A Eternidade de Ana - Capítulo 47
Capítulo 47: Lúgubre Renascimento
O ser grotesco agora apodrecia sobre ela, sua carne tornando-se cada vez mais pútrida. Ana se alimentava lentamente, forçando-se a engolir pequenas porções da criatura em decomposição. O gosto era repulsivo, e o cheiro cada vez mais insuportável, mas ela sabia que essa era sua única chance de sobrevivência.
Seu estômago, atrofiado pela fome prolongada, mal aceitava a comida. Ondas de náusea a sacudiam, o corpo protestando a cada mordida. Mas Ana persistiu, ignorando os espasmos de dor e os impulsos de vomitar. Sabia que precisava consumir a carne, independentemente do sofrimento. Cada pedaço engolido era uma luta contra o próprio corpo, mas também uma demonstração de sua determinação de viver.
— Como pude deixar chegar a isso? — perguntou repetidamente. A culpa pela fraqueza a consumia enquanto sua voz ecoava no abismo.
Suas palavras saíam primeiro como murmúrios, mas logo gritos roucos se fundiam com o ambiente. O fortalecimento de seu corpo acompanhava a chegada do limiar final entre a sanidade e a loucura, uma tênue linha que ameaçava sumir com a mais leve brisa. As vozes em sua mente se tornavam mais insistentes, mais acusatórias.
— Você é uma fracassada, uma tola. Olhe para você.
— Foda-se! — Ana discutia com o nada como se fossem entidades reais, respondendo a acusações imaginárias com fúria e desespero. — Eu ainda estou viva, desgraçados! Ainda estou aqui!
A escuridão ao seu redor parecia se fechar mais, e invisíveis formas distorcidas e grotescas dançavam na periferia de sua visão. Ana sentia a pressão crescente na cabeça, uma dor latejante que ameaçava estourar seu crânio. Mas, mesmo assim, ela continuava a gritar, a lutar contra os fantasmas que sua mente faminta e delirante conjurava.
— Você deixou todos morrerem, você é uma inútil.
— Cala a boca! Cala a boca! — ela berrava, o som de sua própria voz quase ensurdecendo em seus ouvidos. — Eles morreram, eu sobrevivi, a vida funciona assim!
A insanidade crescia, a linha entre a realidade e a ilusão se desvanecendo cada vez mais. Ana via rostos familiares nas sombras, pessoas que tinha perdido, pessoas que odiava. Eles sussurravam, zombavam, riam dela, e explosões de raiva cada vez mais intensas vinham em resposta.
Tudo isso mudou como mágica quando, aos poucos, começou a sentir novamente seus membros. Agora havia algo no que focar, e todos os demais pensamentos eram abandonados em tempo real. Primeiro, um formigamento nas pontas dos dedos, depois, uma leve dor nos braços e nas pernas. A agonia de cada movimento não sumiu, mas o retorno gradual da sensibilidade era um sinal de que seu corpo estava, de alguma forma, começando a se recuperar.
Com um esforço monumental, conseguiu sentar no chão de pedra Seus músculos tremiam com o esforço, a dor era excruciante, mas ela se forçou a manter a postura. Sua rotina prosseguiu assim, sentando-se, o que acabava com a energia de seus braços, e em seguida improvisando um alongamento, esticando os músculos em formação.
Quando sentiu mais confiança de que não se afogaria, Ana lançou-se em direção ao rio. A água entrando em seus lábios parecia eliminar lentamente a podridão, mas ela se forçou a se afastar, o atraente líquido não faria bem em seu estado atual se tomado em excesso.
No décimo dia após se sentar pela primeira vez, a mercenária se levantou. Seus passos pareciam com os de crianças, cambaleantes, instáveis e meio desalinhados, mas pareciam a maior das conquistas após tantos dias presa ao chão.
— Preciso de um banho…
Recobrando a consciência de si mesma, olhou para suas próprias roupas, trapos imundos que mal a cobriam. Ela as removeu aos poucos, descolando parte por parte da pele assada pela umidade que estava abaixo. Era diferente de antes, mas ela quase ousava dizer que a pele sensível era ainda mais incômoda do que a dor lacerante.
O corpo esbelto e sem cicatrizes, apesar das muitas feridas que obtivera recentemente, adentrou nas limpas águas. Foi revigorante, era como estar viva de novo. Sentia a sujeira, o sangue seco e o fedor dos últimos dias se dissiparem na água, sendo lavados de seu ser. A corrente fria a envolvia, trazendo uma sensação de pureza e renovação que há muito não sentia.
Ana permaneceu ali por um tempo, deixando a água fazer seu trabalho. Seus pensamentos eram um turbilhão, mas pela primeira vez em dias, uma calma real a alcançou, diferente dos descansos forçados que estava se obrigando a ter. Ao emergir, sentiu-se mais limpa, fisicamente e mentalmente. A dor não passava de algo bobo quando comparada ao momento após a queda, então ela decidiu estar bem o suficiente para seguir.
A garota caminhou nua por um tempo, mas o vento logo causou arrepios em sua pele molhada, forçando-a a improvisar vestimentas com as poucas partes ainda utilizáveis do tecido. Seus músculos tremiam menos do que antes, e com um agarrão rápido, pegou a espada negra que repousava serenamente durante seu sofrimento. Em sua outra mão a coroa repousava. Ela havia refletido muito se era útil levá-la ou não, mas por fim decidiu que não tinha motivos válidos para abandonar a peça.
Seu olhar vagou ao redor, tentando decidir para onde ir. Cada direção parecia igual, uma vastidão negra sem fim. Então, com um suspiro, ela girou no lugar, fechando os olhos e escolhendo um caminho ao acaso.
— Não importa para onde, desde que eu me mova — resmungou para si mesma, e com passos vacilantes, começou a caminhar. Um último olhar foi lançado para a poça de sangue seco onde repousava em frangalhos. — Eu venci, chão filho da puta. Não vou morrer aqui.
E assim, seguiu sem rumo, com o tempo perdendo seu significado na escuridão infinita.
Horas se passaram, quando de repente Ana sentiu um movimento ao seu redor. No início, pensou que as vozes tivessem voltado. A sensação de algo espreitando, observando-a, tornou-se cada vez mais intensa. Tentou ignorar, mas o sentimento persistente de que algo estava próximo a deixou alerta, mesmo na escuridão total.
— Estou ficando louca de novo… — murmurou para si mesma, enquanto dava passos cada vez mais rápidos.
O movimento se intensificou, e com isso Ana parou, tentando sentir de onde o mal pressentimento vinha. Seus ouvidos captaram o som de patas silenciosas movendo-se na escuridão, mas nada era visto.
— É só minha imaginação — cantarolou, tentando se convencer, mas seu aperto mais forte na espada escancarou sua crescente preocupação.
Então, antes que pudesse reagir, a criatura atacou. Seu salto se assemelhava a um borrão, e a mercenária apenas teve tempo de cair de costas no chão para forçar um desvio. Com um pouso suave, a pequena silhueta felina parecia surpresa por não ter acertado, mas logo voltou a se afastar, saindo da curta área que podia enxergar.
Ana mal teve tempo de erguer a espada para se defender quando o mesmo animal surgiu de uma direção totalmente diferente, avançando com um impulso em direção a seu rosto.
— Não é particularmente forte… — o impacto fez seus dedos, ainda fracos, doerem, mas a arma permaneceu firme, fazendo-a apenas dar um leve passo para ajustar o equilíbrio.
Sem poder vê-la adequadamente, Ana errava todos os contra-ataques, e a luta se tornava cada vez mais frenética. Ela se debatia, tentando prever de onde o vulto viria em seguida, mas mesmo com seus aprimorados sentidos não conseguia detectar o felino, ela não estava acostumada a depender apenas deles.
— Maldição! — gritou, ofegante, enquanto sentia as finas garras rasgarem sua pele. A dor era intensa, mas a adrenalina a manteve em movimento. — Vamos Ana, não é nada comparado a tudo que você já enfrentou. Foco!
Em um gesto bobo em meio ao desespero, ela deu um forte peteleco em sua testa. Sua mente nublada clareou-se um pouco, e com um suspiro profundo ela parou seus movimentos apressados. Pequenos detalhes que sua falta de atenção a impediu de notar começaram a surgir; sempre que a criatura se aproximava, Ana sentia o ar se deslocar e um sussurro baixo surgia em seus ouvidos. O cheiro de pelo molhado também fluía por suas narinas, e uma direção aproximada de onde o próximo ataque viria chegou a seu corpo por reflexo.
— Te peguei! — ao invés da espada, seu pé esquerdo voou para frente em um forte chute, enquanto seu corpo se inclinava para trás. Quando pensou que havia se equivocado, seus dedos finalmente entraram em contato com o ser, ainda em meio a seu salto.
Um estalo abafado foi ouvido, pequenos ossos de ambos os lados se partiram, e Ana despencou pressionando o pé com a testa franzida.
— Mas que porra… vão ficar ainda mais tortos — suas mãos tocaram os pequenos dedos quebrados, mas logo ela se levantou, utilizando a espada como apoio. — Você também não teve sorte. Esses estalos foram de algumas costelas, né? — perguntou, sorrindo ao ouvir a respiração pesada que vinha da escuridão.
Com um grito de fúria, ela começou a correr atrás do som, balançando a espada. A perseguida tornou-se a perseguidora, em uma cômica cena que durou por longos minutos.
O felino mancava, mas corria de forma desesperada do ser bípede louco que estava atrás dele. Vendo que não iria longe, ele girou bruscamente para trás, se lançando em uma última tentativa desesperada de abater sua ex presa.
Como se já esperasse, Ana dobrou o braço com um movimento preciso, cravando a espada na cintura da criatura. Um grito estridente soou pelos arredores antes dele cair, morto, ao lado dela. Acompanhando-o, a garota caiu de joelhos, ofegante e coberta de sangue, tanto seu quanto de seu inimigo.
Gghhnnnrrr
Ana não hesitou. Como um animal, ela começou a devorar a criatura ali mesmo. Rasgava a carne com os dentes, faminta por algo fresco, o cheiro do sangue novo atiçando seus sentidos mais íntimos. O gosto era mais amargo do que a última criatura grotesca, mas infinitamente melhor do que a carne em decomposição que vinha consumindo nos últimos dias. Ela mastigava e engolia com avidez, até sentir-se plenamente cheia.
Quando terminou, levantou-se devagar, mas revigorada. Lambendo os lábios para limpar o sangue que havia sobrado, ela começou a analisar os restos do monstro. Se parecia muito com uma versão um pouco menor de um tigre, mas seu pelo misturava um belo cinza com um profundo pelo negro. Suas garras eram longas, mas pareciam frágeis. Era uma criatura elegante, até mesmo bonita, mas havia uma coisa que chamava a atenção.
— Não tem olhos — falando sozinha, Ana girou o rosto da criatura com a ponta da espada. Seu olhar encarou pensativamente o crânio sem vida, pouco maior que uma cabeça humana. As cavidades estavam lá, mas não existiam globos oculares, uma bizarrice da evolução. Em um movimento repentino, sua mão dividiu o duro osso ao meio com um limpo corte.
Ana pegou a parte de cima da cabeça decepada do felino, e com movimentos rápidos e precisos da espada curta, removeu toda a pele restante. Ela o levantou na altura dos olhos, girou-o de um lado para o outro, e com um balançar leve de ombros, colocou-o sobre sua cabeça.
— Não posso confiar nessa visão inútil. Assim ao menos evito de abri-los por reflexo — murmurou, sentindo a textura áspera dos ossos contra sua pele. O mundo já escuro agora desapareceu por completo.
Com os olhos cobertos, Ana começou a sentir o mundo ao seu redor de uma maneira diferente. Os sons tornaram-se mais nítidos, cada gotejamento de água e cada sussurro do vento uma pista. O ar tinha uma textura, uma densidade que ela podia quase tocar. Sentia o cheiro da pedra úmida, do musgo crescendo nas paredes, do sangue seco em suas mãos.
Um sorriso confiante e sinistro parecia brilhar logo abaixo do estranho crânio sem olhos. Os detalhes ocultos do mundo revelavam-se a seus outros sentidos, e, agora, um sutil caminho podia ser visto nesse mundo sombrio.
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