A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 8
— Por último, falaremos sobre a próxima tarefa do regimento.
As premiações haviam cessado. Depois da última medalha, Walifer passou a descrever a nova missão vinda do alto-comando.
— Assim como no último engajamento, nossa tarefa será capturar um inimigo da República. Dessa vez, trata-se do frade Astovi, um religioso da Igreja de Kolur.
“Será que tem a ver com aquela carta?”, Tadeu perguntou para si. Ele olhou para o lado, buscando Tevoul. O mercenário ruivo entendeu o questionamento do amigo e deu de ombros.
— Ao contrário do barão de Jorodar, não se espera que Astovi possua proteção. O lugar onde ele se esconde está dentro do território ocupado pelas tropas republicanas, o que significa que não esperamos grandes esforços para capturar o homem. Enviaremos apenas uma companhia para a vila de Novagillisya, uma força total de setenta homens.
— Setenta homens para prender um? — Tevoul indagou com surpresa. — O que o beato vai fazer? Rezar até abrir um buraco no chão para engolir todos nós?
— Tem alguma coisa errada. — Tadeu mostrou-se preocupado.
— Nah, o velho Walifer gosta de exagerar mesmo. Se ele pudesse, mandaria um batalhão inteiro. Mas, como ele sabe que os outros reclamariam do exagero, preferiu mandar só setenta.
A fala de Tevoul entrou por um ouvido de Tadeu e saiu pelo outro. Todos sabiam da fama do coronel, mas o mercenário moreno sentia que o motivo de tamanha força era mais complicado que mera cautela.
— Considerando as três últimas premiações, nada mais justo que a 4ª Companhia do 2º Batalhão seja a responsável pela captura do frade Astovi. — Walifer pôs a mão sobre o ombro esquerdo de Cefas, o levando mais à frente. — Confiarei na liderança excepcional do capitão Orleno para essa missão.
— Não iremos desapontá-lo, coronel.
— Assim espero. — Walifer conseguia sentir a determinação nas palavras de Cefas. — Com isso, encerramos a reunião. Amanhã a 4ª Companhia partirá para a vila de Novagillisya e nos trará mais uma conquista!
Os soldados tomaram suas armas e as levantaram para o alto, junto de um poderoso brado de guerra. Na manhã seguinte, a Noligre iria à batalha.
***
A vila de Novagillisya era quase o oposto da bela cidade de Jorodar. O lugar fedia a urina. Moscas voavam por toda parte em busca de restos de animais mortos e comida estragada. Um abatedouro era menos repulsivo.
A estrada, além de mal caber uma carroça, estava encharcada. A neve derretida do inverno havia criado um caminho lamacento que dificultava o andar do que ousasse passar por cima.
— Lama maldita! — Cefas expressou seu ódio assim que afundou sua perna em uma poça.
— É Rasputitsa¹, senhor — um homem em uniforme colorado explicou com um sotaque pesado. — As estradas do Norte ganham esse “pavimento especial” todas as primaveras e outonos.
O ajudante de ordens de Cefas, chamado Laviel, fez questão de explicar-lhe o clima leifanês. De cabelo negro e olhos azuis, era cabo do Exército Republicano e fluente na língua do Sul, o que lhe rendeu um cargo de tradutor para os mercenários estrangeiros.
— Eu não me importo qual o maldito nome vocês dão pra merda da lama. Não faz desse lugar nem um pouco menos miserável!
Ao contrário de se ofender, o cabo riu da reclamação. Ele estendeu o braço para Cefas e o ajudou a sair do buraco, puxando-o até que saísse por completo.
Laviel esperou um agradecimento após a boa ação, porém foi desprezado. Assim como antes, o leifanês deu de ombros.
— A cabana é um pouco afastada do vilarejo — o republicano explicou. — Parece que Astovi queria ser o mais discreto possível.
— As estradas pra lá vão ser menos deprimentes, pelo menos?
— Não vai ter que se incomodar com as estradas dessa vez, capitão. Não há nenhuma para onde estamos indo.
A companhia atravessou a vila sob o olhar dos locais. Por onde passavam, atraíam desconfiança dos camponeses, que os encaravam como a reencarnação de demônios. Havia algo estranho escondendo-se no fedor de carniça.
Após sair de Novagillisya, o grupo entrou no bosque que cercava o caminho enlamaçado pela direção leste. Lá o chão era mais firme que na estrada, graças a vegetação rasteira. As árvores, vidoeiros-brancos, muito comuns na Tautânia, ficavam próximas umas das outras, impedindo que qualquer formação em linha fosse mantida.
Cefas ordenou que os soldados fizessem uma pausa após minutos de caminhada. Uma oportunidade perfeita para repor as energias e cantis.
As calças cinzentas dos mercenários estavam arruinadas pela lama negra, mesmo que suas botas tivessem impedido uma grosseria pior. Como a maioria dos soldados usavam seus sobretudos de campanha por cima do uniforme, a parte de cima dos homens manteve-se limpa.
— Olha, eu vivi na Lovarie por um tempo e nunca tinha visto tanta lama. E olha que lá chove quase todo dia!
— Alen, Alen — Tevoul falou enquanto ajudava a desatolar Tadeu. — Não faça a Lovarie parecer pior do que já é!
— Falou o cara de Mautinir.
— É claro que eu falo! Você querendo comparar aquele pântano com a minha Mautinir. — Desviou a atenção para Tadeu. — Já desatolou?
Tadeu balançou a cabeça em afirmação. Tevoul, que carregava o mosquete do colega no ombro, devolveu-lhe a arma.
— Tadeu é de Gunere — Alen salientou. — Ouvi dizer que lá também chove um bocado.
— Lá chove muito no meio do ano, mas bem menos que na Lovarie. Também não tem metade desse lamaçal.
— O clima de lá é de interior, as chuvas são piores no litoral mesmo — Alen explicou. — Mas, no geral, todos os eleitorados da antiga Confederação tem mais chuva que no resto do Sul.
Alen era o mercenário que mais interagia com a dupla. Tinha a aparência de um jovem comum oriundo do Sul, com as únicas diferenças notáveis sendo a pele um pouco mais clara que o bronze tradicional de um selamico e os cabelos em um tom castanho quase avermelhado.
— Vocês três! — uma voz chamou por detrás das árvores. — Não acham que estão jogando conversa demais pra quem devia estar em patrulha?
Para a infelicidade do trio, a voz rouca denunciava a identidade do homem. Ele se aproximou dos três enquanto os acusava com o dedo, quase tropeçando na lama por desatenção.
Com a face arredondada e bochechas caídas, o cabo Leto fazia a vida de qualquer um sob o seu comando um inferno na Terra.
— Perguntamos pro Dario e ele deixou a gente ficar um pouco atrás — Alen explicou.
— E desde quando o Dario manda em alguma coisa? Eu que sou o líder dessa unidade!
A característica mais odiada de Leto: soberba. Mesmo sendo um cabo — um praça, como os soldados que comandava —, o homem agia com a arrogância de um oficial de alta patente.
Alguns atribuíam seu modo de agir ao fato de ser o “protegido” do coronel regimental. Para as tropas, era um mistério como um oficial dedicado e gentil feito Walifer apoiava um asco que nem Leto.
— Vamos, miseráveis, mexam-se!
— Senhor — Tadeu tentou acalmar os ânimos —, o capitão disse para fazermos uma pausa. Isso sem contar que ainda não chegamos na cabana. Não seria melhor…
— Se um dia eu precisar da opinião de um bastardo como você, eu aviso.
— Fica calmo, Leto — Tevoul ousou provocá-lo. — Você ainda é um cabo, lembra?
O homem paralisou após o comentário, descrente da audácia do ruivo. Seu olho direito começou a piscar. A testa franziu enquanto suas sobrancelhas afundaram dentro da cara. Os braços do cabo começaram a chacoalhar de tal forma que o trio pensou que ele explodiria. Estava vermelho como um pimentão.
Por sorte, Leto preferiu socar a árvore ao seu lado. Saiu da presença dos mercenários com os passos martelando o chão, feito uma criança birrenta.
Tadeu, Tevoul e Alen assistiram o homem partir com alívio. Mesmo que aquilo fosse longe do pior que Tevoul era capaz de dizer, o cabo parecia furioso o suficiente para arrancar suas cabeças.
— Credo… O que deu nele? Os outros cabos são mais bem-humorados! — Alen se espantou.
O grupo se manteve em um silêncio constrangedor, esperando que algum dos três quebrasse a aura pesada. Era como se Leto tivesse sugado toda sua vontade de conversar.
— Ele tá andando com Cefas, deve ser isso. Aí fica tentando ser igual ao capitão. Até as entradas da calvície ele tá imitando!
Tadeu e Alen riram da piada de Tevoul, tentando ser discretos para que o cabo se mantivesse despercebido.
— Só faz esse tipo de piada porque ainda tem cabelo — disse Tadeu. — Cuidado pra não terminar como Holrandor.
Ao ser comparado com o lendário guerreiro careca, Tevoul levantou a barretina e balançou os fios ruivos da cabeça, checando se ainda estavam todos ali.
— Graças aos deuses, ainda vai demorar um pouco.
— Deixem Leto para lá — Alen decidiu mudar de assunto —, quero saber de vocês dois. Como foi capturar o barão?
— Foi sofrido — Tadeu respondeu. — O guarda-costas do barão era um feiticeiro do fogo. Ele feriu Cefas logo no começo da luta.
— Mas Tadeu pensou rápido — Tevoul se intrometeu. — Ele pegou a caixa de munição e jogou na mão com fogo do infeliz. Os dedos do homem foram pelos ares. — O mercenário fez uma explosão com as mãos.
Alen estranhou a tática estranha de Tadeu.
— Tava querendo morrer, Tadeu? — falou em um tom julgador, mas soou quase como um conselho.
— Na hora, foi o que eu consegui pensar.
— Você tem que pensar mais antes de fazer uma coisa assim. Numa dessas, termina morto.
Tadeu fez-se de surdo. Cefas e Tevoul haviam dito coisas parecidas. Era como se todos tivessem decidido implicar com seus métodos de uma hora para outra.
“A gente não ganhou? Qual o problema, então?”, pensou.
De repente, um disparo ecoou pelo bosque, espantando os pássaros no topo das árvores. O trio olhou para a direção do barulho do tiro, tentando adivinhar de onde viera o estampido.
— Será algum animal? — Alen perguntou.
Mais três estampidos soaram pelo ar, em resposta ao anterior. Ao calar do último disparo, um grito visceral de dor clamou por socorro.
Tadeu tomou o mosquete pela bandoleira e o tirou das costas. Os outros dois copiaram o colega e o encararam, esperando que ele tomasse uma decisão.
— Vamos! — Tadeu tomou a vanguarda.
O grupo correu pelo mesmo caminho que o cabo havia usado para se encontrar com o resto da esquadra. O barulho dos os tiros se tornava mais alto a cada passo. Balas assoviavam acima de suas cabeças, forçando o bando a avançar agachado, quase de cócoras. Bastaria que o inimigo visse o vulto de um deles para por todos em perigo.
— Vocês três! — gritou uma voz familiar.
O trio olhou para frente e viu Leto agachado. O homem agitava seu braço esquerdo, chamando o grupo para perto. Com a outra mão, martelava a vareta do mosquete dentro do cano, tentando encaixar o projétil.
Mesmo com os disparos constantes, os três soldados foram de encontro ao superior com todo o cuidado para ficarem mais baixos que a vegetação.
— Escutem — Leto falou ao ver o último dos três olhar para ele. — A esquadra está suprimida pelo inimigo. Preciso que vocês cubram as minhas costas enquanto eu vou falar com o capitão.
Os três soldados arregalaram os olhos.
— Mas e o resto do grupo? — perguntou Alen. — Vai deixar eles lutando sós?
— Se você quiser morrer pra ajudá-los, vá. Eu vou atrás do capitão Orleno.
O cabo se levantou e correu na direção oposta ao tiroteio. O trio mal pode conter o ódio em suas faces ao ver o homem sair da ação.
— Covarde! — Tevoul gritou.
— Merda… O que a gente faz agora? — Alen buscou ajuda em Tadeu.
Mais um grito rugiu de um ferido enquanto o mercenário pensava. O tempo se esgotava conforme eles ficavam parados. Desconheciam quantos inimigos os esperavam. Também era impossível saber quanto tempo seus colegas suportariam sob fogo. Só uma coisa era certa: precisavam agir.
Sem falar uma única palavra, Tadeu correu para dentro da vegetação. Tevoul e Alen foram pegos de surpresa, mas logo o acompanharam bosque adentro.
O grupo avançou camuflado pelas plantas em uma tentativa de contornar a estrada e acertar o inimigo pelo flanco. Por sorte, o mesmo verde que os escondia também ajudava na locomoção. A grama tornava o chão firme, permitindo que os três caminhassem sem atolar.
Eles tinham emoções conflitantes. Havia o medo de serem encontrados pelo inimigo, o que significaria a morte. Porém, o dever de ajudar seus colegas falava mais alto, ainda mais depois de serem abandonados por seu cabo.
— Ali — Tevoul sussurrou, apontando seu mosquete na direção que olhava.
Os outros dois mercenários pararam o avanço. Tadeu e Alen tiraram suas barretinas e tomaram coragem para olhar por cima das plantas, logo achando o que Tevoul havia visto.
Longe em quase cinquenta metros, um grupo com cerca de uma dúzia atirava contra a unidade mercenária. Todos vestiam roupas de civis, com camisas de botões, coletes e chapéus tricórnios. A única exceção era o que aparentava ser seu líder, vestindo-se como um oficial alvirrubro.
Para o alívio do trio, a pequena força de milícia tinha dois feridos no chão, evidenciando que os gritos que ouviram foram do inimigo em vez de seus colegas.
— Tevoul? — Tadeu perguntou.
Quase como se pudesse ler a mente do amigo, o mercenário assentiu ao comando, deitando-se no chão.
Tadeu e Alen se dividiram entre a esquerda e a direita do ruivo. Eles afastaram a vegetação na frente da sua vista, entregando para Tevoul uma imagem clara do oficial inimigo.
Já deitado, o mercenário ruivo pôs seu pé esquerdo sobre o direito. Ele apoiou a arma sobre sua canhota, usando-a como uma plataforma para disparo.
O soldado segurou a respiração. Fechou os olhos para se concentrar, sentindo o metal frio do gatilho. Ao abri-los, olhou bem para o oficial de pele pálida.
“Até nunca mais”, Tevoul disse para si enquanto seu dedo descia contra o gatilho.
Em um puxão do seu indicador, uma bala voou do mosquete para a cabeça do alvirrubro, derrubando-o no chão.
Ao ver seu líder tombar, os milicianos entraram em pânico. Alguns lançaram-se para o seu corpo, enquanto outros correram de um lado para outro, alertando o resto do grupo do ataque no seu flanco esquerdo.
“São só camponeses com armas”, Tadeu pensou enquanto encarava os dois colegas. A oportunidade apareceu. “Tomara que o resto da esquadra entenda.”
— Alen! — Tadeu gritou enquanto puxava a baioneta do boldrié.
O mercenário entendeu o comando do companheiro de imediato. Alen puxou sua baioneta e a içou no cano da arma. Enquanto isso, Tevoul se levantou e logo imitou os outros dois soldados.
Três setas metálicas prontas. Restava o comando derradeiro. Tadeu tomou ar e, erguendo sua arma para o alto, gritou:
— Carga!
Notas do autor
¹Rasputitsa: como o cabo Laviel explicou, é o nome dado a lama gerada pelo derretimento de gelo após o inverno. Ela é bastante comum em países das estepes europeias feito a Ucrânia e partes da Rússia. Durante a operação Barbarossa, o exército nazista teve um verdadeiro pesadelo por conta da Rasputitsa, considerada por alguns tão importante quanto o inverno foi para barrar a ofensiva.