A Eternidade de Ana - Capítulo 45
Capítulo 45: Doce Morte
— Outra inconsistente — murmurou uma voz distorcida, como se estivesse fora de sintonia com a realidade, reverberando no vazio. Sua aparência etérea era como uma imagem fora de foco, com traços que pareciam flutuar e mudar constantemente.
— Sim, não deveria existir — respondeu a segunda figura, cujos olhos brilhavam como estrelas de forma impessoal, como se estivesse observando um experimento que não dera certo.
As duas figuras observavam a queda da estranha garota milenar em um plano distinto, suas formas mal definidas como sombras na noite que iam além do entendimento moral.
— É uma vida de dar pena…
— Vida, você diz? — riu o segundo — Deixamos passar muitas variáveis imprevistas… Sinto que ‘Ela’ não vai ficar feliz.
Enquanto discutiam, o cenário ao redor deles começou a mudar de maneira surreal. Símbolos brilhavam nas sombras, pulsando com uma energia que parecia viva. Estranhas telas flutuavam ao redor, mostrando imagens distorcidas e números incompreensíveis que piscavam rapidamente. O ambiente parecia desmoronar e se reconstruir em um ciclo interminável, como um pesadelo vívido demais para ser real. O contraste entre os elementos flutuante e a escuridão ao redor criava uma sensação de desconforto profundo, como se estivessem em um limbo entre a realidade e algo além.
— O que faremos com ela?
— Nada, por enquanto. Não podemos interferir. Não com o porteiro tão vigilante.
— Entendo. Então, vamos apenas observar. Se tivermos sorte, tudo se resolverá quando ela chegar ao fundo — disse a primeira figura, assentindo relutantemente.
Com a decisão tomada, as figuras desapareceram, suas formas se dissipando no ar como névoa.
Ana sentiu o vazio tomar conta de si enquanto caía no abismo. O vento frio cortava sua pele, e a escuridão a envolvia como um manto sufocante. O som de seu próprio coração batendo parecia retumbar em seus ouvidos. Por um momento, tudo parecia suspenso, como se a própria existência desaparecesse. Ela não sabia se estava viva ou morta, se ainda estava caindo ou se já havia atingido o fundo. A sensação de infinito a consumia, e cada segundo parecia uma eternidade cheia de questionamentos silenciosos.
Não se sabia quanto tempo havia passado. Sua mente vagava entre a consciência e a inconsciência, captando fragmentos de conversas e sons que não conseguia decifrar, como ecos em um sonho distante. Sentia-se como um ser perdido, arremessado ao vazio sem qualquer controle sobre seu destino.
Finalmente, seu corpo atingiu a água gelada com um impacto devastador, rompendo a superfície tranquila. A dor explodiu em seu ser, um golpe tão brutal que quase a fez desmaiar novamente. A água fria parecia cortar sua pele como lâminas afiadas, e o choque térmico a deixou momentaneamente paralisada. A correnteza, no entanto, era gentil, como se quisesse compensar o impacto violento, empurrando-a suavemente até a margem do rio subterrâneo.
“Então é aqui que aquele rio ia parar…”, pensou Ana, desnorteada. A curta espada negra estava caída a poucos metros, a única companheira que testemunhou sua sobrevivência. “Sempre ao meu lado, mesmo quando tudo desmorona”, refletiu ela, com um sorriso de amargura silenciosa.
Com um esforço monumental, Ana tentou se mover, mas a dor que explodiu em seu corpo foi tão intensa que a fez soltar um grito primal, ecoando pelo espaçoso local. Era um som que não ouvia há anos, um som de puro sofrimento. Sentiu cada osso quebrado protestar, cada músculo rasgado gritar por alívio. Era como se seu corpo estivesse sendo rasgado de dentro para fora, uma agonia tão profunda que mal podia pensar. Seus pulmões queimavam a cada respiração, e o gosto metálico do sangue preenchia sua boca.
O peso da coroa de prata no bolso de sua camisa era um lembrete cruel de que estava viva, mas cada pulsação de dor que irradiava de seus ferimentos fazia-a desejar o contrário. Ela podia sentir o metal pressionando contra sua pele, uma sensação desconfortável que se misturava ao ardor de seus cortes e hematomas.
“Ossos despedaçados, órgãos fodidos… ter sobrevivido a queda não significou muita coisa. Aquela filha da puta me matou”, pensou, fechando seus olhos e começando a sentir pedaço a pedaço de si mesma. Praticamente nada estava bem, e quanto mais retomava seus sentidos, mais o ar que fluia por seu corpo parecia uma tortura.
Foi selvagem, brutal, irracional. Ana pôde notar com clareza que a explicação de Natalya era apenas bravata. Não se tratava realmente de esconder o que quer que fosse que havia sido coletado ou simplesmente pegar a porcaria de espada; se fosse isso, poderia ter sido feito de forma mais sutil, talvez matando-os de surpresa durante a viagem, evitando riscos desnecessários.
Não, a Colecionadora lutou por prazer, ela gostou do que fez. Não como se gostasse de matar indiscriminadamente, afinal, não demonstrou muita reação ao atacar os outros, mas havia um brilho insano em seus olhos, uma satisfação perversa em cada golpe direcionado a Ana.
“Ela gostou de me ver sofrer,” pensou a mercenária, sentindo uma sutil pitada de ódio. “Talvez nem ela mesma soubesse o estado em que estava, mas seu sorriso… aquele sorriso… mostrava que eu era uma presa, ela me atacou por instinto.”
O ar estava úmido, carregado com um cheiro de musgo e pedras molhadas. A água fria cobria metade de seu corpo, trazendo um alívio efêmero e cruel, e o som do rio fluindo era constante, um murmúrio suave que quebrava o silêncio absoluto, mas de alguma forma parecia zombar de sua miséria. Seu rosto, imobilizado e voltado para a direita, permitia-lhe ver apenas alguns metros à frente, apesar de sua visão estar acima de padrões humanos.
“Isso não parece natural”, pensou Ana, tentando focar em algo que não fosse a agonia contínua da dor. Pequenos detalhes chamaram sua atenção, como as formações rochosas perfeitamente simétricas e alinhadas, como se esculpidas por uma mão meticulosa e inumana, criando um padrão inquietante.
Apesar de sugerir algo estranho sobre aquele local, logo o interesse nas pedras foi perdido. Sem poder se mover, Ana deixou sua mente vagar pelas memórias e reflexões. A escuridão parecia observá-la, como se o próprio abismo estivesse esperando sua rendição.
“Tudo isso para acabar assim. Sozinha, no escuro”, seus pensamentos estavam em um espiral de resignação, memórias das batalhas e sacrifícios surgiam em sua mente, vívidas e dolorosas.
Todo o seu esforço em cultivar um grupo de elite, todas as conversas idiotas, toda a animação juvenil de seus companheiros, tudo havia acabado. A Ironia Divina não existia mais, então aos poucos a mercenária forçou-se a deixar as memórias de lado, parou de pensar nesse fato.
“Caf Cof cof”
Tosses intensas acompanhadas por sangue fizeram seu corpo tremer, como se um martelo esmagasse a parte interna de seu peito. Neste momento, a tentação de ceder à doçura da morte era esmagadora, a tentação de deixar a dor acabar. Mas havia algo dentro dela, uma centelha de vida que se recusava a ser extinguida.
— Merda — murmurou a rainha caída, sua voz um sussurro rouco, forçada a sair mesmo que cada mínimo som rasgasse sua garganta. Seus olhos se fechavam lentamente. Ela podia sentir sua força esvaindo-se, seu corpo se tornando cada vez mais pesado. — É assim que termina…
O mundo de escuridão ao seu redor finalmente se desvaneceu. E então, veio o nada.
“Então estou novamente aqui”, pensou a garota, vendo o vasto vazio branco, um nada absoluto que se estendia infinitamente em todas as direções. O contraste era tão grande que ela teve que piscar várias vezes para ajustar sua visão.
Ana se espreguiçou, sentindo o alívio de não ter seu corpo destruído. Ela sabia que nada disso era real, mas não ligava para algo que não podia controlar. Sentindo-se desorientada, começou a olhar ao redor, até que, sem surpresa nenhuma, viu uma figura familiar à distância.
Dessa vez o anjo estava sentado em um trono imponente, acorrentado por milhares de correntes que se estendiam em todas as direções, como uma teia de aranha metálica. Suas asas estavam negras e sangue fluía de onde as correntes o perfuravam, como na última vez que ela a viu no mundo real.
— Gabriel? — chamou ela, sua voz ecoando no vazio.
O pequeno rosto levantou a cabeça lentamente, mas logo abaixou novamente. Seus olhos vazios e sem reconhecimento pareciam presos em algum lugar diferente.
— Quem é você? — perguntou, a voz carregada de um cansaço antigo.
— O quê? Sou eu, Ana.
Ele balançou a cabeça, confuso.
— Não tenho motivos para lembrar de ninguém… Sempre fui apenas eu, e sempre será… todos desaparecem em um piscar de olhos. Tão rápido, tão finito…
Antes que Ana pudesse responder, o anjo levantou os olhos, a encarando com uma expressão de serena indiferença.
— O que faz aqui?
— Eu? Suponho que esteja morta, apesar de que não imaginei que o fim seria mais um sonho estranho — respondeu a garota, franzindo a testa.
— Você ainda respira. Não há nada que eu possa tomar de você.
— Tem certeza?
Gabriel acenou com a cabeça, seguro. Com a resposta sutil, Ana suspirou, aliviada. Ela olhou para o curvado ser no trono mais uma vez, sentindo uma mistura de tristeza e resignação.
— Então vou indo. Adeus, Gabriel.
Ela fechou os olhos, e a sensação de vazio ao seu redor começou a se dissipar. O mundo branco desapareceu.
— Então fui reduzido a um mero sonho febril de um humano com a linha quase se rompendo… Você cresceu, Ana, mas ainda peca em tantos aspectos — vendo a partida repentina, murmúrios começaram a sair do anjo. Sua voz era um sussurro, carregada de amarga sabedoria. — Lembre-se, jovem estranha, a morte sempre observa de perto.
Seus olhos focaram novamente no vazio, cheios de uma tristeza infinita.
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