A Garota e o Contrato da Espada - Capítulo 16
No décimo nono andar, com uma vista fabricada de forma personalizada com a intenção de ver o porto por completo, ficava o escritório do CEO da empresa Vertrag, agora pertencente a Yuki. Ela estava sentada em sua mesa de costas para a janela, enquanto preenchia diversos formulários.
— Isso nunca acaba… — Disse enquanto soltava um longo suspiro.
Já haviam se passado horas desde o início do seu expediente e a pilha de documentos a serem preenchidos continuava maior que a dos preenchidos. Uma carga horária de doze horas por dia para muitos pode ser algo cansativo, mas para alguém com alguns séculos de idades, doze horas pareciam durar alguns minutos.
— Que estranho, a Melissa ainda não apareceu — Comentou Yuki olhando o relógio.
Graças ao seu hábito de se afundar no trabalho, ela costumava não perceber que já havia dado o horário de bater o ponto. Quem era responsável por não deixar que Yuki não trabalhasse demais era Melissa, a sua assistente. Todos os dias, às nove horas da noite, ela batia em sua porta com duas canecas de café em mãos. Ela nunca havia se atrasado, mas já eram dez horas e Melissa ainda não tinha chego.
— É por isso que eu não gosto de trabalhar com humanos… — Resmungou enquanto se levantava da cadeira indo em direção a porta.
Segundos antes de Yuki encostar na maçaneta, algo explodiu atrás da porta, jogando ela para o outro lado da sala. Confusa com o que estava acontecendo, se levantou do chão e viu grandes labaredas de fogo entrando em seu escritório.
— Você… — Disse olhando para a silhueta que adentrava o cômodo — Então você realmente não liga em matar inocentes?
De dentro do fogo, saía uma garota com longos cabelos vermelhos e uma cicatriz no rosto, Evelin. Seu corpo soltava pequenas fagulhas que incendiavam tudo ao seu redor, menos o quimono que vestia.
— Matar inocentes? — Riu Evelin — Só há você e eu dentro desse prédio, o resto já evacuou. Eu ouvi dizer que era algum incêndio neste andar.
Yuki já estava de pé. O terno que vestia havia derretido, deixando apenas um pequeno vestido, que muito mostrava e pouco escondia. Com sua pele mais exposta, era fácil perceber seu tom pálido, quase azulado. Um ar congelante emanava de seu corpo.
— Incêndio? — Disse a Rainha em tom de desprezo — Isso não é suficiente nem para fazer uma fogueira.
Em um estalar de dedos, metade do escritório havia sido congelado. Um duelo entre fogo e gelo acontecia no centro do cômodo. Na direção do fogo, Evelin caminhava de modo imponente com Gier em forma de espada em suas mãos. Enquanto isso, no lado do gelo, Yuki era quem se aproximava com calma e estacas de gelo surgindo ao seu redor, todos apontados na direção da garota.
O primeiro ataque foi um corte na vertical feito por Evelin, que foi rapidamente amparado por uma das estacas de gelo. Sem deixar tempo para reação, o resto das lanças avançaram na direção da garota, deixando ela encurralada. Percebendo sua situação, ela se incendiou novamente, para derreter o gelo ao seu redor, mas dessa vez ela usou o Fogo Primordial. O tom verde das chamas tomou o recinto.
— Isso de novo? Isso já é um truque velho! — Gritou Yuki.
Dessa vez a Rainha não golpeava com gelo, mas sim com uma pequena adaga prateada. Ela desferiu uma estocada na direção do estômago de Evelin, mas a garota conseguiu recuar com uma diferença de segundos.
— A “Espadinha” talvez reconheça essa faca. Isso é a adaga que te apunhalou pelas costas! — Disse fazendo uma nova investida.
Apesar de Evelin ter o poder de um primordial dentro de si, a experiência de combate de Yuki era muito superior. A garota que usava praticamente apenas o instinto para atacar e se defender, estava encurralada pela Rainha que calculava cada movimento que fazia no campo de batalha.
— Então você realmente só sabe latir com esse seu foguinho verde? — Comentou Yuki com desdenho.
— Eu sabia que isso era um erro. Fuja antes que ela te mate! — Exclamou Gier mentalmente para a garota
— Calem a boca! — Gritou Evelin, fazendo outra explosão de fogo ao seu redor.
Com a força da explosão, a Rainha bateu as costas com força em uma pilastra. O impacto pareceu ter causado algum dano, pois logo depois ela acabou tossindo algum sangue. Ao ver seu próprio sangue em suas mãos, Yuki se enfureceu.
— Sua vadiazinha, ninguém me faz sangrar. Não bastou me fazer essa cicatriz horrível?! — Gritou apontando para o próprio ombro, onde podia se ver uma grande marca feita por Evelin em sua última batalha.
Aproveitando que a Rainha estava distraída, a garota aproveitou para tentar recuperar o fôlego. Uma fraqueza…? Pensou. No entanto, ela mal teve tempo para respirar. Yuki ergueu sua mão no ar e a fechou, prendendo Evelin no gelo. Tendo apenas sua cabeça livre, ela tentou usar o Fogo Primordial para se soltar, mas o gelo crescia mais rápido do que ela derretia.
— Dessa vez eu estou preparada, vou lutar com você usando toda a minha força — Disse a mulher congelante.
Yuki se aproximava de punho fechado enquanto via a garota se debater dentro do gelo.
— Um rato preso na ratoeira, que dó — Comentou com tom de escárnio — Me deixe terminar com seu sofrimento.
Quando estava próxima o suficiente, a Rainha usou a mão livre para enfiar com calma a sua adaga no gelo.
— Com você parada é bem mais fácil acertar — Disse enquanto perfurava Evelin por detrás do gelo.
A garota gritou de dor ao ter uma lâmina penetrando seu estômago. Yuki ria ao ver o sofrimento dela.
— Não adianta gritar. Você mesma disse, estamos sozinhas aqui — Falou enquanto continuava enfiando a faca dentro de Evelin.
— Eu… Sei… — Murmurou a garota.
Sem que Yuki percebesse, ela havia libertado os seus dois braços. Agora com as mãos livres, ela abraçou a mulher em sua frente com toda a sua força, apertando mais ainda a lâmina contra si.
— Mas que mer… — Começou a dizer Yuki, mas foi interrompida quando a sala inteira foi preenchida com fogo verde.
Evelin agarrou ela e incendiou a si mesma, queimando também a Rainha. O fogo era tanto, que o prédio começou a desabar. Com o chão sob seus pés se abrindo, as duas caíram em queda livre gritando de dor e agonia.
A queda do décimo nono andar até o térreo durou apenas alguns segundos, mas para a garota pareceu séculos. Quando finalmente estava chegando no chão, entrou nas sombras para amenizar o dano na queda. Devido ao esforço de ter gerado todo aquele Fogo Primordial, Evelin se esgotou completamente. Ela acabou desmaiando assim que entrou nas sombras, sendo expelidas delas imediatamente.
Assim como já havia acontecido outras vezes, Evelin despertou de um sono que não lembrava de ter entrado. Estava muito confusa ainda e demorou um pouco para conseguir se lembrar do que estava acontecendo. Quando finalmente se deu conta que havia desmaiado no meio do combate, tentou se levantar, mas algo bateu em sua cabeça.
— Fica calma aí! Foi difícil fechar essas suas feridas, melhor você não abri-las — Resmungou uma voz familiar.
Foi quase como se aquela frase tivesse feito com que ela se lembrasse da dor, que logo tomou todo o seu corpo. Enquanto se deitava novamente, percebeu que estava de volta à floresta onde havia treinado com Kaori, que nesse momento estava sentada ao seu lado.
— Kaori…? A Yuki, ela… — Começou a dizer, mas foi interrompida.
— Está morta, carbonizada por completo. Eu me livrei do corpo para os humanos não acharem — Respondeu a garota de cabelo roxo.
Quase como se quisesse verificar se todas as partes do seu corpo ainda estavam lá, Evelin inspecionou a si mesma por completo. Percebeu que seu quimono, que antes já estava desgastado, agora estava todo chamuscado e com as mangas carbonizadas. Apesar de a roupa estar completamente suja de fuligem, seu corpo parecia bem limpo. Todas as suas feridas estavam devidamente fechadas e apesar de ainda doerem, não sangravam mais.
— Eu desinfectei todas as suas feridas, que como estavam basicamente em todo seu corpo, acabei tendo que dar um banho em você — Disse Kaori ao perceber a garota se alisando.
Ao ouvir a explicação, ela ficou envergonhada e cobriu o seu corpo com as mãos.
— Não me olhe assim! Eu só fiz isso porque você é uma louca suicida. E também quem vai querer olhar um corpo mixuruca desses… — Se explicou ao ver a reação de Evelin.
Apesar de ter ficado um pouco emburrada com a expressão “corpo mixuruca”, ela sentia que podia confiar na Kaori. Ver o modo como ela cuidava dela, fez com que se lembrasse de quando era criança e se machucava, e sua falecida empregada Erica, sempre lhe ajudava cuidando de seus ferimentos. Tais memórias pareciam pertencer a um outro mundo agora, quase como se fossem de uma vida passada, mas relembrá-las fez com que chorasse.
— O que foi agora menina? — Indagou Kaori confusa ao ver a garota chorar enquanto sorria.
— Não é nada… Eu só lembrei de algo — Respondeu limpando as lágrimas — Muito obrigada Kaori…
— Nem me agradeça, não era como se eu tivesse escolha. Convencer aqueles humanos a sair do prédio foi um pé no saco, mas quem você deveria agradecer é o Gier.
A garota pegou a espada quebrada que estava no chão ao seu lado e estranhou a falta de resposta.
— Depois que você desmaiou, ele usou a própria energia dele para controlar seu corpo e pra me procurar — Explicou Kaori — Graças à maldição, ele não tem muita energia, por isso ele tá meio que “dormindo” agora.
Enquanto ouvia a garota demônio falar, Evelin apreciava com carinho a espada em suas mãos. Pensou sobre quando se conheceram e como ele sempre a tratava de modo frio, como uma ferramenta, mas com o tempo por algum motivo ele havia mudado. De algum modo, Gier havia se tornado um companheiro confiável.
— Acho melhor eu ir embora antes que traga mais problemas pra você… — Disse a garota enquanto se levantava com cuidado.
— Ei, eu falei pra esperar. Você não está cem por cento ainda — Respondeu Kaori.
— Eu consigo andar, já é o suficiente. Vou usar a sua técnica de esconder a presença e vou passar um tempo fora da cidade.
Enquanto a Evelin se levantava e tirava a poeira de seu quimono com as mãos, a garota de cabelo roxo continuou sentada olhando para algum ponto distante no horizonte.
— Não se esqueça do acordo… — Disse.
— Eu sei. Eu voltarei.