A Herdeira do Gelo - Capítulo 17
Kanan estava sofrendo, a morte de Eris foi quase como perder uma parte de si, não sabia como lidar com a perda de seu amigo, então se isolou, de tudo e todos. A frustração pelo sentimento de culpa logo veio à tona, e junto a esse sentimento, veio a raiva.
A fim de impedir que mais mortes ocorram, ele traiu seus amigos, indo contra tudo o que um dia lutaram. Eris acreditava que não havia outra forma de encontrar a paz se não lutando, mas o antigo rei lhe dissera que nem todas as guerras se vencem assim e era nisso que Kanan acreditava.
Agora, Kanan suspeitava fortemente que Kian havia sido enviado pelo Rei de Valravam, então foi até a capital para tirar suas próprias conclusões.
Passando por um grande portão e inúmeros guardas reais.
Caminhando por um longo corredor contendo um enorme tapete vermelho, acompanhado de paredes na qual havia muitos quadros pendurados, quadros esses que continham retratos antigos da família real, descendentes diretos do tão aclamado Rei Arthur.
Cerca de 50 anos atrás, os humanos entraram em guerra com os elfos do gelo, e em uma batalha sangrenta os humanos foram obrigados a fugir e se esconder. A família Fritz, uma das poucas famílias que sobreviveram, passaram a viver escondidos na montanha de Heredem, em uma cidade construída pelo Rei Arthur Fritz.
Vindo da família real, Arthur Fritz era um homem justo e muito aclamado pelo seu povo. Não teve filhos, mas tinha um irmão mais novo, este quem tomaria o seu lugar quando sua hora chegasse.
No final do corredor, uma enorme porta dupla de madeira com bordas de ouro, ao lado de duas tochas acesas na qual iluminavam o ambiente. Entrando na sala, pudera se notar um grande lustre no teto e outro tapete vermelho, indo até uma grande escadaria, que no final havia uma poltrona, também feita de ouro.
Aquele era o trono do rei, que naquele instante estava sentado com uma expressão de preguiça e descuidado, enquanto bocejando de tédio. Ele carregava uma coroa de ouro em sua cabeça e tinha um cabelo longo de cor escura e uma pequena barba no queixo, acompanhado de vestimentas nobres vindas da realeza.
— Sobre o que quer conversar? — perguntou o homem, ainda sentado no trono.
— Foi você, não foi? Você o mandou para nos destruir, estou certo? — indagou Kanan.
— Senhor Kanan… Não estou te entendendo, aonde quer chegar com isso? — começou o homem, deixando vazar uma risada sarcástica.
— Qual é a graça? — retrucou, transbordando-se de raiva.
— Como pode me acusar de ter feito algo tão maligno? Eu nunca faria isso com você, já se esqueceu que nós fizemos um trato? Ah é, acabei de me lembrar que você não cumpriu sua parte do trato — disse, se levantando de seu trono e balançando sua cabeça de um lado para o outro. — Senhor Kanan, eu estou um tanto decepcionado com você, como poderemos ser amigos se nem ao menos cumpre o que promete?
— Mas e enquanto a sua parte? Você me prometeu que não machucaria meus amigos enquanto nosso trato ainda estivesse de pé!
— Você está insinuando que eu machuquei os seus amigos? Tem certeza de que fui eu quem machuquei seus amigos e não outra pessoa? Eu acho que você está se equivocando, mas para provar a minha lealdade a minha parte do trato eu te ajudarei com o seu problema — Ele caminhou lentamente até Kanan descendo os degraus um por um.
— Me ajudar? Mas como? — perguntou Kanan.
— Simples, quem quer que tenha te atacado, também me atacou — respondeu ele. — Ele queria tomar o meu lugar no trono, da pra acreditar? Tão ingênuo…
— Espera… Não foi você quem enviou Kian? — indagou Kanan, confuso.
— Sabe, eu até gostaria de tê-lo trazido para o meu lado, mas infelizmente ele é teimoso demais, você sabe. Ele tem um exército grandioso, seu exército é infinito, com incontáveis soldados prontos para a guerra, com o único desejo de matar. A verdadeira arma para espalhar o caos.
— Como posso ter a certeza de que não está me enganando? — Kanan acirrou os olhos. — Meu povo conta comigo, eu não posso falhar com eles… Se você colocar um dedo neles…
— E então você o que? — perguntou o provocando.
— Eu mato você — respondeu, com um olhar frio e ameaçador.
O homem riu.
— Me matar? Acha mesmo que pode me matar? Eu sou o seu rei! Como ousa falar assim com o seu rei?! — protestou. — Não me ameace. Ou já esqueceu que eu posso acabar com a sua vida antes que consiga pensar em qualquer outra coisa?
Ele empunhou a sua espada contra Kanan e esperou para que o mesmo atacasse.
— Vamos, me mate então, essa é a sua chance, a sua única chance. Se não me matar agora, nunca mais terá a chance! Quer mesmo desperdiçar essa oportunidade? — Ele abaixou a guarda e então esperou.
Essa é a minha chance! É agora ou nunca!
Kanan pensou em puxar a sua espada, mas não conseguiu reagir a tempo, seu corpo congelou antes mesmo de que fizesse algo. A sensação de ficar diante daquela espada era amedrontadora, era quase como se aquela espada dominasse a sua mente, afogando-a em desespero e medo.
Por que estou com medo? O que aconteceu comigo? Por que meu corpo não reage? Eu quero empunhar a minha espada, mas meu corpo não me obedece…
“Droga corpo, reaja! Não fique parado, vamos! Essa é a sua chance, acabe com isso logo de uma vez! Mate esse desgraçado!” — tentou dizer, mas sua voz não saiu.
Kanan havia sido dominado por um sentimento de desespero e medo, seu corpo tremia e aos poucos sua vontade de lutar ia se esvaindo, em sua mente nada mais fazia sentido, sua mente estava se afogando em uma escuridão completa. A única coisa que poderia pensar naquele momento era a morte.
— Somente os dignos podem ficar perante essa espada, aqueles que não são dignos são como lixo — disse ele. — Agora, fique de joelhos, plebe.
Com o corpo congelado, ele caiu de joelhos.
Por que isso está acontecendo comigo? O que eu fiz pra merecer isso? Por que estou passando por essa humilhação? Por que? No que eu estava pensando naquela hora? Isso é tão humilhante…
Os boatos diziam que a espada do rei carregava um dos 10 mandamentos, o nono mandamento: “Não matarás”. Aquele que o enfrentasse com a intenção de matá-lo perderia completamente a vontade de lutar em questão de segundos.
— Ainda pretende me matar? — Ele o olhou de cima com um olhar de desprezo e então colocou seu pé sobre sua cabeça.
Enquanto era pisado pelo seu rei, Kanan começou a derramar lágrimas de medo. Em toda a sua vida, ele nunca passou por uma humilhação tão humilhante quanto aquela, diante daquele homem, sua vida parecia insignificante, sem valor.
— Por favor, me dê mais tempo, eu estava quase os convencendo a desistir! Se me der um pouco mais de tempo eu lhe prometo que os farei desistir, você tem a minha palavra! Só… Só não os machuque! É tudo o que peço… — suplicou Kanan, de joelhos para o homem.
— Machucar? Por que eu os machucaria? Somos todos amigos aqui, não há necessidade alguma para um derramamento de sangue, todos queremos a mesma coisa. Se já se esqueceu, deixe-me fazê-lo lembrar, quem estava falando em matar era você — disse ele.
— Me perdoe meu rei, eu prometo que nunca mais farei isso! — Kanan pediu desculpas como se a sua vida dependesse daquilo.
— Me diga, com quem está sua lealdade, Kanan? — Quis saber.
— Minha lealdade está com o rei, senhor! Apenas com o rei e ninguém mais! Minha lealdade com o senhor está acima de tudo e todos!
— Bom saber que nos daremos bem.
Enquanto isso, Lynn acordava em seu quarto. Ao seu lado estava Christa, esperando para que a amiga acordasse enquanto contava os segundos, e além da mesma, Orlen também estava presente, escorado em uma parede.
— Ela acordou! — gritou Christa. A voz pairando sobre toda a sala.
Imediatamente, Orlen correu até a amiga.
— Lynn! Você acordou! Ah, graças a deus, eu estava tão preocupada, que bom que você acordou — Christa sentiu-se aliviada.
— Hum… Christa? Orlen? Onde está Yara? — Lynn procurou por Yara, mas não a viu.
— Ah… Sobre Yara… — Christa pensou em lhe dizer a verdade, mas então hesitou.
— Ela foi embora. Eu sinto muito… — disse Orlen, assim como Christa, evitando contar a verdade.
— Ela me salvou, eu tenho que agradecer a ela! — falou Lynn, se levantando de sua cama e correndo até a porta.
— Sinto muito em lhe dizer, mas pode ser que ela não volte mais, ela tomou uma decisão — contou Christa.
A garota parou na porta no instante em que segurou a maçaneta.
— Quanto tempo faz desde que ela se foi? Se formos rápidos nós podemos… — Ela segurou a maçaneta com força.
— Fazem 5 dias desde que ela partiu, ela partiu não muito tempo depois de você voltar de sua missão. É tarde demais — Orlen a interrompeu.
— Mas… Por que? — perguntou Lynn, pensativa.
— Eu não sei… Acho que ela pensou que se continuasse aqui acabaria nos atrapalhando — disse Christa.
Lynn não compreendia, havia tanta coisa que queria contar para Yara, mas agora, ela se foi sem nem ao menos se despedir.
— Mas e enquanto a Eris? Ele está bem, não está? — perguntou Lynn.
— Você já se esqueceu do que aconteceu com ele? Sabe, Yara nos contou quando estava com você… — começou Christa, mas sua fala foi interrompida quando Orlen segurou o seu ombro.
— Christa… — Orlen balançou a cabeça de um lado para o outro enquanto segurava em seu ombro.
Christa entendeu o que ele queria dizer e então se virou para Lynn e abriu um sorriso forçado para a mesma.
— Sim. Ele está bem — respondeu a amiga.
— Por que essa cara? Não é como se ele tivesse morrido… Quero dizer, eu vi ele, ele estava lá! Yara também estava comigo, nós o encontramos! — exclamou ela
Christa não se conteve em segurar suas lágrimas e logo após seus olhos se encherem de lágrimas deu um abraço forte em Lynn.
— Entendi… Ele morreu, não é? — Lynn pareceu perder o seu brilho, ficando com uma expressão triste, mas não chorou.
— Sabe… Ele sempre estava sorrindo… Acredito que ele tenha morrido com um sorriso no rosto — falou Orlen, se forçando a acreditar que ele ao menos tenha tido uma morte tranquila.
— Me deixe sozinha, eu preciso de um tempo…
— Tudo bem. Nós entendemos — Ele assentiu, se retirando logo em seguida.
— Nós pensamos em fazer uma homenagem a ele… Achamos que você iria gostar da ideia, então… Espero que você apareça — disse Christa, por fim.
— Não se preocupe, eu estarei lá — Lynn tentou sorrir, mas mesmo forçando um sorriso, era evidente a tristeza em seu olhar.
Assim que Orlen e Christa a deixaram sozinha, ela deitou-se em sua cama e começou a chorar, até que quando já não tinha mais forças para chorar, resolveu sair de sua cama e dar uma volta.
Um dos guardas que se encontrava de frente a mansão dos Cavaleiros da Avalanche, a cumprimentou no instante em que a viu, mas ela nem sequer respondeu. Estava tão deprimida que preferia não falar com as outras pessoas, para que não notassem a sua tristeza.
Foi até uma pracinha que havia no centro da cidade, com uma pequena fonte construída ao redor de uma estátua de um homem empunhando uma espada. Aquela era a estátua do Rei Arthur, que depois de morto ficou conhecido como o herói que trouxe a paz para o seu povo incontáveis vezes.
Avisou um casal sentado em um dos bancos da praça,
— Foi aqui que nos conhecemos… Nessa mesma praça e neste mesmo banco… Você ainda se lembra? —
— O que você está fazendo aqui?
— Ah… Apenas pensando.
— Pensando? No que está pensando?
— Você acha que o rei é uma boa pessoa?
— O que? Claro que não! Aquele cara é um idiota!
Dois dias depois
— A cidade toda tá aqui — observou Lynn de cima do palco.
— É — concordou Christa. — Sabe como é, todo mundo conhecia ele… E o que aconteceu com Eris… Ninguém esperava aquilo. As pessoas nunca irão esquecê-lo…
— As pessoas nunca irão esquecê-lo — repetiu a amiga, baixinho.
Havia um pequeno palco de madeira montado diante dos moradores, com cadeiras também de madeiras organizadas em fileiras. Toda a cidade estava reunida ali, ansiosos para ouvir o que tinham a dizer.
— Aliás, onde estão Jin e Jay? Eles não vieram? — perguntou Lynn.
— Eu tentei convencê-los, mas eles disseram que não viriam — respondeu Christa. — Eles também devem estar de luto, vamos respeitar o luto deles.
Lynn assentiu, sem questionar o motivo de não terem vindo.
— Nós reunimos vocês aqui neste dia porque queremos que saibam a verdade, e a verdade é que… Eris não está mais conosco — declarou Orlen, um pouco cabisbaixo em dar essa notícia ao povo.
Todos observaram, surpresos com a notícia. A notícia parecia ter chocado a todos e em um ato de simpatia, as pessoas começaram a abraçar quem estava sentado ao seu lado, mesmo parecendo estranho abraçar a um desconhecido.
— O que? Como assim? Não pode ser… Isso é verdade? Ele era um rapaz tão bom… — sussurraram os moradores uns para os outros.
— Droga — disse Christa, baixinho.
Lynn olhou para a amiga. Estava secando os olhos com um lenço de papel. Lynn passou o braço pelos ombros dela.
— Eu sei.
— Como devem saber, Eris não foi o único que perdemos — continuou Orlen e então leu mais quatro nomes. — Além de Eris, também perdemos alguns dos nossos mais fiéis protetores de nossa cidade.
Lynn olhou de relance para Christa. Sabiam que houvera outros, mas a morte de Eris teve um efeito tão devastador na vida deles que nem sequer lembraram das outras vítimas. Lynn sentiu uma pontada de culpa. Para alguém, aquelas pessoas tinham sido tão vitais quanto Eris. Para alguém, aquelas perdas poderiam significar o fim do mundo.
Fechou os olhos por um instante.
Não posso lamentar a morte de todos. Ninguém pode.
— É estranho estar aqui em cima — Christa deu um passo à frente e falou a primeira coisa que lhe veio a mente, e a plateia se manifestou concordando, mas sem fazer estardalhaço. — Somos muito gratos a vocês por terem vindo aqui hoje, mas ainda aos que não são daqui — Olhou para a primeira fileira, se dirigindo a Travok.
Próxima da mesma, Lynn via que a amiga estava prestes a chorar, as lágrimas marejando seus olhos, mas sua voz permaneceu firme.
— Agradecemos a presença de vocês hoje. Queríamos dar continuidade ao legado de Eris, mas ainda não encontramos um candidato à altura, mas logo mais anunciaremos o novo membro dos Cavaleiros da Avalanche — Kanan deu continuidade de onde Christa parou, dando um passo à frente.
Lynn segurou firme a mão de Christa.
— Sei que alguns podem não conhecer Eris tão bem quanto conhecíamos — começou Lynn, enfim. — Mas o que sei é que, das lembranças que tenho, Eris está em todas. Lembro que quando nos conhecemos ele me falou que seu sonho era entrar para os Cavaleiros da Avalanche…
“Me diga Lynn, por que quer entrar para os cavaleiros da avalanche? Eu quero fazer parte dos cavaleiros da avalanche porque assim poderei ajudar as pessoas por uma boa causa. Esse é o meu sonho! Mas e você, qual é o seu sonho?”
Lynn sorriu.
Ela ainda falava:
—… E quando fomos ficando mais velhos lembro… Bem, lembro de ele sempre estar ao meu lado, em todos os momentos…
Antes que terminasse de falar, sua fala fora interrompida por um grande estrondo, e então, outro estrondo, e por fim, mais outro. O muro que cercava a cidade havia sido derrubado de várias direções diferentes. Estavam sendo atacados de todas as direções possíveis.
Demônios horrendos de cor vermelha e chifres grandes, das mais variadas formas e tamanhos, marchavam até onde estavam, destruindo tudo que viam pelo caminho. As chamas da destruição logo os alcançaram e então foi se criado uma grande cortina de fumaça, que os dificultava enxergar os monstros além dela.
O estrondo das muralhas se rompendo fez Kanan começar a sentir uma forte dor de cabeça, o que o fez se lembrar da sensação de quando estava diante do rei de valravam.
— Minha lealdade está com o rei… Minha lealdade está com o rei… — repetiu bem baixinho após cair no chão enquanto segurava sua cabeça na tentativa de se manter sã.
Isso não é hora para perder a cabeça, meu povo precisa de mim, nós estamos sendo atacados!
— Kanan! Você está bem? — Lynn correu até o mesmo, preocupada.
— Saia daqui! — gritou Kanan e então a empurrou, a fazendo cair sentada no chão.
— Ei! Por que fez isso?! — protestou Christa, ajudando Lynn a se levantar.
Os moradores entraram em desespero e começaram a correr na direção contrária a cortina de fumaça, consequentemente tendo seus corpos destroçados pelos demônios que vinham daquela direção. Alguns tentaram lutar contra os demônios com pedaços de paus para proteger seus familiares, mas devido a destruição causada pelos demônios, destroços das casas caíram em cima dos mesmos.
— Capitão! O que faremos? Estamos sendo atacados! — Orlen pareceu assustado perante aquela visão infernal.
— Eles estão se aproximando! — berrou Christa.
De algum lugar um pouco distante dali, além dos gritos, além da destruição, além da fumaça, além do caos, uma voz falou:
— Humanos idiotas, se preparem para serem subjugados pelo seu deus. O verdadeiro julgamento começa agora!