A Herança do Assassinato - Capítulo 36
A serenidade noturna era um dos pequenos detalhes da vida o qual a maioria das pessoas não sabia como aproveitar. Quando a escuridão preenche o céu, a agitação do mundo parecia desaparecer, junto das pessoas que iam dormir. Era um dos momentos preferidos do dia para Louise.
Sempre que pode, pega um livro, junto de uma cadeira, para se sentar na varanda de seu quarto. O vento gelado conseguia acalmar seus músculos tensos dos longos treinos e o silêncio a permitia focar em seus próprios pensamentos.
Após algum tempo de leitura, Louise fechou seu livro e guardou tudo em seus aposentos, pois a noite era perfeita para ir até o quarto de e passar um tempo com o seu querido amigo, mas antes de sair achou melhor se trocar, afinal, caminhar pelo castelo vestindo apenas uma camisola seria uma ação de extrema vulgaridade, a qual uma cavaleira como ela não deveria se submeter. A menina então procurou usar um pijama bem largo e comprido, o qual lhe mantinha aquecida, além de a estampa de galinha ser extremamente fofa. Após colocar as pantufas de dinossauro em seus pés, Louise se retirou de seu quarto.
Saltitante, a donzela caminhava pelos corredores do castelo, exibindo um sorriso alegre em seu rosto, entretanto, esse momento durou pouco, sendo interrompido pelo ressoar de uma voz.
— Vejamos o que temos aqui — A nítida prepotência que impregnava aquelas palavras era enjoativa. — Não sabia que uma beldade como essa poderia ficar acordada até tão tarde.
O comentário surpreendeu Louise, que subitamente parou a caminhada e se voltou para o interlocutor.
Bem na esquina do corredor, havia um garoto, parado com suas costas encostadas sobre a parede. O sorriso em seu rosto exibia grande arrogância. O sujeito trajava vestimentas de alto valor, uma túnica muito semelhante a de Leonard, mas ao invés do verde musgo, o azul escuro era a cor predominante, podendo contrastar com os adornos feitos de prata. A sua pele era pálida como a neve, quase transparente, e seus cabelos, penteados para o lado, eram brancos como o aço de uma espada, o que impedia que seus olhos cinzentos ganhassem destaque. Se Louise já não o conhece, diria que era um fantasma na sua frente.
Aquela aparência era extremamente notória e impossível de se confundir com qualquer outra pessoa.
— Ora, príncipe Steven, que surpresa vê-lo por aqui — disse Louise, fingindo uma alegria a qual ela não sentia. — O que lhe trás para fora da cama tão tarde?
— Obviamente foi para encontrar você…
Steven era típico príncipe mesquinho, que sempre tinha tudo o que queria na palma da mão, mas até Louise era obrigada a reconhecer o talento daquele rapaz, sua esgrima era de alto calibre, afinal, sempre teve os melhores professores ao seu dispôr, e também tinha uma inteligência de combate invejável.
— Não importa quantas vezes eu te olho, sua beleza sempre me encanta — Steven caminhou até Louise, que tentava se afastar discretamente, mas o nobre era insistente e encurralou a menina contra a parede. — Você é melhor do que aquelas baranga com caras de cachorro metidas a besta que se sentem especiais apenas por pertencerem a uma linhagem secundária. É bem patético pra falar a real.
Cada palavra que saia da boca daquele porco deixava Louise com vontade de vomitar. Ela precisava dar um jeito de fugir dali, se fosse apenas um infrator nas ruas, a menina poderia recorrer a métodos mais agressivos, só que essa não era a situação, aquele a sua frente era o herdeiro do trono de uma das três grandes nações do continente, qualquer tipo de afronta a ele, seria uma afronta direta a coroa Liryo.
Louise tinha que escapar sem agressividade e com o máximo de elegância.
— Como eu disse, é sempre um prazer te ver, só que… — Louise passou por debaixo dos braços de Steven, com extrema velocidade e graça, utilizando dos movimentos que aprendeu durante os treinamentos com espada. — Já tenho compromisso marcado com o príncipe Leonard e seria extremamente rude da minha parte não comparecer sem um aviso prévio. Aposto que o senhor entende, já que ocupar um cargo tão importante na nobreza deve exigir muito de seu tempo.
Se virando de costas e retomando sua caminhada, enfim parecia que Louise havia se livrado do príncipe inconveniente. Pelo menos era isso que a cavaleira achou, até sentir o seu pulso sendo agarrado por uma mão gélida.
— Tenho certeza que o Leonard entenderia sua ausência se explicasse depois.
A situação não poderia ficar pior do que estava. Steven acabará de cruzar uma linha na privacidade de Louise a qual não deveria. A menina tinha que conter cada músculo do seu corpo, para não expressar o nojo que sentia e quebrar os frágeis ossos do braço daquele merdinha.
— Infelizmente não será possível — O corpo de Louise tremia para a mesma não revidar à invasão.
No rosto de Steven, ele exibia aquela feição prepotente. Ele tinha plena consciência das suas atitudes, isso tornava as coisas ainda piores. Esse sujeito é o próprio estrume da sociedade. Mesmo realizando um ato hediondo contra Louise, que não poderia fazer nada contra ele, cada vez mais se aproximava. Afinal, sozinha ela estava impotente.
— O que fazes aqui irmão?! — Uma voz feminina e imponente reverberou entre as paredes, com força o suficiente para fazer Steven soltar o pulso de Louise e se afastar, além de fazer sua postura de superioridade desaparecer, transformando aquele homem arrogante em um filhote de gazela recém nascido, com medo do mundo ao seu redor.
O som de saltos caminhando em suas direções era intimidador, como se dessem uma prévia da tempestade que estava por vir.
Olhando por cima do ombro de Steven, Louise pode enxergar a mais nova participante. Com um vestido com os mesmos detalhes da túnica de Steven, portadora de longos cabelos brancos, como se fossem um vestido de noiva, seu olhar cinzento e impiedoso parecia ter a capacidade de enxergar através de ambos, vendo tudo atrás deles.
— Nosso pai exigiu nossa presença na sala de reuniões — A mulher parou na frente de Steven e mesmo sendo alguns centímetros menor que ele, sua presença era dezenas de vezes mais amedrontadora. — Eu disse para ir na frente, pensei que já estaria lá, mas parece que me enganei. Ainda não sei porque achei que você iria agir de acordo.
Steven estava prestes a justificar suas ações, mas nem tempo teve, pois a sua irmã logo cortou sua fala. Antes de ir embora, o jovem príncipe olhou mais uma vez para Louise, lançando-lhe um beijo distante, o que ocasionou em refluxo em seu estômago e a mesma quase vomitou, mas por sorte o nobre se virou de costas. Alguns segundos depois, a outra princesa ficou ali parada, apenas analisando Louise de sua cabeça até os pés, com uma clara expressão de julgamento. Aquela era Freya, a irmã mais velha de Steven e herdeira do trono de Lyrio. Não se sabia muito sobre ela, já que era muito mais reservada que as outras garotas da nobreza, mas nas poucas ocasiões que as pessoas tiveram contato com ela, a descreveram como alguém com coração de gelo.
Quando ela finalmente foi embora junto do irmão, parecia que um peso enorme havia sido tirado de cima de Louise, permitindo ela respirar novamente. Aqueles dois eram muito estranhos e desagradáveis, cada um de seu jeito.
— Tô precisando de uns dias de folga — disse a cavaleira, enquanto usava a parede de apoio.
Se recuperando da situação anterior, Louise retorna a sua jornada até o quarto de Leonard. Chegou lá em pouco tempo, ficando em frente a porta e no exato momento em que ela ia bater na porta, parou com o som de gritos vindos de dentro do aposento. Era a voz de Leonard, além de outra, mais grossa e velha, ambos pareciam estar em meio a uma feroz discussão, a qual Louise fora capaz sentir a intensidade mesmo por trás da porta. Os berros eram tão enfurecidos, que pareciam capazes de derrubar as paredes.
Louise permanecia paralisada no corredor, aquele absolutamente não era o momento ideal para sua aparição.
Em meio ao conflito, quando parecia que todo o castelo iria ser derrubado, os guinchos cessaram e o som de passos pesados partiram em direção a jovem. A menina entrou em pânico, não querendo ser mal interpretada, então avistou um grande vaso de planta ao seu lado, grande o bastante para se ocultar. Ela então correu e se escondeu agachada atrás da decoração.
Observando com cuidado para não ser avistada, Louise viu a porta do quarto de Leonard ser aberta com uma força tão exuberante, que parecia que iria sair voando junto da puxada. De dentro cômodo saiu um homem, este que mesmo que a jovem aprendiz de carvaleira vira tão poucas vezes, mas tais momentos fora o suficientes para fazer com que a imagem do Rei de Trusca ficasse gravada em sua sua memória. ele era um sujeito alto e com um porte muito diferente do restante da burguesa. Por debaixo da túnica verde, seus músculos ganham um realce, exibindo sua enorme força física apenas ao caminhar. Mas não só de força ele era dotado, seu rosto, apesar de robusto, era encantador, a barba exuberante parecia um complemento de seu maxilar, se misturando com a pele da cor de latão.
O homem que sempre era gentil e bem humorado com todos não estava em seus melhores dias, parecia que a qualquer momento uma veia em sua testa ia estou com sua fúria.
— Eu vou para a reunião — decretou o Rei, mantendo seus descontentamento contido — Espero que compreenda nossa conversa e que tais atitudes não tornem a acontecer.
Não houve resposta.
A majestade então partiu para seu compromisso, finalmente abrindo espaço para Louise voltar a andar normalmente.
Ainda meio chocada com o que acabará de ver, em passos lentos e delicados, Louise foi até a porta do quarto de seu amigo, o avistando deitado sobre sua cama, agarrado a um travesseiro, o qual usava em vão para abafar o som de seu choro. O ambiente em si era elegante, com uma decoração muito bem alinhada e com móveis de alta linha, entretanto o clima pesado reinava, deixando o espaço que deveria ser de extrema beleza, repulsivo.
Sentida pela situação atual de seu melhor amigo, Louise se aproximou do mesmo, repousando sua mão sobre seu ombro.
— Leonard? Quer conversar?
O rapaz ficou um tempo considerável em silêncio, até tirar a cara do travesseiro, se soltando para Louise, com ambos os olhos avermelhados e úmidos.
— Discuti de novo com meu pai, mas dessa vez foi pior — falou o garoto, ainda com a voz fraca — Ele quer que eu seja mais governante, porém isso não é pra mim. Toda a minha vida foi moldada apenas com esse objetivo final, eu nunca pude ter a liberdade de escolher o meu futuro, apenas tive que aceitar calado!! — Liberando a raiva que guardava dentro de ai, Leonard jogou o travesseiro que estava em suas mãos na parede.
Sem saber ao certo o que dizer em uma situação como essa, Louise apenas puxou Leo para um aconchegante abraço, o qual o jovem príncipe se debruçou e mais uma vez voltou a chorar em silêncio entristecedor.
— Parece que eu nunca vou ter liberdade nessa merda!!!
O coração de Louise sentia enorme dor ao se deparar com aquela cena. A menina então passou os dedos entre os fios de cabelos cacheados, com delicadeza. Após algum tempo naquela mesma posição, as lágrimas de Leo finalmente haviam acabado, e o mesmo se separou de Louise, que levou suas mãos até os olhos do rapaz, limpando-os.
— Leo, parte meu coração te ver assim — Os olhos de Louise também começaram a lagrimejar. — Eu sei que um dia você e seu pai irão se entender, tenho certeza disso, mas até lá, você precisa ser forte, mas sempre que precisar vou estar aqui para te ajudar. Não importa a hora ou lugar, sempre que precisar falar comigo eu vou estar disposta a te ouvir.
Mesmo em meio a dor, Leonard foi capaz de esboçar um sorriso em seu rosto, fraco, mas sincero.
— Obrigado Louise, não sei o que eu faria sem você aqui, esse pessoal da realeza não parecem me entender. Eles só pensam no poder e quando poderão assumir o trono, parece que nada mais importa.
— Por isso você é importante, Leonard — Louise passou a mão sobre a bochecha do príncipe. — Você é uma fagulha de esperança no meio de uma tempestade de neve.
Com aqueles elogios, Leonard não conseguiu não ficar feliz. O bajulamento era uma das fraquezas daquele jovem rapaz.
Mais tempo se passou, ambos tinham perdido por completo a noção da hora, a noite poderia estar acabando de começar, como também o amanhecer poderia estar próximo. A iluminação do ambiente estava fraca, Leonard deixou apenas um pequeno lampião aceso no criado mudo ao lado de sua cama. Essa escuridão lhe trazia um conforto a dupla, mas também criava o clima perfeito para o que Leonard queria:
— Hora da história de terror!! — proclamou Leonard, forçando uma caricata voz das peças de teatro.
Louise ao ouvir tais palavras, logo se virou de costas para o príncipe, abraçando o travesseiro mais próximo.
— Não Leo!! Sabe que eu odeio histórias de terror!!! — Um arrepio correu pela pele de Louise.
— Vamos lá, só umazinha!! — Leonard juntava as palmas das mãos e suplicava como uma criança.
Após tantos gritos em seu ouvido, a irritação causada por Leonard conseguiu superar o temor de Louise, que decidiu ceder ao seu pedido.
— EBA!! — comemorou o garoto, que em seguida limpou a garganta para tentar fazer uma entonação mais grave. — A história de hoje é diferente de todas as outras, por que ela é real e aconteceu aqui na Capital — Só isso já foi o suficiente para causar calafrios em Louise. — A maioria da população prefere não acreditar, pelo bem das suas noites de sono. Ao cair da noite, quando as ruas estão desertas, um ser começa a vagar pela a escuridão, sempre a espreita, esperando em becos escuros sua futura vítima.
Conforme a história foi se passando, e cada vez mais detalhes eram dados, o quarto ao redor de Louise já não parecia ser tão aconchegante. Os móveis pareciam velhos e a escuridão se moldava para esconder monstros. Visando criar uma proteção contra essas criaturas, Louise se cobriu com um lençol, dos pés à cabeça, deixando apenas seu rosto para fora.
— E ao se deparar com apenas uma pessoa desavisada caminhando pelo seu território, é que este demônio ataca. Saindo em meio às sombras, encurrala a sua presa, que por mais que tente se defender, qualquer tipo de esforço é completamente em vão, pois corpo do monstro é feito por pura trevas, o que serve ainda mais para fomentar o medo na vítima, porém o demônio não se contenta com isso, ele quer ainda o total temor de seu alvo, a qual ele começa a realizar charadas e a cada resposta errada, uma parte de seu corpo é arrancada, começando pelos dedos, e esse processo irá continuar, até que tenha uma lenta e demorada morte.
Já bastava, a jovem cavaleira já não resistia mais, seu coração batia tão rápido que parecia que poderia saltar pela boca a qualquer momento, o corpo estava frio como uma pedra de gelo. Entretanto, as palavras que davam fim a tal lenda urbana pareciam causar uma espécie ignição em seu cérebro.
— As pessoas o chamam de “Raposa Carnívora”, pois a última visão que suas vítimas tem é a de sua face branca de raposa, antes de suas vidas chegarem a um doloroso fim e terem seus corpos decorados por ela.
Sombras. Face de raposa. Ambos os conceitos se encaixam com as lembranças de Louise e como em um quebra cabeça, a jovem foi construindo uma imagem em sua mente. Os boatos poderiam estar sendo apenas espalhados pelos mais velhos com o objetivo de assustar as crianças e fazer com que elas se comportem, porém talvez, talvez lá no fundo, houvesse um pequeno pingo de verdade nessa história e a Capital esteja com a ilustre presença de um assassino em série. O Estripador.