A Herdeira do Gelo - Capítulo 14
Em busca de um lugar seguro para passar a noite, Yara encontrou Kian em seu caminho, que a desafiou para um duelo na qual não teve escolha a não ser aceitar. Pela primeira vez, sentiu-se unida à força, mas o que é a força afinal?
— Escute bem, Yara. Algum dia chegará o momento em que eu não estarei mais entre você e quando o dia chegar deverá decidir em quem confiar. A força é sua maior aliada e é nela que você deve confiar.
— E o que é a força? — perguntou a pequena à sua avó.
— A força é o que dá poder aos mais fracos. É um campo de energia criado por todos os seres vivos, ela nos envolve e penetra. É o que mantém o universo unido — explicou ela. — A força é muito presente em você, assim como naqueles que um dia se viraram para o lado sombrio da força.
— O que é o lado sombrio da força? — permaneceu curiosa.
— O medo é o caminho para o lado sombrio, o medo traz a raiva, a raiva traz o ódio e o ódio traz o sofrimento. A força te testará das mais infinitas formas, e você deverá ser forte e resistir às tentações do lado sombrio, pois uma vez no lado sombrio da força… Não há mais volta… Fique sempre no lado da luz e a força ao seu lado sempre estará.
— Como saberei quando confiar na força? — Yara quis saber.
— Em um mundo sombrio nós estamos. Quando o caminho parecer escuro, confie na força e ela iluminará o seu caminho. Lembre-se, você é a força e a força está com você.
— Eu sou a força e a força está comigo…
Ela finalmente entendeu o que é a força, sua mente estava mais clara do que nunca. A força sempre esteve presente em sua vida, como um fio invisível que a guia para onde quer que vá, ainda assim ela nunca a notou e somente agora ela pode senti-la ao seu redor. Após compreendê-la, a mesma a guiou para que visse o que não estava ao seu alcance.
Em um reino sombrio e coberto de trevas, vivia um jovem chamado “Kian”. Filho de Tânatos, o deus da morte, e de Tauzin, a deusa das maldições, nomeado então, o deus do caos.
Tirado dos braços de sua mãe e ainda muito novo, fora obrigado a viver uma infância trágica. Seu pai, Tânatos, sempre foi um homem rígido e muitas vezes cruel, fazendo o filho passar por treinamentos excruciantes e que envolviam violência física.
— O lado sombrio é o caminho para várias habilidades que alguns consideram não naturais. Se você deseja herdar o meu trono algum dia, deve abraçar o lado sombrio com todas as forças. Você não se sente frustrado por ser fraco, meu filho? Use essa raiva que vive dentro de você, se liberte de suas correntes e então será tão poderoso quanto eu! — disse aquele cujo se intitulava como Tânatos.
— Por que eu deveria ser como você? Eu te odeio! Que se dane essa porcaria de trono! — protestou o jovem.
— Isso, liberte a sua raiva! Vamos, se enfureça! Ainda não é o suficiente! — exclamou, em seguida, socando o seu filho com toda a sua força até que o fizesse sangrar. — Você está com raiva, não está? Eu sei que está, por quê ainda resiste?
— AHHHHH! — gritou Kian, enfurecido. — Eu te odeio! Eu te odeio! Eu te odeio! — Repetiu diversas vezes, tentando desferir um soco contra o mesmo, que de nada teve efeito.
— Como pensei, alguém que nasceu fraco nunca será nada mais do que isso. Você não é meu filho, você é um desgosto até mesmo para sua mãe…
— Está errado! Minha mãe não é como você! Tenho certeza de que ela nunca o amou de verdade! — retrucou, com palavras tão afiadas como as que eram direcionadas para si.
Por que a força queria que visse isso? O que ela espera que Yara veja com tais visões do passado de Kian? Ainda não compreendia o motivo, mas sabia que o que quer que quisesse que visse, não estava claramente visível.
Durante toda a vida de Kian, seus poderes nunca deram-se às caras e devido a isso seu pai sempre o desprezou e o tratou com o maior desgosto, ao contrário de sua mãe, que sempre o amou. Até que certo dia, já em seus 20 anos de idade, seu pai lhe enviou em uma missão.
Sua missão era a de observar os mortais de perto, sem que quebrasse quaisquer regras do tabu dos deuses, tabu este na qual constituía uma regra muito importante: “Um deus nunca deve interferir na vida de um mortal, independente de qual seja o motivo.”
Kian aceitou, porém com um propósito diferente em mente, ele estaria disposto a quebrar o tabu para testar os seus poderes nos mortais, se é que existia algum poder. Não teria como seu plano dar errado, era impossível que seu pai descobrisse e mesmo que soubesse, ficaria tão orgulhoso ao descobrir os poderes de seu filho que nem se importaria com o resto, ou, era o que ele achava.
Cansado de ser tratado como ninguém, queria provar que era digno de herdar o lugar de seu pai, assim governando o reino dos mortos, como destinado. Entretanto seu pai não ficaria nada contente se descobrisse que seu filho tinha ido contra o tabu dos deuses.
No começo, hesitou. Ainda se perguntando se o que estava fazendo era realmente uma boa ideia, mas assim que lembrou de toda a humilhação de que seu o pai o fizera passar, ele ardeu em fúria e decidiu que faria isso para livrar-se de toda aquela humilhação.
Foi até o reino dos vivos e se infiltrou em uma das pequenas e afastadas cidades na qual encontrou, no meio de uma grandiosa montanha de um reino muito frio e gelado. Kian passou meses até se estabelecer e se acostumar com o novo ambiente, vivendo entre as sombras durante todo o tempo.
De onde veio, o ambiente não era nem tão frio e nem tão calor, lá era conhecido como Mortuorum, ou como as chamavam, a terra dos mortos. Agora diante de uma nova terra, ele se viu cercado de diversas formas de vida inferiores a ele, e foi nesse momento que ele percebeu que ele poderia fazer o que bem quisesse sobre eles.
— O mundo gira em torno dos mais fortes, o forte sobressai o mais fraco. Talvez fosse isso o que o meu pai quis me ensinar desde o início… Eu era fraco, mas aqui… Eu não preciso seguir aquelas regras idiotas, eu sou livre para fazer o que eu quiser! — disse para si mesmo.
Ao ver suas antigas e cruéis lembranças através da força, Yara percebeu que ainda havia algum resto de bondade em seu coração, e que mesmo agora quando ele estava amargurado em ódio, ainda existia alguma esperança. A força a mostrou que certas pessoas não são más por escolha, ninguém escolhe ser mau, cada um é o herói da sua própria história.
Podia sentir a forte presença do lado sombrio emanando de Kian, porém sabia que o que o levou até esse estado fora resultado de uma vida terrível, uma vida na qual Yara nem poderia imaginar estar vivendo. Sabia que a culpa não era dele, para alguém que nunca esteve na luz, a escuridão era a única opção.
— Pude ver suas memórias, sei pelo que passou — respondeu, confortante.
— O que você sabe sobre mim? Hein?! Você não tem ideia do que eu passei! — protestou Kian.
Apesar do que sua avó dissera, ela discordava da ideia de que fosse impossível para alguém já convertido para o lado sombrio da força voltar para o lado da luz, mesmo que este alguém nunca tenha estado ao lado da luz. Agora, ela compartilhava do mesmo sentimento de Kian.
— Você sabe o que é tentar conquistar o orgulho de seu pai e ser morto pelas mãos do próprio pai? Pois é, eu caminhei pelo inferno por 3 longos anos, tudo para me vingar daquele desgraçado… Mas eu sabia que para dar início a minha vingança eu precisava voltar aonde tudo começou. Aqui, foi onde tudo começou a dar errado.
— Ainda há tempo para você se redimir, você está machucando pessoas inocentes, essas pessoas não carregam nenhuma culpa pelo que você passou. Seu pai é o único culpado disso tudo, porém ninguém mais precisa se machucar aqui, não mais — Ela abaixou a sua lança em um ato de confiança e estendeu a sua mão para o mesmo.
Pela primeira vez em toda a sua vida, sentiu-se compreendido. Kian pensou por um momento no que estava fazendo e olhou para suas mãos, quase como se pudesse ver o sangue derramado por elas. Pensativo, ele quase abaixou sua arma, mas algo o impediu. Algo dentro dele o dizia que o que estava fazendo era o certo, aquelas vidas não tinham valor algum, eram apenas sacrifícios para algo maior.
— Tarde demais, garota. A semente do caos já foi implantada a muito tempo — disse Kian, agora mais calmo do que anteriormente.
Correu para desferir mais um ataque à Yara em uma tentativa desesperada, entretanto ela já esperava que o fizesse e então segurou seu braço antes que pudesse a atingir, em seguida usou uma rasteira rápida e o derrubou, da mesma maneira que Christa havia feito.
— Você perdeu, Kian. Desista de uma vez. Vá embora daqui e deixe essas pessoas em paz, se fizer isso, eu o perdoarei — falou Yara, com a ponta de sua lança encostando sua garganta, quase que a perfurando.
— E quem disse que eu quero o seu perdão? — gargalhou-se, completamente insano. — Para um anjo que teve suas asas queimadas pelo mármore do inferno, não seria muita ignorância achar que ele mereça algum perdão? Talvez não haja mais perdão para mim, mas é impossível ser tão inocente em um mundo tão injusto.
Yara sabia que esse mundo era injusto, e teve essa certeza assim que a tiraram sua avó dela, sem motivo algum. As palavras desferidas por Kian a faziam refletir ainda mais sobre o motivo da morte de sua avó, afinal ela nunca contou nada sobre o seu passado e isso sempre a despertou um pouco de curiosidade.
Distraída em tais pensamentos, ele pegou sua adaga de volta, adaga esta que estava caída ao seu lado e a fincou em seu joelho. Antes que Yara pudesse fazer qualquer coisa, ele colocou sua mão sobre o chão e falou: “Desperte…”
Um tremor foi sentido por todo o local e então um uivo muito alto fora ecoado pelos arredores, quando a garota se virou se deu de cara com uma enorme fera de mais de 2 metros, era a mesma da qual encontrou anteriormente com Travok, mas desta vez carregando parte da aura de Kian e ainda mais forte do que sentira da outra vez.
Além da enorme fera, ele também invocou um lobo menor, na qual o usou como montaria para se afastar da mesma. Agora tendo tomado uma distância considerável, disse:
— Eu admito, você venceu. Como prometido, eu a deixarei passar, mas talvez o meu amigo aí não seja tão educado quanto eu Hahaha! Bem, se divirta com o meu brinquedinho, e antes que me esqueça, diga para eles que eles possuem apenas uma semana para se preparar.
Pela segunda vez, Kian fugiu. Ainda que não tenha sido uma vitória completa, ela mal teve tempo para descansar, sendo obrigada a lidar com a monstruosa besta que se encontrava diante de seus olhos, com seus olhos ardendo em chamas pela cor vermelha.
Manteve a calma e se afastou lentamente, dando um passo de cada vez. Até que em um piscar de olhos a criatura desapareceu de sua frente, começando a correr em círculos ao seu redor, em uma velocidade impossível de acompanhar. Seus olhos se esforçaram ao máximo para acompanhar aqueles movimentos, mas tudo o que podia ver eram apenas seus rastros que eram deixados para trás.
— Isso está além das minhas capacidades, essa criatura da de 0 a 10 em qualquer outra criatura das histórias de minha avó… Sua velocidade está em outro nível, se ele me atacar nessa velocidade eu não irei conseguir desviar… — estremeceu-se a garota, amedrontada o bastante para que perdesse o controle de seus batimentos cardíacos.
Até mesmo Kian que já demonstrava certa ameaça não estava nem perto da velocidade de tal monstruosidade. Sua aura era tão intensa ao ponto de a fazer ter dificuldades até mesmo para se manter em pé.
Yara sentiu um leve estímulo da força, prevendo que a criatura a atacaria dentre os próximos 5 segundos, ela esperou, mas esses poucos segundos pareciam passar como uma eternidade.
Então ele atacou com uma investida frontal e ela desviou pulando para o lado, mas algo parecia errado, Yara não sentiu ser acertada e ainda assim sentiu algo em seu seu braço esquerdo, no exato momento em que a mesma passou ao seu lado.
Sentiu-se seu braço gelado, e foi quando Yara olhou para o mesmo que ela finalmente entendeu o que havia acontecido… Ela não sabia como isso aconteceu, mas seu braço não estava mais lá. Provável que ela não tivesse desviado a tempo e devido seu ataque ter sido tão rápido ela nem ao menos sentiu o seu braço ser arrancado.
“Calma Yara, calma. Não perca o foco, não agora! Se mantenha calma e focada na batalha.” — Se forçou a manter a calma.
Apesar disso, não entrou em desespero, mesmo que fosse difícil aceitar que ela havia acabado de perder um braço, afinal não é todo dia que se perde um braço. Não sentiu dor no instante em que foi arrancado, muito pelo contrário, ela ainda o sentia como se estivesse lá.
“Então essa é a sensação de perder um braço? Bem, eu não sinto nada de diferente, deveria sentir?” — pensou.
De alguma forma inexplicável, seu corpo reagiu por conta própria e criou uma pequena e espessa camada de gelo para estancar o sangramento de seu braço, parecido com o que aconteceu quando tocou em Lynn, assim tendo um corte limpo e sem nenhum sangue.
A besta voltou a atacar e desta vez ela desviou de todas as suas investidas, como uma bailarina em um dança perfeita. Seus movimentos pareciam leves e mais rápidos, ela estava se adaptando a sua velocidade.
Quando pequena sempre foi boa em se adaptar com o ambiente e para um combate não seria diferente, sempre que sua avó colocava um novo obstáculo em seu treinamento, ela se adaptava com a maior facilidade e agora aqueles movimentos que pareciam impossíveis de ser previstos, não eram nada aos seus olhos.
Não demorou muito para que ela tivesse uma brilhante ideia, para uma criatura extremamente rápida, o melhor a se fazer era usar de sua velocidade ao seu favor. Ela pulou por cima da criatura, quando esta tentou uma investida e a agarrou em seus pelos, segurando forte o bastante para ter a garantia de que sua mão não escorregasse.
— Vamos ver se você é cabeça dura o suficiente para aguentar essa! — falou, enquanto se mantinha firme em cima da mesma.
Então usando sua própria velocidade contra ela, a fez bater em uma árvore e para que não tomasse o impacto também, pulou antes que tivesse o contato com a árvore. A criatura logo se recompôs e correu em sua direção.
— Você pode ter aguentado essa, mas a próxima será pra valer! — exclamou-se.
Assim que se aproximou o bastante, a garota criou uma barreira em volta de si como reflexo, usando do gelo criado pelos seus pés, a fazendo bater de cara com o gelo e ficando atordoado por alguns instantes.
Ela escalou a barreira e aproveitando que a criatura estava exposta, trocou sua lança pelo seu arco e com um único braço preparou uma flecha e a atirou usando os seus dentes, a mirando diretamente em seus olhos. A flecha acertou em cheio em seu olho esquerdo, agora trocando seu arco de volta para sua lança, pulou em direção à besta, a fincando em seu outro olho.
Largou sua lança e se jogou para trás, usando o impulso de suas pernas para saltar o mais distante possível da criatura. A besta gritou em agonia e em seguida com um pulo completamente feroz, se jogou na tentativa de a destroçar com seus enormes e afiados dentes. Em resposta a isso ela se concentrou em seu poder e criou um enorme pico de gelo, na qual podia ser visto a metros de distância dali devido ao seu grande tamanho.
Como resultado de seu tamanho poder, ela caiu exausta de joelhos no chão, enquanto observava a criatura desaparecendo aos poucos quando congelada pelo gelo congelante de Yara. Aquele ataque gastou todas as forças que lhe restavam.
Ela venceu a batalha, mas sabia que uma batalha ainda maior estava para vir dentro de 3 dias, uma batalha que talvez não fosse sua e que mesmo assim queria fazer parte. A pergunta que não queria sair de sua cabeça, se ela retornasse para Valravam para os alertarem, eles confiaram nela?
Não tinha como ter certeza… E foi tal incerteza que a levou até uma certa pessoa, na qual era sábia o bastante para lhe dar algum conselho sobre o que deveria fazer a seguir.