A Herdeira do Gelo - Capítulo 13
Acusada de traição contra os cavaleiros, Yara acaba parando na prisão até que estes decidam se ela é ou não uma traidora de fato. Entretanto, Orlen diz confiar em suas palavras e então a liberta de sua cela e pede para que vá embora e não volte mais enquanto ainda tem chance.
Não sabia para onde ir, a noite estava fria e a nevasca estava muito forte, precisava de um lugar para passar a noite. Enquanto perdida, sentiu uma aura maligna por perto, e então uma silhueta escura saiu de trás de uma das árvores logo quando desceu de seu cavalo para conferir o que era.
— Você… Por que veio sozinha? Eu esperava que Kanan viesse pessoalmente para vingar a morte de seu amigo, mas parece que ele é covarde demais para isso.
— Não fui enviada por ninguém e muito menos vim para lutar com você. Me deixe passar e saia do meu caminho, não precisamos nos enfrentar aqui — disse Yara, descendo de seu cavalo.
— É mentira. Você não quer me enfrentar porque me acha fraco, não é? Admita de uma vez que você não me considera como uma ameaça de verdade — respondeu Kian.
— E se eu achar? — provocou, o fazendo pensar que a estava desafiando.
— Se realmente me acha fraco, por que não me desafia para um duelo? Prove que você é mais forte do que eu e a deixarei ir embora — falou ele, em seguida retirando o seu capuz que antes cobria o seu rosto e estendendo sua mão para a garota.
Kian tinha uma aparência jovem, com longos cabelos acinzentados que vão além de seu pescoço e olhos também cinzentos. Junto de seu rosto cheio de retalhos, como se tivesse sido costurado por alguém.
— O que me diz? Irá aceitar o meu desafio ou vai fugir como uma covarde? — insistiu.
“Não tenho escolha, o confronto contra Kian é inevitável. Se eu não aceitar o seu desafio ele irá me atacar de qualquer jeito… Então, irei atacá-lo antes!” — pensou.
— Eu aceito — aceitou Yara, não tendo outra escolha.
— Muito bem, eu sabia que você era diferente deles. Enquanto eles se escondem atrás de muros, eu torno o meu exército cada vez mais forte! Dia após dia, estou sempre ficando mais forte. Logo minha vingança será completa! — exclamou, deixando escapar de sua garganta risadas sádicas.
— Mas… se você ganhar, o que irá acontecer? — quis saber.
— Se eu ganhar, você se juntará a mim e juntos abraçaremos o caos com todas as forças, e então destruiremos os mais fracos! O caos deve reinar, o caos nos liberta e somente o caos deve prosperar! — falou Kian, abrindo um grande sorriso psicótico em seu rosto.
— Por que eu me juntaria a um monstro como você? Monstros como você não merecem o direito de viver! — protestou Yara.
— Você não entende? Neste mundo nós somos deuses, nós nascemos como seres abençoados pelo poder, fomos gratificados pela bênção dos deuses dos deuses. Você e eu somos iguais, ambos destinados a um futuro brilhante! — explicou-se.
— Somente me juntarei a você se você me prometer que irá deixar aquelas pessoas em paz! — exigiu ela.
— Isso é impossível…
— Pois saiba que a minha vitória já está garantida — falou Yara, se preparando para o combate e puxando sua lança.
— Saiba que você irá morrer mais destemida do que muitos. Irei mostrar a você que meus soldados não são tudo o que tenho e logo você se arrependerá de ter me desafiado — respondeu ele em um tom calmo e confiante, retirando duas adagas de seus bolsos e as segurando com as pontas viradas para si.
Ela podia ver Kian, não muito distante agora. A nevasca envolvia o seu rosto, embora isso parecesse não incomodá-lo. Ele já havia retirado seu capuz, com a prontidão para o combate irradiando de sua postura, pronto para atacá-la a qualquer momento.
— Tome cuidado, Yara. Kian é traiçoeiro — disse para si própria em voz baixa, dando passos lentos para se afastar do mesmo.
Ela sabia que podia vencer, a esse ponto sabia qual era o seu limite e tudo o que precisava fazer era colocar tudo o que aprendeu em prática. Desta vez, não era como um teste, como foi contra Christa, agora era um combate real, valendo a sua vida.
— Você também fugiu, não é? — perguntou Kian, a quem queria tirar algo de Yara.
— Do que está falando? — indagou ela, confusa.
— Vi outros como você antes de chegar aqui — disse, na tentativa de a provocar. — Quer saber o que eu fiz com eles assim que os encontrei? Eu os destruí. Afinal, eles eram fracos, mas você… Você é diferente!
Isso foi a gota d’água, estas palavras teriam a feito explodir em fúria, porém Christa a ensinou a controlar seus sentimentos. Então, respirou fundo e se segurou para não deixar que sua raiva vazasse.
— Aliás, você ainda não me falou o seu nome, quem é você? Você é nova nos cavaleiros da avalanche? Eu estava os observando a tempos e em momento algum ouvi falar de alguém como você.
— Eu sou aquela que te derrotará — rebateu a garota, frente a frente contra seu inimigo, emanando tamanha calmaria.
— Nem mesmo uma cavaleira você é de verdade, você não é nada. Foi muita gentileza de seus amigos a deixarem vir sozinha até aqui e me poupar do esforço de um combate decente — disse Kian.
Escorria malícia de cada palavra sua ao mesmo tempo que seus dentes arreganhavam. Era o tipo de raiva sobre a qual sua avó advertia, daquela que consumia por inteiro um indivíduo e distorcia cada parte dele até ficar irreconhecível.
Yara estremeceu ao pensar no que Kian deveria ter sofrido desde sua infância para se transformar nisso. Ainda assim, ela era inteligente o suficiente para usar essa raiva ao seu favor: precisava dele enfurecido o suficiente para pensar que estava no controle.
— Será uma luta justa, então — retrucou, olhando-o de cima para baixo. — Pela sua aparência você não parece estar em boas condições, notei suas cicatrizes.
Isso foi gratuitamente rude, o tipo de coisa da qual Travok falaria. Mas mesmo assim Yara não se arrependeu. Provocar o inimigo era o seu plano, e ela usaria todas as cartas que dispusesse, mesmo que não fosse educado de sua parte. Afinal, Kian estava certo, ela não era nada, nada além de uma simples guerreira.
— Argh…! Você tem a arrogância de Kanan… — Kian rangeu os dentes.
— Vai descobrir que tenho muitas outras qualidades que você não vai gostar! — revidou ela.
A essa altura, ele estava andando em círculos, emanando uma aura obscura e sombria que era estranhamente hipnotizante, e girando suas adagas em suas mãos. Yara apertou ainda mais firme sua lança e se forçou a relaxar. Ela precisava que ele se aproximasse.
Essa espera era como uma meditação. Ela esvaziou sua mente de quaisquer outros pensamentos, focando-se unicamente naquele momento, como um conforto e uma fonte de poder. Abriu sua mente e concentrou-se o máximo possível. Então, se moveu, espelhando os movimentos de Kian através do campo aberto e dando um passo para trás a cada passo que ele dava em sua direção.
— Não é cavaleira, mas continua uma covarde — provocou ele. — Ou seus mestres não lhe ensinaram a como atacar?
— Eu aprendi tudo o que eu precisava saber — respondeu Yara. Naquele momento, as palavras pareciam contar a verdade, apesar da dor que se ocultava sob elas. Ela ignorou a mágoa e concentrou-se novamente em seu senso de equilíbrio, em Kian.
— Claro que sim. E eu me ofereci para viver o inferno que foi a minha vida — disse Kian, destilando ironia. Ele sentiu a raiva crescer dentro dele, quase alcançando o limite… Quase!
Ele apertou firme suas adagas e acelerou seus passos. Era fácil para ela fingir que ele a pegou desprevenida e recuar desajeitadamente para longe de seu ataque carregado de ódio, já que seu desejo de matança estava transbordando e logo quando atacasse, ela saberia.
— Aposto que você só está aqui por que eles não confiam mais em você, você está sozinha — observou exultante. — Ele estava certo, mas só conseguia perceber sua fraqueza, pois a raiva o cegava para todo o restante.
— Isso não é verdade! — gritou Yara.
Faltava só mais um pouco agora, ele estava quase caindo na armadilha.
— Eu vejo que a aprendiz precisa de uma última lição… — respondeu exalando pura arrogância.
Kian avançou com tudo em direção a ela, com gargalhadas cruéis escapando de sua garganta. Ainda assim, ela aguardou. Então, pouco antes de estar ao seu alcance, liberou sua armadilha.
Kian tentou uma investida e no momento em que desferiu o seu ataque, Yara deu um passo rápido para trás, atraindo-o para além do ponto em que não havia retorno. Mantendo-o exatamente onde ela queria que ele estivesse.
A familiar sensação do gelo saindo de suas mãos e passando pela sua lança, agora sairá de seus pés, criando um pequeno muro de espinhos formados pelo gelo, no mesmo momento em que Kian ia ao seu encontro para atacá-la.
Ele logo notou que era uma armadilha, então, no último segundo, recuou. Ainda que os espinhos de Yara o tivessem feito um corte em seu rosto, que por pouco poderia tê-lo custado sua vida. Rapidamente Kian pulou por cima do muro e desceu suas facas em curva no ar, com um ataque direto vindo de cima para baixo, em direção ao seu pescoço.
A resposta foi rápida, ela respondeu com toda a sua força. Ao defender o ataque com sua lança, suas armas se chocaram e travaram, e agora com Kian exposto sobre o ar ela o empurrou para trás com toda a força que poderia fazer.
Veloz demais para a defesa distraída de Yara, Kian logo se recompõe e mais uma vez vai com tudo para uma investida arriscada. Não ficando muito para trás, a garota consegue desviar de seu ataque, novamente tendo sucesso. Entretanto Kian passa direto e some na névoa.
Um silêncio estridente tomou conta do ambiente. Com Kian desaparecendo na névoa, Yara o perdeu de vista; porém ainda podia senti-lo. Sua raiva era sua maior fraqueza.
Seu primeiro instinto foi focar em sua localização.
Ela era uma boa lutadora, mas também reconhecia quando estava em desvantagem e sabia usar da situação ao seu favor. Mesmo enquanto calculava mentalmente sua hora de agir, forçou-se a se acalmar, a pensar — foco — antes de reagir.
De repente a presença de Kian sumiu, desaparecendo por completo e nenhum esforço que fizesse a faria senti-la novamente.
— Para onde ele foi? Ele pode mesmo esconder sua presença tão facilmente? — perguntou ela enquanto inquieta.
— Para onde foi toda aquela confiança? — perguntou Kian assim que ela estava ao alcance de sua voz.
— Orlen estava certo! Você é difícil de matar! — retrucou.
Ela olhou atentamente para todas as direções, quando o leve ruído da ventania foi substituído pelo sussurrante som da grama. Certamente ele estava perto, tão perto para que sua voz pudesse o alcançar.
Com movimentos incrivelmente rápidos, ele a atacou diversas vezes, de todas as direções possíveis e tendo sucesso em todas elas. Após diversos ataques bem sucedidos, acreditou que estava sob o controle da situação e continuou a atacar sem pausas.
Sabia que não poderia prever os seus ataques e, por isso, permitiu que fosse atacada propositalmente. Feito isso, preparou o seu contra ataque e no exato momento em que Kian iria desferir seu próximo ataque ela o surpreendeu com um poderoso contra ataque.
O impacto do golpe o jogou para longe, ainda que tivesse conseguido bloqueá-lo. Yara havia usado toda a sua força nesse ataque, forçando Kian a perder seu equilíbrio, que por pouco consegue se manter em pé.
— Argh… Desgraçada… — disse, enfurecido o bastante para que não conseguisse controlar sua raiva. — Isso foi impressionante, devo admitir que não esperava por isso.
— Você se impressiona facilmente — retrucou. — Estou apenas começando.
Estava tão focada em acabar com seu oponente que nem ao menos notou que os cortes da qual Kian o teria feito com suas adagas se cicatrizaram em questão de segundos. Todos aqueles cortes se fecharam por completo e a dor que já era mínima, desapareceu.
— Reconheço que você é forte, mas seu coração molenga só vai a enfraquecer. Deixe seus sentimentos de lado e lute com toda a raiva acumulada em você! — falou Kian a desprezando.
Mantendo a sua concentração no combate, ela rapidamente armou uma flecha e a atirou em sua direção, usando como distração para se aproximar do mesmo sem que chame sua atenção. Ele percebeu a flecha vindo em sua direção e mexeu sua cabeça para o lado, entretanto quando olhou para frente, lá estava ela…
Yara desarmou uma de suas mãos, assim que acertou sua adaga em sua mão direita, a fazendo voar para além do que a pudesse recuperá-la. Kian a atacou com sua outra mão e ela desviou de seus golpes antes que a atingissem, acompanhando o movimento de seus ombros, cotovelos e pulsos, sempre os afastando para que não a acertassem.
Furioso, redobrou seus esforços, visando acertar a cabeça e o peito de Yara. O que o faltava em delicadeza, sobrava em agressividade. Ele a fez retroceder e se afastar, e ela o fez, ainda avaliando-o como lutador e tentando acompanhar seus movimentos.
— Assim que eu acabar com você, seremos como mestre e aprendiz! Eu lhe ensinarei tudo o que sei e ninguém nesse mundo irá nos parar! — disse Kian, em êxtase completo.
— Para depois você se virar contra mim? Mas não mesmo! Desista logo de uma vez, Kian! — rebateu Yara.
— Eles me traíram, tiraram tudo o que eu tinha! Eles me tiraram dos braços de minha mãe, me usaram, e quando não tinha mais utilidade para eles… Eles me descartaram! — lamentou, emanando grande frustração.
— Quem? Quem fez isso com você? — questionou.
— Os Deuses… Foram eles… Quando menos esperar, eles darão as costas para você também! — derramou lágrimas e gritou com toda a força que havia em sua garganta.
Seus olhos arderam em fúria, e desta vez, sua aura assustadora emanava ainda mais, se espalhando para além do campo em que se encontravam. Neste momento, o chão se estremeceu e a garota pôde ler os seus sentimentos por meio de uma força do além que a guiava.
A força a guiou para que pudesse enxergar o que estava além de seus olhos, e pela primeira vez, Yara sentiu a força tão presente consigo.