A Eternidade de Ana - Capítulo 49
Capítulo 49: Novos Horizontes
Quatro meses se passaram nas profundezas do abismo. Com o tempo, Ana deixou de pensar seriamente nas coisas, passando a viver no automático, como um dos monstros contra os quais lutava. Seus passos eram guiados mais pelo instinto de sobrevivência do que por qualquer decisão consciente. Cada dia era uma repetição do anterior: caçar, lutar, comer.
Conforme ela seguia seu caminho, os monstros se tornavam cada vez mais frequentes e a fauna do abismo parecia estar se diversificando. Pequenas árvores murchas surgiam ocasionalmente, criando vultos distorcidos que adicionavam uma camada extra de tensão ao ambiente já hostil. A vegetação parecia deformada, como se desejasse ser tão aterrorizante quanto a escuridão que a cercava.
O sono tornou-se um luxo devido aos ataques frequentes. Estava praticamente dormindo de pé enquanto caminhava, vivendo à base de mana para se manter desperta. A exaustão era um constante companheiro, mas a necessidade de sobreviver a mantinha em movimento.
Ela evitou seguir os rios, pois sabia que mais criaturas permaneciam perto da água. Já fazia dias que não via um, e suas roupas estavam encharcadas de sangue seco. O cheiro metálico era constante, impregnado em sua pele e cabelos. A cada respiração, o aroma acre misturado com o suor a lembrava de sua condição precária.
Nunca ficou parada, exceto nas raras ocasiões em que estava gravemente machucada e se escondia para se recuperar. Mas mesmo nesses momentos, não tinha muito tempo para descansar, pois os ataques eram tão repentinos que muitas vezes o intervalo entre eles era de poucos minutos.
Em meio a essa rotina brutal, Ana começou a pensar que estava chegando a algum lugar. A quantidade crescente de monstros e a mudança lenta, mas constante, das plantas eram sinais de que ela estava se aproximando de algo. Acreditava que esse era o caminho certo, que havia uma saída ou um objetivo em algum lugar à frente.
— Se estou indo na direção certa, por que parece que estou apenas me afundando mais? — reclamou ela, enquanto fendia a espada em mais uma criatura que a atacava.
Em certo momento sua alta recuperação deixou de acompanhar a destruição repetida de sua pele, e seu corpo ficou coberto de cicatrizes novas. A dor constante era algo com que ela havia aprendido a conviver, um lembrete de que ainda estava viva, de que ainda lutava.
As pequenas árvores murchas ficaram mais densas, e a vegetação se tornava mais presente, criando uma sensação de que estava saindo das profundezas mais sombrias do abismo e entrando em uma nova área. No entanto, o desconhecido trazia uma sensação de perigo ao notar os felinos de sempre, os quais carinhosamente apelidou de “petiscos”, sendo substituídos por outros monstros; Lobos de pelo vermelho corriam ao longe, estranhos seres semelhantes a macacos a observavam passar das árvores e morcegos de mais de um metro se recolhiam ao vê-la se aproximar.
Para sua sorte, a grande maioria apenas rosnou antes de se afastar. Ana supôs que fedia a morte, não havendo motivos para buscarem comida podre com tanta diversidade, mas não pensou muito no assunto. Ainda assim, a constante vigilância a deixava exausta, seus sentidos sempre em alerta máximo.
“Se mate…”, a voz suave sussurrou palavras distorcidas e insidiosas.
— Cala a boca.
“Se mate…”
— Mas que porra!
O olhar irritado de Ana pousou na lâmina em sua mão. Seus nós dos dedos ficaram brancos pela tensão conforme ela apertava o cabo da espada..
— As coisas já estão difíceis o suficiente com você aumentando, então só cale a merda da boca! — seu rosnado reverberou pelo local, e como se atendendo a seu pedido, o silêncio voltou a reinar.
A espada que ela carregava, sua fiel companheira nas batalhas, mudava dia após dia. As marcas aumentavam incessantemente, e com isso, seu tamanho e peso também cresciam, obrigando Ana a se adaptar a cada luta. Ao chegar no primeiro milhar de marcas de morte, a lâmina escura já alcançava os noventa e cinco centímetros, sendo diferente do que quando chegou aqui.
Sua elegância inicial estava sumindo, tornando-se uma arma mais bruta, mas ainda era extremamente bela. Apesar do peso aumentar, ainda era o ideal para ser manuseada com apenas uma mão, e os milhares de riscos davam um ar misterioso para a arma, como se contassem histórias das batalhas pelas quais passou.
Acompanhando a suposta evolução, sussurros começaram a surgir na mente da mercenária. Inicialmente ela pensou que eram as vozes de sempre, mas o sussurro não respondia como seus companheiros das sombras, então descartou a ideia. Depois, notou que a própria espada parecia transmitir uma sensação diferente quando os ouvia, então pensou que todas as conversas que teve até agora não eram sua imaginação, mas sim com a arma. No entanto, a voz apenas repetia um perturbador “se mate” incessantemente ao invés das complexas conversas rotineiras, fazendo Ana também deixar essa possibilidade de lado.
— Mas que porcaria de presente, hein, Gabriel.
Para sua sorte, havia uma certa aleatoriedade nos momentos em que a faca “acordava”, então boa parte do dia ela não ouvia o pedido de suicídio, mas ainda era irritante.
No final de mais um dia infernal, enquanto descansava, ouviu um som diferente. Um ruído distante, mas constante, como se algo grande estivesse se movendo. Sentiu um arrepio na espinha, mas não de medo. Era uma sensação de reconhecimento.
— O raspar do solo é diferente… esse não é som de rocha ou terra — sussurrou, levantando-se lentamente. — Parece concreto.
Com passos rápidos, seguiu o ruído, os sentidos aguçados a guiando pela escuridão. Cada passo era calculado, cada movimento medido. Sentia o coração bater mais rápido, a adrenalina correndo por suas veias.
Finalmente, chegou a uma abertura em uma grande rocha. Do outro lado, o som estava mais claro, mais definido. Parecia um eco de algo pesado, algo poderoso.
— Isso é uma construção humana! — exclamou a mercenária, levantando um pouco a aba do casco ao notar um leve brilho. A abertura tinha grandes pilares entalhados na pedra, atiçando sua curiosidade, a fazendo-a caminhar rapidamente em direção ao local.
Dentro da fenda havia um vasto salão, iluminado por uma luz fraca que parecia emanar das paredes. Ao fundo uma grande porta se erguia imponentemente, com ricos adornos dourados e grandes espinhos negros, e no centro uma criatura colossal se movia lentamente, seus passos reverberando pelo chão de pedra.
Era uma visão aterradora, uma fusão de carne e pedra. Seu tamanho atingia os três metros de altura e suas patas, grossas e poderosas, pareciam talhadas em granito, terminando em garras afiadas que raspavam o chão com cada movimento. Seu corpo era uma massa de músculos cobertos por uma pele rugosa e esverdeada com um padrão semelhante a escamas.
Cinco cabeças serpenteantes brotavam de locais aleatórios de suas costas, movendo-se independentemente, cada uma com olhos brilhantes que refletiam uma luz sinistra. Uma crista óssea cobria seu dorso, reforçando a impressão de uma bizarra mistura do vivo com o inanimado.
Sem aviso, uma das cabeças serpentinas disparou em sua direção, a boca escancarada revelando presas afiadas. Ana tentou desviar, mas a pele dura da criatura ainda esbarrou em seu braço direito, deixando um avermelhado e dolorido arranhão. O vento do movimento brusco fez seus cabelos voarem, mas com um movimento ágil, ela girou a espada, cortando a cabeça da serpente. Sangue negro jorrou, espalhando-se pelo chão e por suas já manchadas roupas. A criatura rugiu, com as outras cabeças movendo-se freneticamente.
— Tudo sempre é tão hostil — falou a rainha, retirando o crânio de sua cabeça com um movimento rápido. — É como se fosse feito para destacar a criatura no meio do abismo. Alguém prendeu ela aqui de propósito.
Depois de meses sem ver nada seus olhos arderam um pouco, mas rapidamente se adaptaram à luz sutil, revelando outras duas bocas vindo em sua direção. O estranho design das cabeças era fino, feito para que o ar fosse cortado sem resistência, causando poucas vibrações e, consequentemente, impedindo que Ana tivesse uma reação rápida sem usar a visão.
Depois de meses sem ver nada, seus olhos arderam ferozmente ao serem expostos à luz sutil. Ana piscou repetidamente, sentindo uma dor lancinante que a deixou momentaneamente cega. A sensação era de agulhas perfurando seus olhos, e quando finalmente começou a distinguir formas, percebeu duas bocas vindo em sua direção. O design estranho das cabeças era fino, feito para que o ar fosse cortado sem resistência, criando um ataque quase silencioso e fluido, impedindo que Ana tivesse uma reação rápida sem usar a visão..
Esquivando-se dos ataques, a garota avançou desferindo golpes precisos. A espada cortava através da carne e da pedra, mas o impacto causava dores intensas em seus braços. Uma das patas gigantes da criatura desceu em um golpe devastador. Ana rolou para o lado, escapando por pouco.
— Não passa de outro monstro burro. É decepcionante.
Levantando-se com um suspiro resignado, a mercenária disparou novamente em direção à criatura, mirando a base das cabeças. Com um salto, ela cravou a espada em uma das junções, cortando tendões e ossos, fazendo a cabeça cair ao chão com um baque surdo.
A criatura rugiu e se debateu em agonia. Em seus saltos descontrolados, uma das patas traseiras varreu o ar, acertando Ana e jogando-a contra a parede.
“E eu sou ainda mais burra”, pensou, com a dor atravessando seu corpo. Sua visão estava turva, mas se forçou a levantar, avançando novamente com passos firmes.
O padrão de ataque do monstro não mudou, as duas cabeças restantes voltaram a atacar de forma sincronizada, uma de cada lado. Ana piscou algumas vezes, recuperando o foco, e repetiu seu salto para as costas do monstro ao desviar por um triz das rápidas mordidas. Em um movimento levemente desequilibrado, cravou a espada diretamente no pescoço sangrento da cabeça que acabou de cortar.
A criatura estremeceu e se debateu ainda mais violentamente que antes, tentando derrubá-la, mas Ana segurou-se com firmeza. Com a outra mão, começou a socar a crista óssea que ficava no topo, criando finas rachaduras que iam lentamente se estendendo, até que por fim se rompeu, expondo órgãos amontoados que se moviam ritmicamente.
“Mate-o…”, nesse instante o sussurro insidioso da lâmina negra voltou de forma repentina, mas havia mudado, deixando Ana agradavelmente surpresa.
— Ah, com isso posso concordar, maldita espada — disse lentamente, pegando com a mão livre o coração da besta e puxando-o para sua habitual mordida. Enquanto a garota se perdia em seu próprio mundo ao sentir a energia revitalizando seu corpo, a criatura parou de se mover, despencando inerte para o lado.
Ana caiu junto com o colosso, ofegante e coberta de sangue da cabeça aos pés. Cada músculo doía, mas a sensação de vitória era inebriante. O salão caiu no silêncio, a luz fraca ainda dançando nas paredes.
— Agora não tem mais conserto — murmurou para si mesma, arrancando as roupas penduradas em seu corpo, já imundas e rasgadas em diversos pontos. Em seguida seus olhos foram para a espada, também coberta do espesso líquido negro, e sentiu uma raiva sem motivo, a deixando cair no chão sem muito cuidado.
Seu corpo nu perdia aos poucos o aquecimento gerado pela batalha, e com isso a fria câmara trouxe um leve arrepio. Com passos relaxados, Ana se aproximou da grande porta, sentindo cada detalhe sob seus dedos enquanto refletia sobre o próximo passo.
— Parece pesada…
Suas palavras acompanharam suas mãos, que encaixavam-se entre os grandes espinhos. Seus pés se ajustaram no chão com um firme deslize e seus músculos tencionaram-se por completo, fazendo seu corpo magro parecer crescer bruscamente de tamanho.
Por um instante, pareceu que o tempo parou, com a pequena garota empurrando a imóvel porta, mas de repente uma nuvem de poeira se espalhou pelo local, com a maciça construção começando a se mover.
As juntas metálicas rangeram, ecoando pelo salão enquanto se abriam lentamente. Ana apertou os dentes, seus músculos queimando pelo esforço, mas ela persistiu até que a abertura fosse suficiente para que passasse.
Do outro lado, a luz aumentava gradualmente, revelando um corredor vasto e vazio. Pegando de volta a espada e o crânio que já se acostumara a usar, ela seguiu o caminho, seus passos no piso “moderno” criando um som ritmado que a acalmava.
Ao fim da passagem, encontrou um pequeno e estranho arco, mas onde a porta devia estar, uma espessa fumaça negra circulava.
— É bizarro… como a fumaça não se espalha? — disse a mercenária, tocando com a espada para tentar entender o que era o estranho fenômeno.
Vendo que nada ocorreu, encostou a ponta do dedo, o qual também atravessou sem problemas. Com um suspiro, ela decidiu entrar de uma vez.
Enquanto atravessava a neblina, por um breve momento, o mundo ao seu redor pareceu hesitar, como se tudo se estagnasse. Havia uma pausa estranha, um lapso de transição que quase fez Ana perder o equilíbrio, mas logo a sensação passou, e a nova visão se abriu diante dela.
Ela estava na lateral de uma montanha, como se todo esse tempo estivesse dentro de um espaço confinado. A visão era surpreendente. À sua frente, uma vasta planície se estendia até onde seus olhos podiam ver. Apesar de ainda estar no subterrâneo, o ambiente era diferente do abismo que conhecia, ainda escuro, mas como se estivesse sobre a fria luz do luar. No horizonte, pequenos pontos luminosos brilhavam, indicando a possível existência de uma grande cidade.
— Então há um abismo além do abismo… — murmurou, sentindo uma mistura de descrença e curiosidade. Observando mais atentamente, viu uma estrada sinuosa que descia pela montanha, levando até a planície.
Ao longe, um grupo de caravanas se movia lentamente pela estrada. Era difícil distinguir detalhes, mas Ana podia ver as formas vagas de carruagens e figuras se movendo ao redor. Seu coração bateu mais rápido ao pensar na possibilidade de encontrar outros seres humanos ou criaturas inteligentes.
— Talvez eles saibam onde estou… ou como sair daqui — pensou em voz alta, já decidida. — Parece que não vou mais precisar de você, meu amigo.
O macabro capacete felino que a acompanhou foi posto em frente à porta com carinho, um marco de sua sobrevivência e uma despedida da escuridão absoluta. Com uma última olhada para a cidade distante, Ana começou a descer a montanha.
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