicar melhor. — Às vezes, parece que você prefere uma medalha aos dois braços.
Tadeu riu, mas o comentário o deixou pensativo.
— Ficar parado não vai me ajudar a ser promovido. Ou você acha melhor ficar como soldado pelo resto da vida?
— Eu não me importo. Ser soldado na Noligre paga o bastante pra eu não passar fome e ainda sombra pra eu mandar pros meus velhos.
— Nunca pensou em se esforçar mais? Talvez você conseguisse um salário maior e, de quebra, seus pais teriam mais dinheiro.
— Não. — Relaxado, ele se espreguiçou no tronco, quase se deitando. — Quando eu achar que ganhei o suficiente, eu vazo dessa vida. Prefiro trabalhos que não me matem antes dos vinte e cinco.
— Mas também não vai conseguir um trabalho que façam se lembrar de você.
— Por que eu iria querer que se lembrem de mim? — Tevoul perguntou, desconfiado.
Tadeu matou o clima descontraído com uma expressão apreensiva. Havia tocado em um assunto evitável, mas sabia que era tarde demais para fugir.
— Porque, querendo ou não, todo mundo é lembrado pelo que fez. Você acaba esquecido se não fizer nada de importante.
— Acho melhor que me esqueçam do que me lembrem por ser mercenário. A profissão paga bem, mas as pessoas pensam tudo de ruim da gente. Acho que só a Madame Verina conseguiu ser mercenária e heroína ao mesmo tempo. — Ele ergueu o indicador. — E ainda ganhou fama de louca.
O mercenário moreno refletiu no que o colega lhe disse. A sombra de uma má fama era tão hórrida quanto o esquecimento, talvez até mais. Conseguiu achar exemplos até em sua própria família sem se esforçar muito.
— É, você tem razão.
— Os oficiais, por exemplo. Você acha que as pessoas vão pensar bem do Walifer e do Cefas por lutarem pela República degoladora de reis?
— Meio que o rei era ruim e os republicanos queriam o melhor pro país, não?
O ruivo ergueu uma sobrancelha. Tadeu parecia mostrar uma estranha amistosidade à causa colorada.
— Anda meio revolucionário, Tadeu. Se quiser, ainda falta um líder para uma república em Selamica.
— Nem se Faor me pedisse. — O mercenário revirou os olhos. — Só acho que se a revolução matou o rei, é porque deve ter tido um bom motivo. — Estava incerto da resposta. Ainda havia peças faltantes naquele quebra-cabeça que ele nunca compreendeu. — Mas não entendo os motivos do marechal. Se parar pra pensar, não faz sentido ele ter se juntado aos colorados.
— Como assim?
— Pense bem: ele não foi promovido a marechal porque lutou contra revolucionários nas colônias? Ele está onde está por conta da nobreza e até lutou com republicanos no passado. Não é estranho?
— Faz sentido. Agora que você falou, o marechal parece mais um ingrato do que um revolucionário.
— Gratidão não alimenta o povo, meu bom rapaz — disse um terceiro, intrometendo-se.
Tadeu e Tevoul viraram-se para o homem que ouvia a conversa. Ficaram pálidos ao verem o uniforme azul de detalhes dourados e o broche da flor de cinco pétalas na lapela.
“Um general!”, Tevoul mentalizou em desespero. “Por que, Faor?!”
Os dois sabiam como os revolucionários tratavam quem os questionava. “A lâmina da guilhotina é do mesmo tamanho da língua dos faladores” era bem mais que um simples ditado republicano.
— Mil perdões, general! — Tevoul clamou, pensando se seria melhor se ajoelhar ou se curvar. — Meu amigo é um falastrão e a cabeça dele não pensa muito bem. Juro que iria repreender ele se o senhor não chegasse!
— Calma, soldado — disse Rovibar, contendo o riso como um cavalheiro. — Não vejo em que se questionar por quem arriscamos nossas vidas é um crime. O seu companheiro está certo em fazer perguntas.
O general se mostrou um senhor distinto e educado. Ao contrário da maioria dos comandantes, era sabido que ele tentava se manter próximo aos seus praças e oficiais menores. Visitava as tropas a pé sempre que podia.
— A quanto tempo está ouvindo nossa conversa? — perguntou Tadeu, ainda preocupado.
— Desde que o rapaz falou que não queria morrer antes dos vinte e cinco. — Rovibar soltou uma gargalhada curta e controlada. — Confesso que não é a ação mais nobre ouvir conversas alheias, porém não pude resistir. É sempre bom entender o sentimento dos soldados com quem lutamos.
O comandante cumprimentou ambos e se apresentou. Fez questão de explicar sua posição em relação aos dois e sua patente: tenente-general, um comandante de divisão de exército.
— O marechal Juno fez carreira graças a nobreza, isso é verdade. Porém, com bem disseste, não tem sangue azul. Se os próprios nobres deixaram que ele chegasse à honra de marechal, é porque sabiam que seu talento era muito raro para ser desperdiçado.
— Então por que ele apoiou a República em vez do rei?
— Tadeu! — disse Tevoul. — Não abuse da boa vontade do general!
— Juno é um homem inteligente, rapaz. Creio que, em algum momento, ele percebeu o que filósofos e eruditos dizem há séculos: o rei é uma figura cujo poder não corresponde ao povo. Para cada bom monarca, sempre existirão uma centena de tiranos como Carasovi.
O mercenário acenou com a cabeça em concordância, por mais que considerasse a resposta um tanto vaga.
— Bem, espero ter ajudado com suas dúvidas, jovens.
— Senhor Rovibar! Senhor Rovibar!
O general olhou para trás, vendo um mensageiro de uniforme vermelho e capacete se aproximar.
O cavaleiro desceu com pressa da montaria e correu ao general, a fim de entregá-lo um papel. Rovibar abriu o envelope e o leu cada linha com calma e atenção e, ao terminar, voltou-se ao carteiro.
— Obrigado… Seu nome, rapaz?
— Erinovi Tcharnilki, senhor! — respondeu a pergunta junto de uma saudação.
— Certo, Erinovi. Estás dispensado.
O cavaleiro acenou com a cabeça e montou-se outra vez no cavalo, partindo na velocidade de um trote.
— Erinovi Magno… isso sim era um rei! Mas a maioria não é assim. — O general se dirigiu aos mercenários, mostrando nostalgia por um tempo que nunca viveu. — Enfim, precisarei me ausentar. Foi boa a conversa com vocês, rapazes. Espero vê-los outra vez.
— Tomara, general! — Tevoul falou com um sorriso de orelha a orelha. — Tenho certeza que nos alegraremos quando vermos o senhor outra vez!
Rovibar se despediu da dupla com a mesma cordialidade de quando os encontrou. Tão subitamente quanto chegou, o general partiu.
***
Naquele mesmo dia, pela tarde, Walifer chamou seu regimento para uma reunião no quartel. O coronel ordenou que todos os seus soldados viessem com seus uniformes solenes e todas as medalhas.
O pátio do lugar estava ocupado pelos quase novecentos homens dos dois batalhões, ambos separados por um corredor ao centro que permitia a passagem dos oficiais.
Walifer entrou pelo corredor, acompanhado de seus dois majores, comandantes das duas subdivisões. Um pouco atrás, quatro ajudantes de ordens também os acompanhavam.
O grupo marchou até ultrapassar as duas formações. Em uma meia volta, ficaram de frente para todo o regimento, com Walifer ao centro e os dois chefes de batalhão em seus flancos.
— Boa tarde, soldados e oficiais da Companhia Noligre de Borgin e Verina — o velho oficial proclamou. — Hoje, discutiremos os desenvolvimentos dos últimos dias, bem como a próxima ação da nossa unidade. — Um dos ajudantes de ordens, à sua direita, lhe entregou um papel. Walifer desdobrou a mensagem. — No tocante ao engajamento da segunda-feira da semana passada, gostaria de anunciar que haverá uma premiação pela captura do Barão de Jorodar.
Naturalmente, o burburinho surgiu. Todos sabiam que a captura do nobre seria condecorada, mas uma boa parte dos soldados desconheciam os participantes da ação.
Boatos sobre a captura correram em cada fileira. Alguns soldados falavam que o capitão Cefas havia feito tudo sozinho. Outros, mais ousados, diziam que ele havia sido atrapalhado por dois soldados, mas que prendeu o barão do mesmo jeito.
— Capitão Cefas Orleno, apresente-se.
Os olhares se voltaram ao oficial. Cefas se esgueirou da larga massa de homens do 2º Batalhão e se dirigiu em passos lentos para o trio de oficiais. Ele vestia todas as suas condecorações no uniforme, ostentando dez medalhas no peito esquerdo, quatro prateadas e seis de bronze.
Pondo-se de frente ao Coronel, o capitão prostrou-se pondo um joelho no chão e curvou sua cabeça. Os majores ao lado de Walifer desembainharam suas espadas com elegância, descansando as lâminas sobre os ombros do oficial.
— É com imenso prazer que eu, Coronel Olie Walifer, do 3º Regimento Noligre, anuncio ao capitão Cefas, comandante da 4ª Companhia do 2º Batalhão, a premiação de uma Medalha de Vitória e Liderança pela captura do Barão de Jorodar.
Um dos ajudantes de ordens de Walifer se aproximou com uma pequena caixa aberta, da qual o coronel retirou a medalha prateada de fita vermelha e verde.
Cefas se levantou da posição prostrada, ainda com as duas espadas sobre os ombros. Walifer atravessou com cuidado a agulha do broche no uniforme do subalterno, pondo a nova condecoração do lado de outra igual.
— Esta é sua segunda Medalha da Vitória, capitão Orleno — falou com satisfação em sua voz. — Meus parabéns.
Os dois chefes de batalhão levantaram as espadas dos ombros do oficial e as guardaram nas bainhas. Uma ovação se iniciou. Soldados aplaudiam e gritavam como uma classe do fundamental.
— E lá se vai nossa chance… — disse Tadeu.
— Acho que a gente já esperava por isso. — Tevoul interrompeu os aplausos. Ele acariciou sua única medalha, encarando as três do companheiro. — Inclusive, acho que você tá reclamando de barriga cheia.
A celebração acabou assim que Walifer levantou a destra. Novamente, um dos subordinados do coronel entregou-lhe um envelope. O coronel leu a carta, mas parecia um tanto duvidoso. Ele se voltou para o capitão recém-honrado e sussurrou-lhe poucas palavras no ouvido.
Cefas acenou com a cabeça assim que o velho oficial terminou de lhe questionar. Ambos olharam de relance para o 2º Batalhão.
— Tevoul Darville e Tadeu Ávera, do 2º Batalhão, apresentem-se.
Os dois mercenários se entreolharam. Ao olhar para a frente, viram Cefas sorrir enquanto balançava a cabeça, chamando-os para perto.
A dupla saiu da formação e se dirigiu ao grupo de oficiais pelo corredor. Durante todo o percurso, os outros soldados de ambos os batalhões tentavam dar tapas e puxões em ambos, tentando parabenizá-los.
Assim como o capitão, os mercenários cortaram a caminhada ao ficarem face a face com o coronel, ajoelhando-se em seguida.
Walifer chamou dois dos ajudantes. Eles desembainharam seus sabres e puseram as lâminas sobre os ombros direitos de ambos. Depois, os majores posicionaram suas armas nos ombros esquerdos da dupla.
— Tevoul Darville de Tourses — disse o coronel.
— Tadeu Ávera de Gunere — declarou o capitão.
— Como parte do oficialato da Companhia Noligre de Borgin e Verina — Walifer proclamou —, anunciamos a premiação da primeira Medalha de Vitória e Combate de vossas carreiras.
Enquanto as medalhas de bronze eram fixadas nos peitos de ambos, uma onda de gritos e aplausos soaram pelo regimento. Cada soldado estava em êxtase pelos dois praças recebendo a honraria, quase como se fossem eles os premiados.
Naquele dia, a conquista da dupla também foi a do seus irmãos de armas.