A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 9
O trio carregou com toda sua fúria. Ao chegar a uma curta distância, Alen e Tadeu descarregaram seus mosquetes, acertando dois inimigos e, sem perder tempo, formaram uma linha com Tevoul e partiram para um ataque à baioneta.
O grupo manteve o ímpeto, cortando a distância ao adversário. Dois homens notaram seu avanço e agarraram suas espingardas feito porretes para enfrentá-los.
Alen bloqueou o primeiro ataque com a coronha do mosquete e, em um contragolpe, girou a arma para atingir o oponente com a baioneta, forçando-o a se esquivar com um pulo para trás.
Ao aterrissar, o sujeito notou outro soldado se esgueirando por baixo, mas era tarde de mais. O ruivo foi mais rápido que seu reflexo e lançou a baioneta contra sua barriga, ferindo-o mortalmente.
Tadeu duelava com o segundo do outro lado. O miliciano tentou acertá-lo com a coronha da arma, mas o soldado evadiu com um salto para o lado. Ele se aproveitou da guarda baixa e empurrou o adversário com o ombro, acertando-lhe uma poderosa coronhada na altura da orelha.
O segundo inimigo foi ao chão. O grupo pensou em descansar, mas logo ouviram o barulho de galhos retorcidos pela mata em sua frente. Novamente em alerta, o trio voltou-se para a origem do som.
Cinco espingardeiros se ergueram do verde e apontaram suas armas para o grupo, forçando-os a se abaixar para evitar os disparos.
Balas voaram na direção dos três e atingiram os troncos das árvores ao seu redor, lançando lascas de madeira por cima de suas cabeças abaixadas.
— Ah, merda! — Tevoul gritou quando um estilhaço acertou seu braço. O mercenário agarrou o pedaço e o quebrou, mas não pôde evitar o berro de dor.
Estavam como crianças que chutaram um vespeiro. Naquele instante, a tropa inteira que emboscou a esquadra caçava os três soldados que tentavam recarregar suas armas.
— Tevoul! — Tadeu gritou preocupado. — Ainda consegue lutar?
Mesmo sem certeza, o mercenário fez que sim. Ele tentava apoiar a coronha da arma conta uma pedra enquanto colocava a pólvora no cano.
— Merda, eles estão vindo! — gritou Alen.
As baionetas inimigas engoliam o terreno enquanto lideravam a vanguarda de um grupo furioso. Os mercenários viram-se encurralados. Estavam de joelhos, mãos ocupadas com a recarga de suas armas e em menor número. Correr só atrasaria o inevitável.
Sem tempo para seguir o manual, Tadeu largou a vareta da arma e bateu a coronha do mosquete duas vezes contra o chão, fazendo a bala e a pólvora caírem. Apontou a arma para o primeiro inimigo que viu e puxou o gatilho. Para sua miséria, foi em vão.
— Parem de recarregar! — gritou.
Os outros dois desistiram da recarga e se aprontaram para o impacto. A distância entre eles encurtou como uma maré em direção a praia. Para o trio, um verdadeiro maremoto.
Uma bala rosnou pelo ar e derrubou o primeiro leifanês do grupo, surpreendendo mercenários e milicianos. Os quatro leifaneses cortaram o avanço e passaram a olhar de um lado para o outro, em dúvida de onde viera o projétil assassino.
Mais três estampidos ressoaram da sua direita e mataram dois dos espingardeiros. Pânico invadiu o peito dos dois restantes ao descobrir que eles passaram a ser a presa.
— Carga! — os três soldados gritaram em uma nova investida.
A dupla leifanesa se entreolhou e, levados pelo pavor, correram com toda a força de seus pés para a direção oposta, sendo seguidos por balas e baionetas.
A visão do inimigo correndo foi uma bênção para o trio. Tevoul, Tadeu e Alen caíram de bunda no chão, como se estivessem exaustos. Largaram suas armas sem o mínimo de cuidado, satisfeitos em sobreviver mais um dia.
Ao olhar para a esquerda, viram meia dúzia de seus colegas da Noligre correrem para ajudá-los. Era como se os céus tivessem enviado seus Arcanjos.
— Vocês estão bem? — perguntou um soldado.
— Por pouco, mas estamos — Tadeu respondeu enquanto se erguia. Preferia ter ficado no chão. — Onde está Dario?
O segundo em comando da esquadra levantou sua palma por detrás de outro mercenário. Ele cumprimentou o soldado com satisfação.
— Vocês foram ótimos. — Agarrou a mão de Tadeu firmemente enquanto o olhava nos olhos. — Obrigado pela ajuda.
Tadeu assentiu e mostrou um sorriso contente.
— Nós também te devemos, Dario — Alen se intrometeu. — A gente teria morrido se você não aparecesse.
Dario encarou os outros dois mercenários, cada um confirmando com a cabeça. Ele soltou uma curta risada.
— Bem, então nossa conta está zerada.
O grupo prosseguiu com os agradecimentos até notarem a aproximação de Leto. Ele emergiu do meio das árvores de caule branco com um grupo de quatro soldados, nenhum deles da esquadra original.
Havia algo estranho com o cabo. Apesar de todos estarem bem, Leto mostrava-se apático. Parecia mais preocupado com o grupo de três soldados, dirigindo-se diretamente a eles.
— Você é tão louco quanto Cefas me disse. — Ele fitou Tadeu com a feição séria.
— Só fiz o que era necessário, Leto.
O líder da esquadra parou em frente ao soldado. Sua cabeça mal tinha a altura do queixo do rapaz, mas Leto ignorava a diferença. Sua ira compensava sua falta de estatura de tal maneira que Tadeu se sentiu intimidado.
— Não chame aquela loucura com a baioneta de “necessária”. — Apesar da vitória, o tom do cabo era severo. — Poderia ter se matado e levado os outros dois patetas junto.
Alen e Tevoul franziram a testa ao serem chamados de “patetas”. A dupla preferia um xingamento de verdade em vez de uma palavra tão boba.
Já o soldado moreno manteve o semblante sério. Em sua mente, havia tomado a decisão certa, por mais descuidada que ela fosse. Além disso, ver o cabo falar daquela forma após ter corrido lhe irritava no ventre.
— Era o melhor para a esquadra. — Subiu o tom, mas manteve-se sem gritar. — Se fiz algo que o senhor achou errado, é porque eu fiquei para lutar.
Os olhos de Leto quase saíram para fora. Assim como antes, seus braços ficaram trêmulos, mas soube se controlar no último momento. Ele rosnou feito um cão e lançou um sorriso de escárnio para o soldado.
— Acha que aquela medalha faz de você alguma coisa, não é? — Tadeu manteve o silêncio. — Vamos ver quanto tempo você fica com essa cara de tacho pra mim.
Os dois duelaram com o olhar, quase como duas serpentes que tentavam dar bote uma na outra.
— Leto! — alguém gritou do mato.
O cabo olhou para o bosque ao reconhecer a voz de Cefas. Para o alívio dos mercenários assistindo a disputa, seu capitão havia chegado, trazendo seu ajudante Laviel e uma esquadra completa.
— O que aconteceu nesse lugar?
— Fomos emboscados, senhor. — O líder da esquadra ainda encarava o soldado. — Milicianos, aparentemente todos daquela vila.
— Algum soldado com eles?
Leto negou com a cabeça, mas, para seu aborrecimento, Alen se intrometeu dizendo que sim.
— Havia um oficial com eles.
Cefas estranhou que o cabo havia “se enganado”, mas preferiu ignorar.
— Está vivo?
— Não, senhor — Tadeu respondeu. — Foi morto no tiroteio.
— Maldição! Como vamos saber o que eles querem se não sobrou nenhum?!
— Na verdade, senhor, eu acertei um deles pelo caminho e ele acabou desmaiando. Ainda deve ser útil.
O capitão confirmou com a cabeça e chamou seu cabo e tradutor. Liderados por Tadeu, o grupo foi de encontro ao guerreiro desacordado.
Ao chegarem onde o homem teve seu repouso involuntário, perceberam que já recobrava sua consciência, mesmo que um pouco letárgico. Era de meia idade, branco e de cabelos negros. Tinha um largo bigode, tão grosso que cobria suas narinas.
A tropa esperou com paciência até que o sujeito estivesse em condições de ser interrogado. Quando finalmente estava pronto, Laviel se aproximou, provocando estranheza no novo prisioneiro.
— Qual o seu nome, guerreiro? — o guia perguntou.
O homem ergueu seu tronco e se sentou sem dar uma resposta. Tudo que fez foi rir na face do cabo que o encarava perplexo.
“Esse homem é louco”, concluiu o guia. — Meu nome é Laviel. Sou cabo do Exército Republicano de Leifas, do qual você é prisioneiro. É bom deixar claro que as consequências serão duras se não colaborar.
A risada acanhada do homem se elevou. Seus risos se descontrolaram a medida que seu olhar se tornou vazio. Só sua boca era alegre. Os olhos do cativo mostravam um medo profundo, como se tivesse ficado face a face com a própria morte.
— O que é tão engraçado? — o cabo Laviel perguntou, mesmo que receoso da resposta.
— Ela está aqui! — disse cantarolando enquanto os músculos do seu olho direito contraíam, fazendo-o piscar em repetições sem ritmo.
Para a surpresa do grupo, o homem começou a balançar para frente e para trás, como em uma cadeira de balanço. Sua face guardava a expressão macabra que fez o tradutor hesitar em prosseguir.
— Não sei de quem está falando, mas, seja quem for, não será ela que te salvará.
O sujeito soltou três risadas num tom tão agudo que pinicou nos ouvidos dos soldados.
— Ela — falou com as mãos trêmulas — vai matar todos vocês! Ela matou todos os meus, ela vai matar todos vocês! Ela matou o Poiviki, ela vai matar todos vocês! Todos vocês!
A expressão do homem era tão insana quanto confusa. Nada fazia sentido em seu rosto: seus lábios falavam em escárnio. Seus olhos, porém, faziam suas palavras soarem diferente de um deboche, mas como uma tragédia. Um aviso.
— O que esse maldito está falando? — perguntou Cefas.
— Está falando que vamos encontrar uma mulher e ela irá nos matar.
— Quem, a mãe dele? — A fala do capitão fez o restante dos homens rirem. Somente Laviel mostrava-se sério.
O leifanês permanecia conflitado. Por mais que hesitasse em falar mais com o louco, algo dizia para prosseguir com as perguntas.
— Quem é ela?
— Você já a conhece! — cantarolou mais uma vez. De repente, com seus olhos arregalados, pôs suas mãos sobre os ombros do guia. — A Feiticeira de Carasovi, Igri!
Um arrepio correu da espinha até o pescoço do guia, que arrancou os braços do sujeito de cima dos seus ombros. Sentiu-se como uma criança ao ouvir uma história de terror.
Recuperando-se do susto, Laviel notou o quão infantil foi. Ele conhecia a história da Feiticeira de Carasovi, bem como seu destino trágico nas mãos de seus inimigos. No fim, a fala confirmava o que já suspeitava.
— Está louco — disse para Cefas e os outros. — Está falando sobre Igri e a Guerra do Intocável como se fosse hoje. As únicas que contam a história dela assim são mães que costumam contar causos da Feiticeira para que as crianças se comportem.
— Então, ele não tem utilidade? — Cefas perguntou com certo lamento.
— Infelizmente, creio que não.
— Você está duvidando! — o lunático gritou enquanto balançava para frente e para trás. — Você está duvidando!
— Claro que sim! — afirmou convicto. — Você não passa de um louco que, por algum motivo, botou as mãos num mosquete.
— Talvez Tadeu tenha exagerado na pancada! — disse Tevoul, mesmo sem entender uma palavra vinda do maluco. Conseguiu arrancar algumas risadas dos colegas.
— Tolo! — A faceta alegre do homem se desfez, restando apenas o temor de seus olhos. — Você duvida agora, mas olhe para o alto. A luz está partindo, o sol está se pondo. Quanto mais ele se afasta, mas Ela se aproxima.
O tradutor olhou ao alto, para a copa das árvores. O céu estava mais escuro que antes. A noite se aproximava assim como nas palavras do lunático escarnecido pelos soldados.
Laviel viu os pássaros voarem por cima dos galhos, a procura de abrigo de corujas e outros predadores noturnos. Por um instante, pensou se deveria fazer o mesmo.