A Eternidade de Ana - Capítulo 10
Capítulo 10: Companheiros
— Ela está acordando! Marina, vem aqui rápido!
— Tem certeza? Ela não está só murmurando de novo?
— Sim, ela está me encarando, olhos bem abertos!
“Uma cena animada”, Ana refletiu, uma sombra de humor tocando sua mente enquanto absorvia as duas vozes contrastantes de preocupação e ceticismo.
O ar frio da noite acariciava sua pele, trazendo consigo o cheiro de terra molhada e fumaça da fogueira. Essa combinação inesperada trouxe um conforto inesperado que a fez se sentir estranhamente em casa. Ela fez uma tentativa de se levantar, mas a dor aguda que disparou através de suas pernas foi um lembrete cruel das batalhas enfrentadas recentemente. O mundo girou brevemente antes de ela cair para trás novamente.
— Ei! você tem que descansar, suas feridas não são leves. Por sinal, você consegue falar? Me chamo Júlia! Posso saber o nome da nossa salvadora?
— Eu me chamo Ana. — sua resposta para a caçadora ruiva, que aparentemente liderava o pequeno grupo, saiu mais áspera do que pretendia, a desorientação ainda emaranhando seus pensamentos.
Olhando em volta, viu os demais integrantes cuidando de seus ferimentos e arrumando o acampamento. Para sua surpresa, o garoto que ela pensou estar morto estava apoiado em uma árvore próxima, seu corpo todo foi enfaixado e um de seus braços estava faltando, mas sua respiração parecia estável.
— É um prazer, Ana. Ei, vocês não vão vir aqui? — gritou Júlia, com uma sincera expressão de gratidão no rosto.
Marina lançou um olhar preocupado para Alex, que respondeu com um aceno de cabeça quase imperceptível. Esses pequenos gestos não passaram despercebidos por Ana, que começou a perceber a teia de laços invisíveis que unia o grupo. Os jovens caçadores se aproximaram, suas expressões misturando admiração e incredulidade.
— Fico feliz que tenha acordado, me chamo Alex. Devo minha vida à você, assim como a vida do meu irmão, Felipe — quase se curvando e com lágrimas em seus olhos, o jovem caçador da lança agradeceu Ana. — Seja lá o que você precisar, saiba que estaremos dispostos a te ajudar.
— Eu digo o mesmo… me chamo Marina — em curtas palavras e sem encarar os olhos de Ana, a maga expressou sua gratidão.
— Não se preocupem com isso, eu fiz isso para sobreviver, não por vocês.
— Isso não muda o fato de que nos salvou — retrucou Júlia.
— Que seja…
Pouco acostumada com tantas interações em um curto período de tempo, ela se distanciou mentalmente da conversa, começando a inspecionar suas próprias feridas. Ela não havia reparado ao acordar, mas também estava enfaixada.
— Obrigada por isso.
Alex apenas respondeu com um aceno de mão. Os demais caçadores já haviam se afastado ao notar que Ana não estava muito afim de conversar.
Agradecida pela consideração dos jovens em deixá-la sozinha, ela direcionou o olhar para a faca depositada cuidadosamente ao lado de seu corpo.
“O que você estava tramando, Gabriel?”, a arma, um reflexo de noites incontáveis na fornalha, parecia guardar segredos que nem mesmo ela compreendia.
Ana colocou a faca no nível dos seus olhos. Uma pequena fresta estava entre a empunhadura e a bainha, um espaço de poucos milímetros que só foi notado devido a ela ter feito o equipamento com as próprias mãos.
— Que estranho, eu tinha certeza que ela encaixava perfeitamente — murmurou para si mesma.
Ela puxou a faca para fora, seu corpo tão escuro quanto a noite deslizou elegantemente para suas mãos. O brilho vermelho de antes havia sumido, voltando a apresentar sua aparência quase ordinária. Estranhamente dois pequenos riscos estavam em seu gume.
— Isso sim é uma surpresa…
Ela sabia a robustez do objeto em suas mãos, as duas criaturas de antes, por mais fortes que fossem, não eram capazes de fazer tais arranhões. “Também não foram eles, é impossível”, pensou ela enquanto olhava de relance para os jovens.
— Parece que vou precisar de mais alguns experimentos — ela ponderou alto após uma inspeção meticulosa sem descobertas claras. Com um suspiro, Ana tensionou os músculos da perna ainda se recuperando, desafiando a dor que ameaçava mantê-la prostrada, forçando-se a levantar.
— Oh, você já está de pé? Isso é incrível, achei que você ia ficar na cama por dias. Como esperado de uma caçadora rank D. — disse Júlia de longe.
— Caçadora rank D… — Ana repetiu baixinho com certo desgosto, uma semente de desafio permeava sua voz. Rank D estava longe do que esperava chegar com seu treinamento atual, mas sabia reconhecer seus limites, ela não queria morrer à toa tentando enfrentar criaturas mais fortes do que aguentava. Infelizmente o mundo não facilitou pra ela.
Ao olhar para a fogueira acesa, ela reparou em 4 brasões queimando lentamente, os mesmos que estavam acoplados às armaduras do grupo nesta manhã. Reparando o olhar perplexo de Ana, Alex explicou:
— Era nossa última chance. Falhamos em algumas missões nas últimas semanas, então o chefe da guilda disse que não devíamos voltar se a de hoje também desse errado — com um sorriso de auto-consolo, ele acenou em direção a um canto do bosque.
Ana não havia reparado, mas 7 corpos estavam enfileirados embaixo das árvores. Eram os trabalhadores que viu mais cedo. Ninguém havia reparado durante o desespero da batalha, mas ao que parece a segunda criatura os matou antes de ir ajudar seu companheiro.
— É uma pena não termos conseguido ajudá-los — na realidade ela não sentia nada em relação ao assunto, mas sabia que a indiferença traria um clima ainda mais pesado.
— Não se culpe, não havia o que fazer, foi puro azar. — murmurou o garoto enquanto olhava para o céu, claramente escondendo mais uma vez as lágrimas que começaram a se formar. — Olhando pelo lado bom, graças a você sinto que estou muito próximo de me tornar um caçador rank E. Nunca imaginei que a mana de um monstro desse nível iria me ajudar tanto.
Como se reforçando as palavras de Alex, o resto do grupo olhou entre si com sorrisos radiantes. Até mesmo Felipe, que estava descansando, não pôde deixar de ficar feliz ao sentir sua existência crescer.
“Merda, quem diria que eu teria inveja de alguém nesse mundo?”, Ana não pôde deixar de xingar internamente ao perceber a satisfação dos caçadores ao absorverem toda a mana do monstro que ela matou.
Enquanto se perdia em pensamentos, ela sentiu uma pequena mão encostando em suas costas.
— M-me desculpe… eu não consegui consertar sua armadura mágica, não entendi as runas… — falou Marina. Ana viu o tremor nas mãos da maga, a frustração e o desejo de ajudar.
— Armadura mág… — Ana parou em meio a sua pergunta, vendo a armadura meio destruída nas mãos da maga.
“Eles não perceberam que é apenas uma peça normal de aço?”, refletiu com um sorriso sutil de zombaria. Por fim, ela achou melhor não demonstrar que não fazia ideia do que Marina estava falando.
— Não se preocupe, sei que deu o seu melhor.
— Pode me dizer quem a fez? Se eu sobreviver a essa noite, vou precisar de um bom engenheiro mágico para fazer minha prótese — interrompendo as duas garotas, Felipe lançou a pergunta repentina. Seu olhar ia de Ana para seu ombro esquerdo repetidamente, ainda estranhando o vazio onde seu braço deveria estar.
— Infelizmente não sei quem foi seu criador, a encontrei em Aurórea. — Ana inventou uma mentira qualquer, não tinha razão para dar explicações inúteis de que ela foi quem forjou a armadura.
— Eu entendo… é uma pena, sinto que com um desses eu não precisaria nem mesmo usar um escudo, é tão resistente — sussurrou ele, fechando novamente os olhos para voltar ao seu descanso.
“É possível fazer próteses funcionais com magia?”, seu interesse pela recém mencionada engenharia mágica cresceu aos trancos e barrancos com o conteúdo da conversa anterior.
— Bom, preciso ir andando, quero jantar em casa hoje — em tom de brincadeira, ela começou a se afastar do grupo, voltando da direção da qual havia vindo pela manhã.
— Ana, tem certeza que está bem? — Júlia parecia preocupada enquanto fazia a pergunta. — Já vai dar 20h, os portões estão fechados.
— E sobre o jantar… bem, talvez não seja uma preocupação imediata. Afinal, provavelmente já estamos todos mortos — Alex lentamente se levantou do tronco onde estava sentado. Em seguida, pegou a lança que estava apoiada a seu lado e entrou em posição defensiva em frente ao seu irmão.
Entendendo a situação a partir da estranha reação de seu colega, o resto do grupo correu para fazer o mesmo, cercando o jovem machucado. Era notável que estavam fracos, mas os olhos brilhantes que começaram a surgir na escuridão da floresta não pareciam querer dar tempo para descansarem.
Um vento gelado soprou através do acampamento, fazendo as chamas da fogueira oscilarem. Uma sensação de inquietação tomou conta de Ana, como se a floresta estivesse segurando a respiração. Nem um grilo cantava, nem uma folha se mexia e seu instinto de sobrevivência disparava alarmes silenciosos em sua mente.
Ela sabia, antes mesmo de ver os olhos brilhantes se aproximando, que a noite ainda guardava suas próprias histórias.
“Que mundo de merda”
A faca já havia saído de seu cinto enquanto seu corpo se lançava em direção a um dos pequenos seres que se aproximava.
A madrugada trazia consigo o silêncio do esgotamento. O grupo, antes unido pela urgência da sobrevivência, agora movia-se com a lentidão dos vencidos, embora não tivessem sido derrotados. A batalha contra os goblins e os mais temíveis hobgoblins havia se estendido pela noite, cada momento um teste de resistência, cada confronto um desafio à morte.
O cenário em frente a Ana provinha diretamente de um filme de terror: partes verdes decepadas eram vistas em todo o cenário, uma mistura macabra de braços, pernas e orelhas que representavam a brutalidade da luta que tiveram. A grama, antes de um verde vibrante, estava completamente tingida de vermelho e o ar agradável do bosque foi substituído por um cheiro pungente de morte.
“Temos sorte de serem monstros que mal beiram o rank F”, ela tentava se alegrar com pensamentos otimistas, mas até mesmo isso fazia seus músculos cansados reclamarem.
Com a primeira luz do amanhecer tingindo o céu de um cinza pálido, eles se reuniram em um círculo quebrado, mais um conjunto de sombras do que uma equipe de combatentes vitoriosos. Sem palavras, com o peso da noite gravado em seus olhares, começaram a dividir os espólios da luta: armas desgastadas, armaduras fragmentadas, pedaços de metal que brilhavam sob a luz incipiente como se rissem da própria inutilidade.
A falta de conversa não era uma ausência de gratidão ou companheirismo, mas uma manifestação palpável do cansaço que se apossara de todos eles. As palavras se mostravam inúteis frente à exaustão compartilhada; seus olhares diziam tudo o que a língua se recusava a expressar.
A carne goblin não tinha muita utilidade, então foi totalmente descartada pelos caçadores, mas eles tinham olhares gananciosos em relação às duas criaturas rank D. Apesar disso, sabiam que não tinham direito sobre elas.
— Podemos te ajudar a pegar as partes importantes — ofereceu Júlia, lembrando-se da dificuldade extrema que tiveram para cortar a carne do monstro durante a batalha.
— Não, eu faço isso — se aproximando das carcaças com movimentos lentos, Ana mais uma vez puxou a faca de seu cinto.
Ao longo de suas caçadas de séculos atrás, Ana aprendeu a identificar com precisão pontos vitais de corpos de animais, removendo milhares de vezes suas peles com uma precisão impecável. Apesar de não ser exatamente um animal que estava em sua frente, o corpo da garota moveu-se instintivamente, fazendo cortes cirúrgicos o duro couro parece papel. Ossos, músculos e tendões saiam quase que sozinhos.
O queixo dos jovens caçadores quase tocava o chão com surpresa. Se não tivessem visto de perto suas incríveis habilidades de luta, pensariam que Ana era uma cozinheira lendária que estava de passagem, pela incrível maestria com que cortava a carne.
— Preciso apenas dos ossos. — disse ela enquanto limpava a faca e juntava os robustos restos em um saco improvisado.
— Você tem certeza? Sabe o quanto vale a carne de um monstro ranque D? É quase uma iguaria em restaurantes comuns — replicou Alex, sentindo-se mal por ficar com uma recompensa tão grande.
— Não é como se eu pudesse ter vencido sozinha, apenas peguem. — resmungou Ana com um tom cansado, sem querer discutir mais.
— Obrigado! — os quatro disseram quase que em uníssono, animados pela bondade inesperada.
Quando a divisão dos materiais foi concluída, um aceno de cabeça coletivo serviu como adeus. Não havia energia restante para despedidas calorosas ou promessas de reencontros. Cada um partiu para sua própria casa, seus passos arrastando-se pela terra ainda manchada pelo sangue.
— Ah, parece que todos estamos indo pelo mesmo caminho! — a voz de Marina rompeu o silêncio, mais alta do que ela pretendia devido ao cansaço e alívio pós-batalha. Ela corou, surpresa por sua própria ousadia. Mas sua observação, embora simples, serviu como um bálsamo para a tensão que envolvia o grupo.
— Bem, dada a nossa sorte, parece que só existe um portão nesta cidade… Então, parece que teremos a honra da companhia uns dos outros por mais algum tempo — Júlia lançou um sorriso cansado, quebrando a rigidez do momento. Sua brincadeira leve convidou um aceno de cabeças compreensivas e até mesmo um esboço de sorrisos entre eles.
O silêncio ainda caia sob seus passos, mas diferente da atmosfera sangrenta de antes, uma faísca de companheirismo era sentida no ar.
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