A Herdeira do Gelo - Capítulo 18
Após fazer uma visita a Maíbi e ficar sob seus cuidados enquanto se recuperava, Yara decide ir para Valravam ajudar Lynn e os cavaleiros contra Kian. Chegando lá, avistou a cidade em chamas, tomada pelo caos e terror.
Não… Já começou… Cheguei tarde demais…
Gritos de desespero podiam ser ouvidos do lado de fora da cidade, as chamas se estendendo cada vez mais, criando uma enorme camada de fumaça sobre o ar.
— Cof-cof! — tossiu ela, seus pulmões se enchendo de fumaça ao inalar aquele ar.
Se aproximando do portão principal da cidade, que havia sido completamente destruído pelo ataque e agora estava sendo consumido pelas chamas da destruição, Yara notou um amontoado de corpos desmembrados empilhados no caminho, e então sentiu um leve enjoo.
Que crueldade! Kian fez isso?!
Continuou a encarar a pilha de corpos à sua frente, observando aqueles rostos inocentes se distorcerem aos poucos pelas chamas. Por um segundo imaginou ter visto o rosto de Lynn e logo seu estômago se embrulhou, se virando e vomitando ali mesmo. Ao olhar de volta para a pilha de corpos, não viu nada.
— Era por isso que você me dizia para sempre ficar perto do bosque, não é? — perguntou olhando para o fogo. — Se tivesse te ouvido e ficado no bosque, não teria que ver coisas como essas…
“O lado sombrio é assustador. Ele só traz desgraça e morte.” — se recordou das palavras de sua avó.
— Kian, eu lhe prometo que te trarei para o lado da luz… Não deixarei que se perca ainda mais — Ela olhou para os céus em chamas. — Por favor, espere por mim!
Com a entrada principal estando bloqueada pelas chamas, ela procurou por outra entrada assim que contornou os muros, encontrando um enorme buraco de mais de sete metros de altura na lateral dos muros, bloqueado por um amontoado de destroços.
Assim que desceu do cavalo para analisar o buraco infringido na muralha, percebeu que ele não poderia ter sido feito por simples criaturas como mortos-vivos ou orcs, além de que os destroços deixados com o estrago causado, foram colocados propositalmente para tapar o buraco.
— O que poderia ter causado isso? Kian nunca invocou algo tão grande assim, a não ser que… — Yara se lembrou da criatura que enfrentou em seu último encontro com Kian. — Não… Isso é completamente diferente! Isso é ainda maior!
Desta vez não eram mortos-vivos e muito menos orcs, desta vez era algo diferente, algo ainda pior e ainda mais assustador. Yara demorou para encaixar as peças, mas agora ela enfim entendeu, Kian estava os testando, da pior maneira possível.
Primeiro os mortos-vivos, depois aquele lobo, e agora…
— Ele está nos testando…. Kian está nos testando! — falou para si mesma em voz baixa.
Era verdade que Kian estava os testando, queria provar para si próprio que era mais forte do que seu pai achava, e para provar isso, não importava quantas vidas tivesse que tirar.
Preciso me apressar e encontrar uma entrada logo!
Desesperada para encontrar uma entrada o quanto antes, ouviu os gritos de medo e agonia dos moradores mais uma vez. Aqueles gritos pareciam aumentar cada vez mais e além dos gritos também se ouvia estrondos à medida que os gritos aumentavam. Conforme os estrondos ecoavam pelos seus ouvidos, o chão tremia.
“Pessoas estão morrendo Yara! Você não pode perder tempo!” — se apressou, lembrando que não podia perder tempo.
— Talvez se eu conseguir puxar esses destroços… — observou Yara, analisando o esforço que precisaria para puxar aqueles destroços.
Não, esqueça isso! Isso demoraria uma eternidade, não tenho todo esse tempo! E muito menos a força necessária para isso!
Enquanto pensava em um jeito de atravessar a muralha, uma pedra minúscula caiu na sua cabeça, a fazendo resmungar de dor e olhar para cima, acidentalmente notando uma pequena abertura no topo dos destroços, que por pouco passou despercebida.
Como uma lâmpada que acabara de se acender na sua cabeça, ela finalmente percebeu a entrada que procurava. Sua mente estava clara e ela já sabia o que iria fazer, teria que escalar os destroços para alcançar a passagem.
— Sinto muito amiguinho, terá que me esperar aqui — disse para o cavalo branco e de cabelos pretos, não demorando muito para ele se assustar com os estrondos e sair correndo logo em seguida.
Pensou em correr atrás do mesmo, mas sabia que aquele era o menor dos problemas. O cavalo ficaria bem, contanto que não se distanciasse da cidade e não se aproximasse demais da área dos orcs.
Ela escalou os destroços com o maior cuidado para que não pisasse no lugar errado e acabasse fazendo com que desabasse junto com os destroços. Quando enfim chegou ao topo, viu uma silhueta de sete metros à sua frente em meio à fumaça, com dois grandes chifres e um sorriso macabro.
A criatura logo se aproximou, revelando a pele vermelha e os olhos negros, que naquele momento emanavam pura escuridão. Em sua boca havia enormes dentes, capazes de comer até mesmo uma casa inteira se quisesse.
“Droga! O que eu faço?!” — pensou, paralisada pelo medo.
Diante daquela presença demoníaca, Yara sentiu uma tremedeira descontrolada. Nunca havia visto um demônio de perto, ainda mais um de sete metros de altura…
Nas histórias de sua avó, ela lhe contara sobre os demônios que habitavam o submundo do reino de Mortuorum, ou como outros diziam, o inferno dos mortos. Esses demônios bestiais nada mais eram do que pessoas que passaram tempo demais no inferno, virando bestas monstruosas e inconscientes, que somente seguiam seu instinto.
Para alguns, a transformação poderia demorar milênios de anos, mas para outros, apenas décadas. A cor vermelha era parte de toda a dor e sangue de anos de sofrimento em um inferno ardente, e os olhos negros, o vazio de uma alma perdida.
Antes que Yara pudesse pensar em algo, o demônio atacou com uma investida frontal, atravessando o grande buraco na muralha e espalhando os destroços para todo lado, consequentemente a fazendo perder o equilíbrio.
Yara estava caindo. Embora esperasse poder pousar, era impossível que conseguisse em segurança naquelas condições. Ainda que já tivesse praticado manobras como aquela em alturas menores nos treinos com sua avó, esses treinos geralmente envolviam algum tipo de segurança.
Ali, naquele momento, a gravidade era a gravidade, e nem mesmo um milagre poderia impedi-la. Mas ela poderia convencer a força a desacelerar a descida, reduzindo o impacto da aterrissagem. Se conseguisse fazer aquilo com perfeição, atingiria o chão com a leveza de uma folha ou de um floco de neve.
Sabia que poderia fazer isso, mas isso lhe exigiria extrema concentração e uma forte conexão com a força. Esvazie sua mente e foque somente naquilo que quer fazer. Acenda a chama que há dentro de você! — dissera sua avó.
Respirou fundo e fechou os olhos, tentando buscar qualquer ajuda na força, mas a força parecia ocupada em outro lugar, não muito afim de atender ao seu pedido de ajuda. Conforme o chão se aproximava a uma velocidade alarmante, a concentração de Yara a abandonou por completo.
Ela levantou os braços e abriu a boca para gritar. Como uma guerreira, sabia que deveria aceitar a morte com dignidade, mas aquela situação não era tão digna quanto se podia imaginar. Yara estava prestes a encerrar sua jornada como guerreira se chocando no chão como um pedaço de fruta podre e provavelmente se esparramando sobre o chão.
Não.
Yara desacelerou, rotacionou no ar até que os pés estivessem apontados para o chão, e o tocou com a leveza de… uma folha, ou de um floco de neve.
— Você precisa treinar mais — falou sua mestra, que também era sua avó, abrindo um sorriso na voz.
Yara abriu os olhos, e lá estava sua avó, com uma mão erguida e um sorriso no rosto.
— Eu sei vó, eu sei… — disse Yara. — Prometo que irei melhorar.
— Que bom que sabe — retrucou ela, abaixando o braço. — Vamos trabalhar nisso. A partir de hoje você irá treinar duas vezes mais todos os dias, sem mais descansos.
— Tudo bem… eu aguento! — respondeu com determinação na voz.
— Na verdade, não foi uma queda muito grande — observou ela, sem tirar o sorriso do rosto. — Você mal teve tempo antes de se aproximar tanto do chão, e também, você ainda não aprendeu a usar a força ao seu favor.
— Não foi uma queda muito grande… — disse Yara baixinho, abrindo um sorriso no rosto e voltando para a realidade.
Em sua visão, a mais assustadora imagem. Yara olhava para a criatura à sua frente enquanto era olhada de cima por aqueles olhos negros e vazios, que continuavam caminhando lentamente em sua direção com um forte desejo de sangue.
— Ataquem! Agora! Seus dias de destruição acabam aqui, besta demoníaca! — gritou alguém, não tão distante dali.
Um pequeno grupo de guardas se aproximou, todos carregando um arco em suas mãos. A atenção do demônio foi direcionada para os guardas e logo Yara correu para próximo dos mesmos para se proteger.
— Deixe que nós cuidemos dele. Vá para a base dos cavaleiros da avalanche e encontre Lynn, ficará segura quando chegar lá — disse um dos guardas.
Yara assentiu, confiando em sua palavra.
Enfim se adentrou nos muros e correu em direção a base dos cavaleiros da avalanche com um de seus braços cobrindo o rosto para que a fumaça das chamas não entrassem em seus olhos.
Próxima da escadaria, ouviu um grito de socorro. Uma mulher estava presa em um dos destroços de uma casa com sua filha em seus braços, e um demônio se aproximava a passos lentos.
— Salvem a minha menina! — gritou a mulher, desesperada por ajuda.
Não poderia salvar a mulher, suas pernas haviam sido esmagadas pelos destroços e para tirá-la de lá exigiria muito tempo, o que Yara já não tinha, mas poderia salvar a criança se fosse rápida.
Como se sua vida dependesse disso, ela disparou de onde estava e correu para salvar a criança a todo custo. A menina aparentava ter em torno de 3 anos de idade, com lindos cabelos ruivos de cor avermelhada que batiam até o ombro.
— Consegue se levantar? — perguntou Yara, analisando os esforços que precisaria para a tirar de lá.
— Eu não sei… não sinto mais minhas pernas…
— Qual é o nome dela? — Ela olhou para a menina. Seus olhos cheios de inocência.
— Leah — respondeu a mulher. — Por favor, a leve para um lugar seguro. Ela é nova demais para morrer…
— Ela será uma linda mulher — disse Yara, forçando um sorriso. — Me desculpe… não posso salvá-la, mas posso salvar sua filha.
— Obrigada.
A mulher sorriu com um sorriso aliviado.
Yara segurou Leah no colo e não olhou mais para trás, tapando os ouvidos da criança assim que um grito agonizante de uma mulher começou a ser ressoado pelos seus ouvidos, acompanhado de alguns passos pesados, que faziam o chão tremer.
Assim que atravessou a escadaria, deu de cara com Lynn, que acabara de abrir a porta. Por um segundo pareceu contente em ver o rosto de sua amiga, mas logo essa felicidade sumiu.
— Yara? O que está fazendo aqui? — perguntou Lynn, confusa. — Vamos, entre! Não fique aí parada!
— C-certo!
Ela entrou e colocou a criança no chão, que correu e se juntou a um grupo de crianças que havia ali no meio dos moradores que se encontravam ali dentro.
— Você está bem? — Ela quis saber.
— Senti sua falta — Yara a envolveu em um abraço apertado, que durou apenas alguns segundos.
— Você está ótima — Lynn sorriu.
— E você melhor ainda. Então, onde está Kian?
— Kanan e os outros estão o enfrentando neste momento, a batalha começou faz 30 minutos — Orlen se intrometeu.
— Você também está aqui Orlen?
— Bem, alguém tinha que proteger essas pessoas né — Orlen lançou-lhe um sorriso sincero.
Atrás de Orlen, pessoas assustadas e com medo, todas com uma expressão de terror.
— Alguém ferido? — observou Yara.
— Ninguém ficou ferido, mas algumas pessoas ainda estão lá fora. Alguns guardas estão tentando cuidar disso — respondeu ele.
— Não… não… não… — repetiu Lynn, colocando uma de suas mãos sob sua cabeça, como se estivesse sentindo alguma dor. — É Christa, ela está em perigo, pude ouvir a voz dela…
— Tem certeza que era mesmo a voz dela? — perguntou Orlen.
— Você ouviu a voz dela? O que mais você viu? — Yara colocou uma de suas mãos em seu ombro, para que se mantivesse calma.
— Christa é a única de pé, ela está lutando sozinha contra Kian… Yara, você precisa ajudá-la!
— Eu irei — disse ela com determinação.
— Tome cuidado — alertou Orlen.
Yara assentiu e se retirou logo em seguida. Quando enfim saiu pela porta da frente, novamente se deparou com outro demônio, um pouco menor do que o anterior, mas igual em aparência.
Ela se preparou para lutar, tomando uma postura mais cuidadosa, mas quando segurou em sua lança, viu a criatura desaparecer aos poucos diante sua frente. Kian estava perdendo suas forças, a batalha estava chegando ao fim.
Boa parte da fumaça ainda cobria sua visão, mas se pudesse sentir Kian, poderia saber onde estava Christa.
Que a força esteja comigo outra vez. Não me decepcione.
— Quando conseguirei usar a força? Por mais que eu treine todos os dias, eu não tenho progresso algum… — disse a pequena Yara.
— Por que acha que não está tendo progresso em seu treinamento, senhorita Yara?
— Eu não sei… talvez só não esteja totalmente empenhada, ou então não nasci pra isso — respondeu.
— É isso o que acha? Essa é a sua desculpa, Yara? — sua avó a advertiu. — Me responda uma coisa, você pode ouvir essas vozes?
— Não… não ouço nada.
— Porque não quer ouvir. Não confia na força ainda — retrucou ela. — Você e a força são um só, se achar que não é capaz, não estará confiando na força.
Eu sou a força e a força está comigo.
Fechou os olhos e tentou abrir o seu espírito, e lá estava, uma forte e ofuscante luz em seu interior. Brilhante como no mínimo, a luz de uma vela, que conforme se concentrava, ficava ainda mais intensa como um incêndio. Podia senti-la tão brilhante como o sol, com tanta luz emanando dela que Yara temia ficar cega. Honestamente, no entanto, aquilo não importava. Fosse uma fagulha ou uma pira, qualquer conexão com a força afastava as trevas.
Yara mergulhou em sua luz interior, buscando sentir os pontos de conexão com outras vidas. Muito perto, sentiu uma grande fonte de poder, era Kian. Ela respirou fundo e se deixou ser guiada pela força… então atirou uma flecha em direção ao mesmo.
— Você… — Kian se virou assim que sentiu a presença da garota.