A Herdeira do Gelo - Capítulo 16
Assim que Yara saiu de Valravam, muita coisa aconteceu em sua ausência. Ao descobrir que Yara havia fugido da cela onde teria a deixado, Kanan ficou furioso. Então, agora ele discutia com os guardas que rondavam a cidade, por não ter feito nada a respeito.
— Você está me dizendo que ela fugiu? Como assim ela fugiu? Eu quero explicações agora! — exigiu Kanan, batendo com força na mesa, deixando evidente o seu estresse.
— S-senhor Kanan… Eu juro, eu não vi nada — tentou se explicar o guarda.
— Esse era o seu único trabalho! Você só tinha uma coisa a fazer! Eu não aceito desculpas, agora saia da minha frente antes que eu quebre essa sua cara redonda — Kanan fechou o punho e pensou em dá-lo um soco, mas se conteve.
— E-entendido senhor Kanan! — Ele assentiu, se retirando logo em seguida de maneira desengonçada.
— Você não precisa ser tão duro com ele, ele começou a trabalhar aqui semana passada, deveria ao menos dar um desconto pra ele — disse Christa, se adentrando a sala sem sequer bater na porta.
— Por que não bateu na porta? — perguntou Kanan.
— Sério? É sobre isso que quer falar? Você tem sido arrogante demais com as pessoas ao seu redor, o que foi que aconteceu com você? — indagou Christa, levantando a sobrancelha. — Você não é assim…
— Eu só não quero que ele pense que as coisas aqui são fáceis como ele imagina, é só isso — respondeu, seco e direto.
— Você mudou Kanan… Desde que Eris desapareceu e Yara chegou, eu sinto que eu não reconheço mais você, você não é mais o Kanan que eu conheci.
— Aonde quer chegar com isso? Eu não mudei, eu continuo sendo o mesmo de antes, é só que… — sua fala fora interrompida por um pensamento.
Sua mente estava em conflito, algo dentro de si o dizia que a morte de Eris era sua culpa e desde que recebeu a notícia da morte do mesmo, andara se questionando se o que estava fazendo era a coisa certa, já que foram suas escolhas que o levaram a esse fim.
Mesmo que de forma indireta, parte do que aconteceu com seu companheiro era sua culpa e ele não poderia viver sabendo que causou a morte de um companheiro querido. Então parte dele queria mudar, enquanto a outra queria continuar a ser o que é, para que a morte de seu amigo não fosse em vão.
No fundo, ele tinha medo de que esse seu outro lado tomasse conta de quem ele verdadeiramente é e acabasse se tornando um monstro cruel e egoísta, mas também sabia que isso era necessário para proteger os seus amigos, não podia deixar que mais deles morressem.
— Será mesmo que depois de tudo o que aconteceu você ainda continua sendo você? Eu acho que não. — Christa virou as costas e se retirou da sala, batendo a porta com força.
— Christa… — retrucou, deixando a porta bater antes mesmo de terminar de falar.
— Senhor! Um dos cavalos do estábulo desapareceu, ela fugiu com um dos cavalos! Quer que façamos uma busca por ela? — perguntou o guarda de antes, entrando ofegante na sala, como se tal assunto fosse de extrema importância.
— Não. Esqueçam isso, deixem-a. Temos problemas maiores para lidar, ela não é nenhum problema para nós.
— Mas senhor… — insistiu ele, levantando o dedo para falar.
— Você não me ouviu?! Quer que eu repita de novo?! — berrou, não se segurando para não soar arrogante.
— E-eu entendi! — disse, se retirando da sala enquanto assustado.
Instantes depois, foi tomado por um ataque momentâneo de raiva, destruindo tudo ao seu redor, tal como quadros, cadeiras, e retratos antigos, mas quando chegou até o último retrato, algo o fez parar. Era o retrato do antigo rei ao seu lado, aquele que para ele fora como um pai por muito tempo.
— Rei Arthur… — disse Kanan, parecendo pensativo, assim que tocou no retrato.
No retrato, um homem de mais idade, contendo cabelos brancos e uma barba pouco volumosa, esboçando um sorriso gentil e acolhedor. Ao seu lado estava Kanan, anos mais jovem, em uma época onde os cavaleiros da avalanche ainda não existiam.
Tomado pela nostalgia, se recordou que nos tempos em que Rei Arthur ainda estava vivo, ele costumava mandar cartas quando distante, mas na época, Kanan não compreendia a importância de seus deveres e não entendia o porquê de ficar tanto tempo longe.
“Para vencer uma guerra, precisa ser paciente. Uma guerra pode durar anos, mas a paz dura muito mais, e não se esqueça que o verdadeiro objetivo da guerra é trazer a paz e não trazer mais guerras.” — se lembrou do que o Rei Arthur lhe falara um dia, resgatando antigas memórias de seu passado.
— Eu te prometo que algum dia eu ainda darei fim às guerras, e então poderá descansar em paz, velhote… — Kanan colocou o retrato de volta ao seu lugar.
Percebendo a bagunça que causou, ele olhou ao seu redor e viu a sala destruída por completo. Ao olhar os retratos caídos no chão, viu rostos conhecidos. Seu antigo grupo, um grupo contendo cinco membros, da qual trabalhavam na guarda real do antigo rei. Para ele, aquela foi a sua primeira família.
— Merda… O que foi que eu fiz? — Ele pegou os cacos de vidro um a um e tentou juntá-los novamente, mas não teve sucesso, então caiu-se as lágrimas.
Ainda no meio de toda aquela bagunça, viu que estava pisando em um dos retratos, e quando tirou o pé de cima para ver de quem era, tomou um susto e pulou para trás, perdendo o equilíbrio e batendo suas costas com tudo na mesa. Era o retrato de Eris.
— Me desculpa, eu sinto muito! É tudo minha culpa! Se eu não tivesse te mandado naquela patrulha… — se desculpou, como se pudesse ser ouvido.
Kanan se levantou com um pouco de dor nas costas e caminhou devagar até o retrato de Eris no chão, espontaneamente, a lembrança de uma conversa brotou lá no fundo.
— A verdade é que durante todos esses anos, nós nos recusamos a aceitar a verdade que por muito tempo estivera diante de nossos olhos, nos forçamos a aceitar que a guerra havia acabado e estávamos em paz, mas a guerra não acabou. Temos que dar um basta no reinado deste rei tirano! Estamos com medo? Estamos! Entretanto precisamos lutar! Juntos, somos mais fortes! — exclamou Eris, deixando transparecer de sua voz esperança e determinação.
— Se for para lutar ao seu lado, eu vou até o fim, irmão — disse Kanan.
— Eu também — falou Orlen logo em seguida.
— Tô dentro! Pode contar comigo! — respondeu Christa, colocando uma de suas mão sobre seu ombro.
— Vamos lutar juntos! — Lynn sorriu.
— Tudo pela paz!
De volta ao passado, desejando ao máximo esquecer de Eris, guardou o retrato no fundo de sua escrivaninha.
Então, sentou em sua cadeira e colocou suas mãos sobre sua cabeça, como se a qualquer momento fosse surtar, tal como uma bomba relógio prestes a explodir. Não sabia quando poderia perder o controle, mas sabia que a qualquer momento o perderia.
“Você o matou. É tudo culpa sua! Se não tivesse começado aquilo, nada disso teria acontecido. Lembre-se, sua lealdade está com o rei e não com o povo!” — falou uma voz em sua cabeça.
— Não! Minha lealdade está com o povo! — retrucou, se forçando a manter a calma enquanto segurava a sua cabeça com as duas mãos, implorando para que a voz parasse.
“Por que começou aquilo, Kanan? Você falhou com seus amigos e agora eles estão decepcionados com você, você é uma completa decepção, e talvez tenha sido por isso que seus pais o abandonaram. A verdade doí, não é? Por que ainda se nega a aceitar a verdade?” — A voz continuou.
— Saia da minha cabeça! — Kanan, perdendo o controle mais uma vez, empurrou a mesa para longe, consequentemente derrubando uma estante de livros velhos que havia ali.
“Já se esqueceu? Você os traiu. Ainda que tenha feito isso pelo bem deles, será que eles verão isso da mesma forma que você? Como eles irão reagir quando souberem que seu capitão é um grande mentiroso? Como Eris se sentiria vendo que traiu os únicos amigos que tinha?”
— Não diga o nome dele! Você não tem esse direito! — gritou, alto demais para a quietude daquele lugar.
— Capitão? Com quem está falando? Eu achei ter ouvido você gritar com alguém — falou Orlen, aparecendo de repente.
— Orlen? O que está fazendo aqui? — Ele se levantou, tropeçando em algo e depois se escorando na parede.
No momento em que olhou para suas mãos, sentiu seus membros se formigarem e quando se deu conta, estava suando mais do que o normal, seus batimentos perderam o controle e seus músculos tremiam.
Kanan sofria de ataques constantes de raiva, normalmente perdendo o controle de seus impulsos e quebrando seus pertences ou os dos outros, e a perda recente de um companheiro querido era quase como um gatilho para acessar esse estado de raiva. Então, logo após os tais ataques de raiva, era tomado por um enorme sentimento de vergonha e culpa, que o fazia questionar suas ações.
Respirou fundo pelo nariz e contou até dez, expirando o ar pela boca, então repetindo isso outras seis vezes por minuto. Essa era uma técnica de respiração que Eris lhe ensinou para lidar com seus constantes ataques de raiva.
— Espera… O que aconteceu aqui? Você está bem? — perguntou o amigo, preocupado, com a voz cheia de cuidado.
— Eu estou bem… — respondeu Kanan, tentando ao máximo disfarçar o choque. Seu rosto estava tenso e ele segurava sua cabeça, como se tivesse acabado de levar uma pancada forte. — Foi só um rato que acabou entrando aqui, eu tentei dar um jeito nele, mas acabei me descuidando e fazendo a estante cair. Eu sou um verdadeiro desastre…
— Tem certeza que está bem? Não me leve a mal, mas você está com uma cara terrível! — observou Orlen.
— Eu disse que estou bem! Não há nada de errado comigo! — gritou Kanan. — Ah droga… Me desculpe…
— Eu acho que sei do que você precisa para se animar! — disse Orlen, parecendo animado. — O que me diz de dar uma volta?
— Ah, sim, claro! — concordou, não tão animado.
Não apenas Kanan estava sofrendo com a morte de Eris, assim como todos os outros cavaleiros. Orlen sentiu uma grande dor no peito ao saber de sua morte, mas decidiu que não iria sofrer por isso, iria seguir em frente, porque era o que o amigo gostaria que fizesse. Já Christa fingiu não se importar para não ter que não tivesse que sofrer com isso.
Passando de frente ao quarto onde Eris costumava ficar, Orlen parou por um segundo, revivendo todas as lembranças boas que tivera com o mesmo. Lembrou de quando ele acabara de entrar para os cavaleiros da avalanche e reclamou dizendo que o quarto era muito pequeno ou das traquinagens que fazia.
Certo dia, Eris trocou a escova de Orlen com a de Christa de propósito e ela logo suspeitou que alguém estivesse usando sua escova, Orlen também suspeitou disso. Então Christa acusou Kanan de estar usando sua escova, que jurou não ter feito tal coisa, e aproveitando a oportunidade, ele contou que viu a mesma usar a escova de Orlen. Como resultado, uma grande confusão se instalou na mansão.
Orlen riu sozinho.
— O que é tão engraçado? — Kanan quis saber.
— É só que eu lembrei de algo… É algo bobo, não vai querer saber o que é — respondeu, olhando para o quarto vazio.
— E o que é? — indagou ele, mantendo a seriedade no olhar.
— Você se lembra daquela história da escova? — perguntou Orlen.
— É daquela história que você está falando?
— De que outra história eu estaria falando? — retrucou ele.
— É claro que eu lembro… Ele era um idiota, mas também era parte da família — Kanan sorriu, deixando a seriedade de seu olhar de lado.
— Pensei em tomar-mos algo no bar, faz um bom tempo que não fazemos isso — disse Orlen enquanto descia as escadas da mansão.
— Eu aceito.
Naquele dia o bar não estava tão movimentado como de costume, talvez devido a implementação do toque de recolher, já que o bar era mais movimentado à noite do que durante o dia. Assim que entraram avistaram Christa sozinha em uma das mesas, pensando com as mãos sobre a mesa.
— O que estão fazendo aqui? Que coincidência ver vocês por aqui — disse Christa, mudando sua postura assim que os notou.
— Pois é, devo admitir que também não esperava encontrar você por aqui — Orlen soltou uma piscadela. — Se quer saber, nós estamos aqui pelo mesmo motivo que você.
— Eu vou pegar algo pra beber-mos, esperem aqui — falou Kanan indo até o balconista para pedir algo.
— E aí! O que vai querer dessa vez? — perguntou o balconista. — Eu fiquei sabendo que Eris está em uma missão perigosa, quando ele volta? Deve estar sendo complicado para ele…
— O mesmo de sempre — respondeu Kanan, ignorando sua pergunta. — Três copos, por favor. Não se esqueça do gelo!
— Você quem manda chefe!
— Você acha que Kanan mudou? — sussurrou Christa para Orlen. — Eu não sei, mas ele parece… Como posso dizer? Diferente eu acho…
— Eu não acho, você acha? — perguntou ele.
— Sinceramente, eu acho que todos mudamos um pouco… As coisas mudaram, estamos em uma época diferente e agora que ele se foi, as coisas nunca serão como antes…
— Ele tinha alguma família? — indagou Orlen.
— Nós éramos a sua família… — respondeu.
— Como está o garoto? — retornou o balconista com três copos cheios, voltando a perguntar sobre Eris novamente.
— Escuta aqui, qual é a sua seu merdinha? — perdendo a paciência, Kanan o segurou pela gola da camisa.
— Opa, calma lá amigão! Sem brigas por aqui — um homem alto, forte e de cabeça raspada interviu.
Kanan olhou ao seu redor e viu que todos estavam olhando para ele, inclusive Christa e Orlen. Então, lentamente soltou o balconista e pegou as bebidas da qual pediu.
— É sobre isso que eu estava dizendo — murmurou Christa, cruzando os braços.
— Aqui, eu trouxe as bebidas que prometi. Sobre o que estavam falando enquanto eu fui até o balcão? — Kanan colocou as bebidas na mesa e se juntou aos amigos.
— Sabe, acho que nós não podemos esconder mais isso do povo, o povo precisa saber sobre o que aconteceu com ele. Podemos fazer uma homenagem a ele, acham que é uma boa ideia? — sugeriu Orlen, pegando um dos copos.
— Pode ser uma boa ideia, Lynn iria adorar, considerando que ela era a mais próxima dele — disse Christa, pegando outro copo.
— E você Kanan, acha que é uma boa ideia? — Orlen olhou para Kanan, que naquele instante parecia estar com a cabeça em outro lugar.
— Kanan? — Christa chamou sua atenção.
— Vocês não acham que deveríamos desistir de tudo isso? Eu andei pensando e se isso não der certo nós acidentalmente vamos iniciar uma guerra. Já perdemos um e não podemos perder outro…
— O que está dizendo? Por acaso você está querendo pular fora do barco? Qual é, não seja um covarde. Isso tudo foi ideia dele, eu digo que deveríamos continuar com o plano mesmo sem ele. Se não quer fazer isso por você, pelo menos faça por ele — protestou Christa.
— Não podemos desistir agora, é tarde demais — falou Orlen, ficando do lado de Christa.
— E se Kian foi enviado por ele? Ele tem informantes em todo canto, não seria uma surpresa se ele soubesse de algo — disse Kanan.
— Isso é impossível, a única forma de isso acontecer seria se realmente tivesse um traidor. Você acha mesmo que aquela história da Yara ser uma traidora era verdade? — Christa riu. — Jin e Jay só não queriam que ela se envolvesse mais nisso, por isso inventaram aquela mentira.
— É óbvio que aquela história era mentira. Eu sabia desde o início, deveríamos ter feito aquilo antes — respondeu ele, disfarçando para que não notassem a sua cara de surpresa.
— Espera, é sério isso? Eu achei que vocês realmente suspeitavam dela! — retrucou Orlen, irritado, assim que terminou de beber o seu copo.
— Bem, mas aonde eu quero chegar é que talvez ainda exista outra opção. Quem sabe podemos chegar a um acordo com ele, nem toda guerra se vence lutando — disse Kanan.
— Não existe acordo com aquele psicopata. Todos sabemos que ele não deveria estar no poder e que ele é um tremendo de um idiota.
— O que você sabe sobre como vencer uma guerra? — retrucou ele, se levantando.
— Tenho certeza que não é com palavras que se vence uma guerra — Christa terminou de beber o seu copo.
— Rei Arthur teria encontrado outro jeito! — gritou Kanan.
— Como ele fez para acabar com a guerra contra os elfos? Aliás, onde está ele? Ah é, ele está morto! — falou Christa.
— Vamos encontrar um jeito. Isso vai acabar logo, Capitão. Sei que deve estar cansado de tudo isso — Orlen deu-lhe tapinhas no ombro.
— Obrigado, Orlen — agradeceu.
— Ainda não me falou o que acha da ideia de fazermos uma homenagem a ele.
— Ah, sobre isso… Acho que é uma boa ideia — respondeu Kanan.
— Certo, faremos uma homenagem para ele em breve — anunciou Orlen.