A Garota e o Contrato da Espada - Capítulo 4
Desde a primeira caça usando os novos poderes, se tornou rotina para Evelin derrotar os malfeitores na cidade. Apesar de sempre ser elogiada pela espada, Gier parecia não estar satisfeito com os resultados.
— Isso não é o bastante, você precisa de mais mana — Disse a espada depois de uma caçada a noite.
— Como assim mana? — Questionou Evelin ofegante.
— Você percebe, que apesar de estar indo muito bem com seus poderes, essa sua fadiga após batalha não diminui?
— Sim. Na verdade as vezes sinto que aumenta…
— Isso é porque você usa mana para usar os poderes. Você mesmo sendo uma mestiça, quase não herdou mana do seu pai. A mana que você usa é a que roubou dos demônios que invadiram sua casa. Seu corpo não produz mana. Como os humanos quase não tem mana, o ganho é muito menor que a perda — Explicou Gier.
— Então porque eu to caçando humanos? — Indagou a garota confusa.
— Seu corpo era muito frágil, você gastava mana só pra conseguir se mexer direito. Mas absorvendo almas humanas você ganhou a vitalidade deles. Como você já devorou dezoito almas, contando com as dos demônios que invadiram a sua casa, você tem o equivalente a força de dezoito pessoas em uma só. Diferente da mana, essa vitalidade é cumulativa, então criar uma base de força usando isso é muito importante.
— E a força de dezoito pessoas é o suficiente?
— Se você for no mano a mano contra um demônio superior, acho que você ganha. No entanto, se ele usar magia, você não dura um minuto.
— Ok. Como eu consigo mais mana então?
— O certo seria matar demônios, mas… — Começou a dizer Gier, quando parou.
— Mas? — Perguntou Evelin.
— Me siga.
Sem mais perguntas, a garota apenas seguiu as ordens da espada. Enquanto eles caminhavam, Evelin começou a sentir uma certa nostalgia ao ver aquelas ruas. Gier estava guiando ela de volta para sua antiga casa. Apesar de não ter passado nem um mês desde que esteve aqui pela última vez, parecia uma eternidade. Em um estalar de dedos tudo mudou. A garota que mal podia andar sem ajuda de alguém, agora passava suas noites caçando criminosos.
— P… Por que estamos vindo até aqui? — Questionou Evelin confusa.
— Meu corpo não era a única coisa escondida dentro da sua casa. Ainda há mais segredos lá que você nem consegue imaginar — Respondeu a espada.
Segredos… Pensou a garota. O fato de seu pai ser um demônio e de que ele escondia os restos de um grande demônio era um segredo para ela até pouco tempo. O que mais poderia ter sido escondido dela esse tempo todo? Evelin não era capaz de imaginar nada que fosse tão surpreendente do que tudo que já havia descoberto.
Ao rever sua casa, ou o que sobrou dela, Evelin caiu em prantos. Estava tudo destruído, havia apenas algumas faixas da polícia cercando o perímetro. O lugar que foi palco de praticamente todas as suas memórias, agora estava irreconhecível.
— Erga-se — Disse Gier. Foram poucas palavras, mas o suficiente para tranquilizar a garota. Ela limpou as lágrimas e adentrou os escombros.
— O que estamos procurando? — Perguntou Evelin enquanto observava os destroços.
— Se a minha caixa estava no seu quarto, o resto também deveria estar lá.
Seguindo o conselho da espada, a garota foi até o seu quarto, ou o que costumava ser. Haviam pedaços do teto caídos no chão, ela os recolheu e limpou um pouco a área até ser capaz de ver o chão.
— Certo, se eu me lembro bem, você deveria ter algum tapete no seu quarto — Comentou Gier.
— Sim, ele ficava aqui. Ainda tem a marca dele no piso — Respondeu a garota.
— Vá até o lugar onde ele fica, mais ou menos no meio, e quebre o chão.
— Quebrar o chão? — Perguntou Evelin confusa.
— Sim, eu já lhe disse que a sua força aumentou depois de ter devorado aquelas almas. Você estava erguendo pilastras de madeira do chão como se fossem nada. Ainda não entendeu a extensão do seu poder atual? — Indagou a espada.
A garota sabia que ele estava certo. Realmente tinha estranhado a facilidade que teve para levantar aqueles destroços. Além de que, ela lembrava da explicação sobre ela ter a força de dezoito pessoas no corpo dela, apenas não tinha se acostumado com tudo isso ainda. Caminhou então, até o lugar onde costumava ficar o tapete de seu quarto. Ele sempre esteve lá, desde antes dela nascer. Era um lindo tapete com desenhos rústicos representando o luar, mas agora, não passava de um trapo queimado, irreconhecível. Ao dar pequenas batidas no chão com os pés, percebeu que a parte do centro parecia ser oca. Seguindo as ordens de Gier, pisou com toda a sua força no chão, quebrando ele.
— Então eu realmente consegui… — Murmurou Evelin.
— Era óbvio que conseguiria, acho até que exagerou um pouco — Comentou a espada.
Ela olhou para o chão e percebeu que o seu golpe acabou fazendo uma enorme rachadura, que se ampliou por todo o cômodo. Se tivesse feito isso antes da casa ser destruída, ela mesma teria o feito. Levantou seu pé, que não ficou ferido, revelando o que estava escondido debaixo do piso. Era outra caixa de madeira, parecida com a que encontrou Gier. Apesar do forte golpe da garota, a caixa não parecia ter sofrido nenhum dano. Assim como na última, havia alguns arabescos estranhos rondando toda a caixa. Com seu conhecimento atual, reconheceu um deles. No centro da tampa da caixa, havia o mesmo desenho que apareceu na mão esquerda de Evelin, o tal “contrato”.
— A outra caixa também tinha o contrato nela? — Indagou a garota.
— Na verdade, nenhuma delas tem o contrato. Repare melhor, o seu contrato tem mais coisa que o desenho na caixa. O que estampa as caixas é apenas a minha runa — Explicou Gier.
— Runa?
— É como se fosse a assinatura de um demônio. Depois lhe explico melhor, agora abra a caixa.
Sentindo a presa da espada, ela não teve escolha senão obedecer. Ao abrir a caixa, observou uma pulseira, que era feita com várias esferas verdes. A sua cor lembrava muito a do Fogo Primordial. Recolheu o artefato de dentro da caixa, assim que pôs suas mãos nela sentiu uma força emanando do objeto.
— Mas o que é isso? — Perguntou Evelin, enquanto inspecionava a pulseira, que parecia ter um brilho próprio.
— Isso é o que restou do meu poder. Mana, apesar de ser algo mágico, continua sendo apenas um tipo de energia. Seguindo assim, as regras básicas da natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma — Começou a explicar Gier — Para conseguir me enfraquecer por completo, arrancaram toda a minha mana e a cristalizaram nessas pequenas esferas. O maior objetivo deles com isso tudo, no final era conseguir mais poderes.
— Por que isso está aqui então? — Questionou a garota.
— Apesar de a mana estar fora do meu corpo, ainda posso controlar ela. Dito isso, é claro que não deixaria eles usarem ela despreocupadamente.
— Já que é assim, você não poderia ter usado isso pra recuperar os seus poderes?
— Não, o corpo que eu fui aprisionado não consegue aguentar a minha mana. Apenas pude controlar aqueles que absorveram ela, o máximo que consegui fazer foi causar a queda do antigo Rei do Inferno. Aproveitei a bagunça e usei seu pai para esconder o que restou de mim.
Tudo aquilo era muita informação para Evelin. A garota encarou a pulseira enquanto tentava encaixar todos os fatos na sua cabeça, Gier por sua vez respeitou o tempo da garota. No entanto, analisando tudo que a espada havia lhe dito até agora, tinha uma coisa que incomodava ela.
— Você usou meu pai? Então você controlou ele usando a sua mana? — Indagou ela, após analisar os fatos.
— Sim, mas não roubei seu livre arbítrio por completo. Eu salvei sua vida durante a guerra e o fiz estabelecer moradia aqui. Apaguei de sua mente tudo que sabia sobre mim, apenas deixando o forte sentimento que devia cuidar desse lugar — Explicou a espada.
— Se meu pai fugiu durante a guerra que destronou o Rei do Inferno, perdendo suas memórias sobre seu causador e por consequência sobre ela ao todo. Não teria como ele dar os “devidos cumprimentos” para o novo rei… — Evelin continuava o raciocínio, Gier percebeu a onde isso levaria.
— Se colocar as coisas desse jeito… — A espada começou a tentar se explicar, quando a garota o interrompeu — Foi sua culpa… Tudo sua culpa… — Murmurou ela.
Gier não conseguia acreditar no quão perspicaz a garota conseguiu ser. Ele tinha noção disso tudo e sabia que um dia Evelin perceberia, só não pensou que fosse tão cedo.
— De certa forma sim, mas… Isso se trata de um efeito borboleta, não teria como saber que isso aconteceria. Além disso tudo eu te salvei… Evelin? O que está fazendo? — Ele tentou dizer suas desculpas pré prontas, quando percebeu que a garota estava começando a esquentar.
Evelin, sentindo um enorme ódio, um sentimento de traição. Ela se sentia enganada. Toda essa tempestade dentro de seu coração começou a transbordar, gerando chamas ao seu redor.
— Evelin, se acalme — Disse a espada.
— Como você pode?! Querer me ajudar a me vingar, agindo como se fosse o meu salvador. Quando VOCÊ, era o causador de tudo! — Exclamou Evelin, aumentando cada vez mais a chama que emanava de seu corpo.
— Eu não queria isso, eu apenas tentei consertar os meus erros passados… — Explicou Gier.
A espada criou um plano, manter a garota ocupada até que sua mana acabasse. Por ter gastado muito de seu poder na caça aos bandidos, não lhe restava muito. Assim como ele havia calculado, a chama começou a abaixar.
— Concertar seus erros? Mandar que eu matasse crianças inocentes não é consertar um erro! — Esbravejou a garota.
Em mais um ataque de fúria, Evelin fechou o punho que segurava a pulseira.
— Não é bem assim… — Continuou a espada, tentando se explicar. No entanto, percebeu algo horrível, a chama da garota estava aumentando.
De onde vem esse poder?! Pensou Gier, mas já era tarde demais. O fogo de Evelin se tornou verde. A garota havia consumido uma das esferas da pulseira. Em um grito enfurecido de pura selvageria, o corpo dela gerou uma chama sem precedentes.