A Criança do Lich - Capítulo 5
Capítulo 5: Primeiras Lições.
Após a manhã de treinamento com Elfaren e Alvaeh, Gael estava em uma pausa para comer, destruía alguns pedaços de pão como se eles estivessem prontos para fugir. Alvaeh ria com as expressões do menino que quase se engasgava e ficava procurando pela caneca com água.
— Eles não irão fugir de você Gael. — repreendia o lich vendo que o garoto acabaria se engasgando de verdade. — Coma com calma e descanse um pouco, logo Sirion chegará para iniciar as aulas de esgrima.
— Me desculpe senhor, é que refeições eram difíceis. — disse se lembrando dos últimos meses que passará. — Ainda mais um pão tão macio.
Neste momento Alvaeh tocou o ombro do menino e sorriu amigavelmente para ele, que retribuiu no mesmo instante. Por um momento o próprio passado da drow tinha tomado sua mente, ela sabia bem como era não saber se teria uma refeição no outro dia, mas também sabia que enquanto seu mestre tivesse interesse no menino, nada faltaria para ele.
— Não se preocupe, aqui jamais falta comida.
O menino apenas sorriu para a mulher, voltando a comer desta vez com mais calma.
⸙« Cidade Livre de Cega »⸙
Cega é uma cidade imponente, suas ruas largas e bem pavimentadas com pedras escupidas a mão, assim como as construções que a bordejavam. Em suas vielas, mercados movimentados vendiam de tudo, desde artefatos mágicos raros até especiarias exóticas. A cidade, sempre iluminada por luzes mágicas que flutuavam o ar, nunca dormia. À noite, a cidade era banhada por uma luz suave e cintilante, projetada pelos cristais encantados que decoravam as ruas e praças.
No centro de Cega, uma grande construção dominava o horizonte: A Academia Arcana de Vehlos, um lugar de aprendizado e poder que atraía os mais talentosos magos e estudiosos magos de todo o continente. As torres da academia eram altas e finas, adornadas com runas que brilhavam à luz do sol e cintilavam com uma luz própria à noite, marcando claramente que era a magia contida nelas que controlava todos os cristais que iluminavam a cidade a noite. Dentro de suas paredes, a sabedoria de séculos era preservada e expandida, por sua diretora Nerisa Ravensong.
Próxima à academia, outra edificação, não menos impressionante, se destacava. A Guilda de Aventureiros, chamada de “Conclave da Lâmina de Ìris”, era uma fortaleza robusta, construída em pedra e reforçada com ferro e magia. Era conhecida não só por seus aventureiros habilidosos, mas também por sua liderança inabalável e organização exemplar. No salão principal, um vasto mapa do mundo conhecido adornava uma parede inteira, marcando com precisão os reinos, regiões inexploradas e locais de conflito.
Dentro da guilda, o ambiente era sempre agitado. Aventureiros associados de todas as partes se reuniam, discutindo missões, trocando histórias e planejando novas incursões e distribuição de missões das mais variadas possíveis. O que criava um misto de excitação e seriedade no ar, como se a qualquer momento uma nova aventura épica e emocionante fosse começar.
No entanto nosso foco é no salão reservado para reuniões sigilosas, a atmosfera era mais densa. Cedric Van Urram, um paladino humano de quase quarenta anos, estava de pé junto à mesa central. Seu semblante era sério, suas feições marcadas pelo tempo e pela experiência. Sua armadura, embora desgastada pelo uso, brilhava com uma luz interna que parecia refletir sua devoção à deusa da vida. O peso de sua responsabilidade era evidente em seus olhos, mas havia também uma força indomável que os anos não conseguiram apagar.
Diante dele, do outro lado da mesa, estava Argus Dial, um representante do monarca de Endael. Argus era um homem de meia-idade, vestindo trajes elegantes que denotavam seu status. Seus olhos, afiados e penetrantes, contrastavam com sua voz suave e bem modelada. Ele era conhecido por sua inteligência e habilidade em negociações, características que serviram bem ao reino militarizado de Endael.
A conversa entre os dois havia começado de forma civilizada, mas agora estava permeada por tensão. Cedric, com sua postura imponente e voz firme, expunha suas preocupações sobre os rumores que cercavam uma ilha distante conhecido como o Vale.
— O Vale. — começou Cedric. — Era uma terra fértil e próspera antes de ser engolida pelo oceano. As lendas falam de uma praga que devastou a região, mas ninguém sabe ao certo o que realmente aconteceu. Agora, dizem que a ilha guarda segredos antigos, segredos que podem mudar o destino do mundo.
— Histórias de um vale submerso e uma praga mística têm circulado por séculos. Mas estamos interessados em algo mais tangível. Acredita-se que a biblioteca mágica, aquela que contém todo o conhecimento sobre magia, pode estar escondida naquela ilha ou nas áreas que ficaram submersas, protegida por encantamentos antigos. A questão, meu caro Cedric, é encontrar o local exato onde ela está, — Argus, com um leve sorriso, respondeu calmamente.
— Vocês acreditam que a biblioteca está no Vale? — Cedric estreitou os olhos. — Eu ouvi relatos de que ela poderia estar em outro lugar, Silvariel pra ser mais preciso, dizem que lá tem umas ruinas antigas que contém muitos artefatos mágicos.
— Existem muitas teorias, Cedric, mas até que tenhamos provas concretas não podemos nos dar o luxo de ignorar qualquer possibilidade. O Vale, apesar dos contratempos, ainda é uma opção bem válida. Mas o verdadeiro problema é conseguir informações concretas sobre possíveis localidades que poderiam abrigar uma biblioteca tão grande. Poucas pessoas conhecem aquelas terras, e menos ainda teriam coragem de entrar nas tensas florestas e navegar por aí sem rumo. — Argus balançava a cabeça, seu tom de voz permanecia suave, no entanto continha uma pitada de impaciência.
O paladino respirou fundo, sabendo que Argus estava certo. Havia um nome que circulava nos círculos mais secretos, um morador além da cidade portuária, com certeza alguém que teria um vasto conhecimento do território terrestre e do que está submerso, e poderia até mesmo já ter encontrado a biblioteca. Mas aproximar-se desse individuo era uma tarefa mortal.
— A uma criatura que pode saber a localização exata da biblioteca, é recluso e não se deixa aproximar facilmente. — admitiu Cedric. — E mesmo que conseguíssemos uma audiência, há um risco enorme de que ele não nos diga nada ou até mesmo que não deixe nenhuma voltar com vida… Elfaren, não é conhecido por ser… generoso e hospitaleiro.
— O Lich, ouvi lendas sobre ele. — cruzou os braços, seus olhos agora estavam transparecendo sua frustração. — Chegar até ele não será nada fácil e voltar vivo de lá tão pouco.
O silencio que se seguiu era pesado, carregado de pensamentos e estratégias não ditas. Ambos os homens sabiam que estavam em uma encruzilhada perigosa. Encontrar a biblioteca poderia alterar facilmente o equilíbrio de poder no mundo, e as escolhas que fizessem a partir deste momento trariam serias consequências.
— Endael deseja o poder contido na biblioteca, mas não podemos permitir que o conhecimento dela caia em mãos erradas. — Cedric, quebrou o silencio dando um muro na mesa no centro da sala. — Se acredita que nossa melhor pista é o Vale, então conte comigo e meus mais leais companheiros da guilda, deixarei minhas divergências de ideias para um outro momento.
Argus por sua vez suspirou, era um raro sinal de exasperação.
— Estou confiante de que estará no Vale. Mas precisamos agir rápido e sigilosos, acredito que outros já estão sabendo sobre isso também. — levou uma das mãos até o queixo como se estivesse intrigado com algo. — Precisamos de um plano, um que nos leve ao Vale e nos dê uma chance de voltarmos vivos.
A tensão era palpável, mas era visível o entendimento mútuo de que o que estava em jogo era grande demais para ser ignorado.
⸙« Vale, Torre de Elfaren »⸙
O sol agora alto no céu, lançava seus raios dourados sobre a torre, fazendo as pedras refletirem seus raios. Gael, agora esperava pela chegada de Sirion para continuar seu treinamento, seria a primeira aula de combate que teria em sua vida. Estava entusiasmado com a ideia, mas ao mesmo tempo tinha um certo receio. Elfaren já tinha voltado para a torre dizendo que precisava terminar alguns estudos o quanto antes. Deixando apenas Alvaeh junto do jovem.
Gael começou a ouvir os murmúrios de ossos secos e o som metálico da armadura pesada com passos firmes, anunciando assim a chegada de Sirion. Ao chegar próximo o servo esquelético encarava o garoto com indiferença, perceptível até mesmo por seus olhos sem orbes.
— Alvaeh, você irá ficar para o treinamento também? — a voz do esqueleto saia grave e seria.
— Ficarei apenas observando. — disse ela sem dar muita importância, a verdade era que Alvaeh fora ordenada a supervisionar os treinamentos de Gael nos primeiros dias, já que Elfaren sabia que Sirion não havia gostado da ideia de treinar um conjurador.
— Que assim seja. — soltou com um tom nada amigável. — Gael! — a voz ressoou pela área chamando a atenção do menino. — Sinceramente, não concordo com as ordens do mestre… é um desperdício do meu tempo treinar alguém como você.
A frase severa, juntamente com o tom de voz firme, deixou a presença de Sirion ainda mais intimidadora aos olhos de Gael, que mal conseguiu responder.
— S-sim, Senhor!
Sirion cruzou os braços, a armadura rangendo levemente. Ele o avaliou com um olhar ainda mais crítico, como se estivesse pesando suas chances em uma balança invisível e encontrando nele apenas insuficiência para combates armados e desarmados.
— Você é muito pequeno até para sua idade, fraco, sem nenhum sinal de potencial para o combate. Não entendo por que Elfaren deseja que eu perca meu tempo com você. Um conjurador com suas características físicas deveria se focar exclusivamente em magias.
Por um instante o garoto sentiu o peso das palavras proferidas pelo esqueleto. No entanto, Elfaren o havia dito que era parte de seu treinamento aprender como se defender e não apenas ficar dependente de suas habilidades arcanas e era isso que iria fazer.
— O mestre disse que até mesmo um conjurador deve saber se defender. — respondeu ele com a voz baixa, mas determinada o que tirou um sorriso discreto de Alvaeh que observava tudo. — E eu quero aprender… Quero ser capaz de me defender.
Sirion soltou um som que poderia ter sido um suspiro ou rosnado contido.
— Proteger-se? Aposto que mal consegue segurar uma espada, quanto mais conseguir usá-la de maneira adequada. Mas como foi uma ordem direta, eu irei obedecer. Não espero que você termine este treinamento, mas fique à vontade para provar que estou errado.
Com movimento rápido o esqueleto tirou uma espada curta da bainha em sua cintura, a espada estava com lâmina enferrujada e marcas que provaram as inúmeras batalhas que enfrentará, o servo a lançou em direção ao garoto, caindo de pé ficada ao chão a centímetros do menino, que apenas arregalou os olhos assustado.
— Vamos pegue a espada, e começaremos com o básico.
Gael obedeceu ao comando, embora fosse uma espada curta, ainda assim era algum desajeitado de se pegar com suas mãos pequenas. Ele a segurou com as duas mãos da melhor maneira que conseguiu, equilibrando o peso da lâmina com a sua postura. A expressão de desaprovação de Sirion era quase que evidente.
— Uma espada não deve ser segurada com tanto desleixo, e alias espadas curtas foram feitas para serem usadas apenas com uma mão. — ele corrigiu. — Você precisa de firmeza, controle. Pense na espada como uma extensão de seu braço, não como um objeto qualquer, você está a empunhando como se fosse um porrete de madeira. Aqui, observe.
Sirion sacou então a espada da bainha oposta, uma lâmina típica para espadas longas, um metal que parecia antigo e que brilhava runas em amarelo e verde lembravam um poder quase que ancestral. Começou a demonstrar movimentos básicos, estocadas, cortes e defesas, cada movimento realizado com uma precisão letal quase que palpável. Seus pés se moviam com a confiança de alguém que já havia estado em incontáveis batalhas, que já havia mais do que poderia contar.
— Agora, tente imitar o que fiz. — ordenou após concluir a demonstração, recuando um pouco para dar mais espaço ao menino.
O garoto tentou replicar os movimentos, mas sua execução foi desajeitada, os golpes lentos e mal coordenados. A espada parecia pesada e desajeitada em sua pequena mão. A cada erro, Sirion corrigia com frieza, apontando suas falhas e guiando para que as mesmas fossem corrigidas.
— Você está apenas balançando está espada como um pedaço de madeira. — soltou Sirion após alguns minutos. — Falta-lhe a intenção. Sem intenção, seus movimentos são inúteis. Concentre-se no que quer alcançar com cada golpe. Se o objetivo é cortar, visualize o corte. Se é perfurar, visualize a lâmina atravessando a carne do inimigo. Lembre-se a mente guia a lâmina e o corpo a segue.
Gael respirou fundo, tentando absorver as palavras de Sirion. Ele fechou os olhos por um breve momento, visualizando o que o comandante havia descrito. Ao abrir os olhos novamente, tentou mais uma vez, e embora seus movimentos ainda fossem descoordenados e patéticos, havia uma ligeira melhora.
Logo as horas começaram a passar, enquanto o menino ia cada vez melhorando sua postura e movimentos. Sirion notou a leve mudança, mas não ofereceu elogios. Em vez disso, ergueu as mãos em um sinal para que Gael parasse.
— Isso é o suficiente por agora. Não adianta força-lo além do que seu corpo consegue acompanhar. Amanhã continuaremos. Por agora, memorize esses movimentos. Se não pode os executar com perfeição, ao menos entenda seus fundamentos básicos.
Gael assentiu, sentindo-se exausto, mas determinado. Era de seu conhecimento que seria um longo caminho, mas a ideia de dominar tanto magia como esgrima era tentadora. Mesmo que Sirion não tivesse expectativas nele, mostraria que o esqueleto estava errado.
Sirion recolheu a espada com o menino e a guardou novamente em sua bainha, e a entregou ao menino, dizendo que agora era responsabilidade dele. E foi se afastando, sendo parado por Alvaeh que até então estava calada apenas observando.
— O menino é o protegido do mestre, não o julgue só pelo primeiro dia de treinamento. — disse ela, baixo o suficiente para que apenas ele escuta-se.
— Continuo com a minha opinião de antes, ele é um desperdício do meu tempo. — soltou em resposta, a ignorando e seguindo seu caminho.
“Hum, esse garoto melhorou cerca de doze por cento apenas em algumas horas, e o Sirion quer mesmo que eu acredite nesse “ele é um desperdício de tempo”.” Pensou Alvaeh encarando o esqueleto seguir para dentro da torre e em seguida para o menino.
Gael caiu de joelhos, segurando a espada contra o corpo com mais força que o normal, estava exausto e dando tudo de si desde o treinamento da manhã com Elfaren. Agora só restava as aulas com Eldara, para que seu primeiro dia oficial com todos aqueles seres estranhos terminasse.
Continua…