A Garota e o Contrato da Espada - Capítulo 3
Desde a batalha com Yuki, Gier começou a tratar Evelin com mais respeito, como uma igual. A garota ainda não tinha entendido o que havia acontecido e o que era o tal “fogo primordial”. Como algo poderia ser tão quente ao ponto de queimar a realidade? No entanto, um mês atrás, se alguém falasse para ela que o seu pai era um demônio ela não acreditaria. À noite, após a luta contra Yuki, a garota decidiu tentar conseguir umas respostas.
— O que é esse tal “fogo primordial”? — Indagou Evelin.
— É a chama que me foi concedida no meu nascimento. O fogo capaz de devorar tudo — Explicou Gier.
— Se é a sua chama, por que eu posso usar?
— Todo demônio, ou mestiço, nasce com um poder por natureza. No meu caso, como eu disse antes, foi o fogo primordial. Mas normalmente, são coisas como fogo, água, vento ou até gelo como a Yuki. Você em teoria deveria ter um desses, mas pelo que eu vi, você nunca despertou nada assim. Imagino eu então, que o seu poder na verdade é usar o dos outros.
— No caso pra eu usar o poder de alguém, eu tenho que matar ela e absorver a sua alma?
— Exatamente.
— Entendi… — Disse Evelin, que no entanto, não tinha entendido tudo ainda.
Apesar de tudo, criar fogo não era a única coisa estranha que seu corpo andava fazendo. Já fazia mais de uma semana desde a primeira batalha e a garota não comeu, bebeu e dormiu durante esses dias. Mesmo assim, se sentia muito bem.
— O seu corpo deve estar usando as almas que coletou para se manter. Isso é normal — Respondeu Gier, após ser indagado sobre tal assunto.
Como não precisava comer ou dormir, Evelin usava todo o seu tempo para vagar às ruas atrás de criminosos. No entanto, não presenciou nenhum ato criminoso desde a primeira batalha. Já se pegou pensando “Por que essa cidade é tão segura?”. Ao perceber que ela realmente não conseguiria fazer isso sozinha, Gier resolveu ajudá-la.
— Se você é capaz de usar meu fogo, talvez consiga usar outras habilidades minhas — Comentou a espada.
— Quais habilidades seriam essas? — Indagou Evelin.
— Por exemplo, farejar pecadores — Explicou ele.
— Como eu faria isso?
— Pare, feche os olhos e respire de forma profunda. Analise os cheiros ao seu redor.
A garota fez o que lhe foi ordenado. Ao respirar mais atentamente, sentiu uma gama de cheiros diferentes que nunca havia percebido. Quando um grupo de estudantes do fundamental passou por ela, sentiu um cheiro doce, algo que lhe passava a sensação de pureza. Já quando alguns adultos se aproximaram, ela sentiu algo parecido, mas era mais fraco. Neles havia um odor mais intenso do que doce. Foi quando um rapaz encapuzado passou por ela, que sentiu algo estranho. O homem soltava um cheiro nojento, que chegava a gerar uma certa repulsa na garota.
— Sentiu? — Perguntou Gier — Esse é o cheiro de um pecador, devo dizer que o desse cara é mais forte que os de antes. Então tome cuidado.
— Certo — Respondeu Evelin.
De forma cuidadosa, mantendo uma certa distância, ela começou a seguir o rapaz. Como ela não necessariamente precisava enxergar ele para localizar, graças ao seu olfato, foi fácil segui-lo de forma discreta. O rapaz ia cada vez mais adentro da periferia. A perseguição que começou no centro comercial, estava se aproximando da parte menos abastada da cidade. O lugar dificultou para Evelin a seguir o rapaz, pois outros cheiros ruins começaram a aparecer.
— Esse lugar parece um ninho de pecadores. Por que você não tinha vindo até aqui antes? — Indagou Gier mentalmente para a garota.
— Eu cresci presa na minha casa, como eu conheceria esse tipo de lugar? — Respondeu ela.
A resposta pareceu ser o suficiente para a espada. Depois de adentrar mais um pouco nessa área, o alvo acabou entrando em uma pequena casa. Evelin se concentrou um pouco mais e tentou sentir quantas pessoas haviam lá dentro, conseguiu confirmar pelo menos cinco indivíduos. Todos fediam a pecado.
— Parece que esse lugar é alguma espécie de toca — Comentou Gier.
— Realmente. Eu chuto que tem, pelo menos, uns cinco caras — Indicou a garota.
— Parece que você se adequou bem ao meu olfato. Vamos tentar usar outro truque agora.
— Outro truque? — Questionou Evelin.
— Sim. Um dos demônios que invadiu a sua casa tinha poder de controlar as sombras. Tente encostar naquela sombra na parede. Faça isso enquanto me segura, assim posso dar uma pequena ajuda.
A garota seguiu as ordens da espada e encostou na parede com ele em mãos.
— Muito bem. Agora feche os olhos e se imagine entrando na sombra — Explicou Gier.
Evelin fechou os olhos, se concentrou e respirou fundo. De repente, ela sentiu seu corpo sumir e mesmo de olhos fechados enxergava com clareza diversos lugares, inclusive o interior da casa.
— Agora você se tornou uma com a sombra. Deve ser capaz de sentir tudo que ela toca e aparecer em qualquer lugar dela também. Use isso para atacar os bandidos — Disse a espada.
Apesar de a última batalha contra bandidos ter sido bem unilateral, o que houve dessa vez, nem pode ser chamado embate. Dessa vez, Gier se transformou em uma pequena adaga negra com detalhes carmesim, essa foi a arma causadora de um massacre.
Primeiramente ela apareceu por detrás de uma porta e cortou a jugular do rapaz que ela estava seguindo. Após o primeiro abate ser confirmado, ela foi para o outro cômodo. Usou a sombra das costas de um sofá para aparecer e esfaquear o coração de um criminoso, que estava sentado lá. Outro que estava no corredor fez menção de se virar na direção de Evelin, mas ela arremessou a faca em sua cabeça antes dele terminar a ação. Logo em seguida ela usou a sombra do corpo morto para recuperar a arma. Faltavam apenas mais dois, eles estavam dormindo, logo, foram alvos fáceis.
— Terminou… — Disse Evelin saindo da sombra em um lugar afastado da cena do crime.
— Uma performance melhor do que eu esperava. Não houve nem tempo para eles reagirem — Comentou Gier.
Assim como quando usou o fogo primordial, a garota sentiu uma fraqueza no corpo. Não tão intensa como a primeira, mas foi o suficiente para suas pernas cederam e cair de joelho no chão. Ela abriu a palma das mãos, deixando a faca cair no chão, e observou elas sujas de sangue. Lágrimas começaram a rolar em seu rosto.
— Eu… Matei eles… Eu fiz isso… — Murmurou a garota em voz baixa.
— Qual o problema? Não é a sua primeira vez, nem deve ser a última, devo dizer… — A espada fez menção de continuar falando mas foi interrompido por Evelin.
— Dessa vez eu não conhecia eles! Eu não peguei eles em flagrante. E se eles forem inocentes?! Eu matei eles enquanto assistiam TV e dormiam… — Esbravejou a garota.
— Você sentiu o cheiro, não sentiu? Eles eram pecadores e provavelmente bem piores que aqueles dois do armazém. Você está um passo mais próximo de sua vingança! Devemos nos fortalecer antes que Yuki volte com mais reforços — Explicou Gier.
— Esse não é o problema! O problema é que… — Começou a dizer, mas parou.
— Qual o problema Evelin? — Indagou a espada. Essa também foi a primeira vez que Gier chamou ela pelo nome.
— O problema é que eu gostei! Eu me sinto ótima depois de tudo isso! Por que eu estou gostando de matar pessoas?! Meus pais teriam nojo de mim se me vissem assim…
— Isso tudo é apenas consequência de estarmos devorando as almas deles. Esse seu êxtase após matar, é parecido com o que alguém sente depois de se alimentar. Não diz nada sobre seu caráter. Precisamos continuar agindo, não sabemos quando eles voltaram.
Após ouvir Gier, uma sensação de tranquilidade tomou o corpo de Evelin, assim se acalmando. Ela pegou a faca no chão, que retornou a forma de espada quebrada, limpou suas lágrimas e se ergueu do chão.