A Herdeira do Gelo - Capítulo 19
O ataque de Kian já havia se iniciado e Kanan e os outros estavam lutando contra ele neste exato momento, enquanto Lynn e Orlen cuidavam dos sobreviventes na base dos Cavaleiros da Avalanche. Agora, Yara precisava correr para ajudar Christa.
Longe o bastante de onde acontecia o combate, Yara preparou uma flecha e se deixou ser guiada pela força, atirando-a para perto de Kian, a uma distância de 200 metros além da fumaça das chamas.
Nesse momento, Kian se encontrava segurando Christa pelo seu pescoço, prestes a tirar a sua vida, mas de repente apenas a jogou para o lado e se abaixou para pegar a flecha.
Surpresa, Christa se levantou com dificuldade e também se virou para a direção em que Kian observava. Seus dois braços quase que em carne viva, como se tivesse mergulhado em um mar de lava, sua respiração ofegante e seu rosto manchado de sangue. Estava em seu limite.
“O que ele está olhando?” — pensou, confusa.
Kian sorriu, transbordando-se de arrogância.
— Acho que você errou — disse, alto o bastante para que pudesse ser ouvido, retirando a flecha do chão em um esforço quase que inútil.
— Tem certeza? — retrucou Yara, se revelando através da cortina de fumaça. — Não estava mirando em você.
— Yara…? — perguntou Christa, a voz quase não saindo.
— O que? Então isso significa que… — começou, mas sua fala foi interrompida.
A flecha brilhou com um brilho bem fraco e explodiu na mão de Kian, que no mesmo instante olhou para Yara com um olhar mortal. Seu corpo começou a se congelar pouco a pouco, primeiro os braços, depois as pernas, e por fim… a cabeça. Em seus últimos momentos antes se congelar por completo, ele falou suas últimas palavras:
— Tudo em nome do caos.
Uma hora antes…
Kanan olhou ao seu redor e viu a cidade que por muito tempo lutou para protegê-la ao lado de seu mentor, Arthur Fritz, agora sendo destruída diante de seus olhos. Não havia nada que pudesse fazer para impedir isso, a destruição era inevitável.
Me desculpe, eu falhei de novo.
Ao fundo, uma voz gritava pelo seu nome: Kanan! Kanan! Abafada demais para que pudesse distinguir de quem era, até que alguém o tocou, o puxando de volta para si.
— Capitão! — gritou Orlen com um tom de seriedade na voz. — Temos que fazer algo! Qual é a nossa ordem?!
— Escutem! Corram para a base dos Cavaleiros da Avalanche, lá ficaram seguros! Por favor, mantenham a calma! — exclamou Kanan aos moradores assustados, voltando para si.
— Lynn e eu cuidaremos dos moradores — Orlen tomou a frente, sem esperar Kanan dar a ordem.
Lynn assentiu, em seguida, guiando-os para um lugar seguro.
Ao lado de Kanan e Christa, dois demônios de tamanho médio foram derrubados em questão de apenas um segundo, de cima de um deles saiu Jay e do outro Jin.
— Argh… o que são essas criaturas repugnantes? — resmungou Jay.
— Senhor, o que está acontecendo? — perguntou Jin, irmã de Jay, assim que foi ao encontro de Kanan. — O que são essas coisas? Como entraram aqui?
— Ouvimos os gritos e imediatamente corremos para cá — disse Jay, a voz soando fria e sorrateira como sempre, mas agora com um leve tom de preocupação.
— Estamos sendo atacados… é Kian. Ele não vai parar enquanto estivermos mortos.
— E quais são as ordens, capitão? — Ela esperou.
— Lynn e Orlen irão cuidar da segurança dos moradores, enquanto nós ficaremos na linha de frente. — Kanan deu as ordens.
Eles assentiram.
— Guardas! Procurem por sobreviventes na cidade! — exclamou, dispensando os guardas.
— Sim senhor!
— Temos um plano? — perguntou Christa.
— Temos um — respondeu Kanan.
Enquanto isso, perto dali, Lynn e Orlen mantinham os moradores em segurança no saguão principal da base dos Cavaleiros da Avalanche. Havia adultos, mulheres, idosos e até mesmo crianças. O lugar estava lotado e quase não havia espaço para mais pessoas.
— Como podem ter certeza de que estamos seguros aqui?! Nós vimos o tamanho daquelas coisas lá fora, lugar algum vai nos proteger daqueles demônios! — protestou um dos moradores. Um homem jovem e não tão velho.
— Senhor, estamos fazendo o possível para proteger vocês. Saiba que a nossa principal prioridade são vocês, os moradores — Orlen tentou acalmar o homem transtornado.
— E esse é o melhor que podem fazer? Onde estão os guardas? — retrucou o homem.
— É verdade! Como acham que podem nos proteger sozinhos? Se nem ao menos conseguiram proteger Eris! — gritou outro morador, concordando com o que o homem falava.
— Por favor, não gritem… falem baixo… Aquelas coisas não sabem que estamos aqui — falou Lynn baixinho.
— Se acalme, vamos ficar bem — falou uma mulher de meia idade para o homem que se encontrava causando desordem.
— Vamos ficar bem? Não enquanto ficarmos aqui! — gritou o homem, e uma criança começou a chorar. — Eu não vou ficar aqui esperando que aquelas coisas venham me matar, mas não mesmo!
Ele se levantou e correu para a porta, dando de cara com Orlen, que bloqueou a porta com seu corpo, uma verdadeira muralha.
— Não colocaremos a vida de nenhum morador em risco, nem mesmo aqueles que queiram cometer suicidio.
O homem caiu para trás com o susto, então olhando Orlen de baixo, uma visão verdadeiramente assustadora.
— Isso é pelo seu bem. Volte para o seu lugar e espere até que seja seguro sair lá pra fora — ordenou Lynn, soando autoritária.
Ele resmungou de cabeça baixa e fez o que Lynn ordenou, voltando para o seu lugar enquanto olhares começaram a ser trocados por outros moradores. Um outro homem, um anão calvo e barbudo, se levantou e foi até o mesmo.
— Escuta aqui seu merdinha, é bom você ouvir a menina porque se não… caso abra essa boca de novo, eu mesmo farei você se calar.
— Quem você pensa que é pra falar assim comigo velhote? — retrucou, aumentando seu tom de voz.
— Eu sou Travok. Se eu fosse você teria respeito comigo, tenho idade para ser seu pai — respondeu o Anão.
— Sem transtornos aqui, vamos todos ficar todos calmos — Lynn permaneceu calma, tentando tomar controle da situação.
— Por que estou recebendo ordens de uma criança? Isso é ridículo! Crianças não deveriam se tornar cavaleiros! — protestou ele.
Lynn ficou em silêncio e não respondeu.
— Se ela conseguiu se tornar uma cavaleira, foi porque mereceu. Agora quem é você? O que você fez pra merecer? Você não é ninguém! — disse Eitan, o balconista do bar da cidade.
— Idiotas… Querem mesmo saber? Eu já me cansei dessa palhaçada, toda essa situação está me dando nos nervos. Vou ao banheiro — disse o homem, se levantando para se retirar.
— Você não ouviu a ordem? Quer que eu repita? Todos devem esperar aqui, sem exceções. Isso é pela segurança de todos, ou você quer colocar a vida de todas essas crianças e mulheres em perigo? — protestou Orlen, o puxando pelo braço.
— Orlen… deixe-o ir — pediu Lynn.
Orlen não a questionou e deixou o homem ir, que se soltou dele e saiu andando irritado a passos apressados.
Assim que a situação se apaziguou, um silêncio tomou conta do ambiente e alguns minutos se passaram sem que ninguém dissesse alguma coisa. Até que Lynn falou:
— Obrigada por me defenderem.
Ela sorriu, agradecida.
— Não precisa agradecer, aquele idiota já estava me irritando — respondeu Travok.
— Senhorita Lynn, todos aqui reconhecemos os seus esforços, confiamos em você — falou Eitan, um homem simples de cabelos escuros e olhos castanhos. — Minha esposa e minha filha ainda estão lá fora, mas eu confio no trabalho dos cavaleiros e sei que elas ficarão em segurança.
— Não sabia que tinha uma esposa e uma filha. Como se chama a sua filha? Quantos anos ela tem? — Ela quis saber.
— Leah. Ela se chama Leah. Ela tem 5 anos… ela é adorável, seus cabelos ruivos me lembram sua mãe — Ele abriu um pequeno sorriso descontraído.
— Imagino que ela deve ser tudo pra você. Eu tenho certeza que ela e a sua esposa ficaram bem quando tudo acabar, e você poderá recebê-las com um abraço cheio de amor.
— Não se preocupe, minha filha te agradecerá pessoalmente quando a ver — disse ele.
Orlen estava inquieto, andando de um lado para o outro enquanto tentava pensar em algo.
— No que está pensando? — perguntou Lynn.
— O que fazemos agora? Ficaremos parados aqui esperando que as coisas lá fora se acalmem? Não queria dizer isso, mas aquele homem tinha razão… não estamos seguros aqui.
— É o melhor que podemos fazer Orlen, e você sabe disso — respondeu Lynn, emitindo paz e calmaria.
— Fique de olho nas pessoas aqui, ficarei de olho naquele homem, só por precaução.
— Espere… algo não está certo… o banheiro é no andar de cima… para onde ele foi então? — perguntou Lynn pensativa.
— A saída dos fundos! — falaram quase que simultaneamente.
Orlen correu o mais desesperado possível, e quando chegou à porta dos fundos viu que ela estava escancarada, o que encontrou lá fora não era o que esperava encontrar…
Um demônio magro e de fisionomia alta, com braços largos e dedos finos como alfinetes. O homem se encontrava paralisado frente a criatura, pensou em correr, mas suas pernas não se moviam, era tarde demais, sabia que iria morrer.
— O que está fazendo?! Saia daí de uma vez! Se mova! — gritou Orlen, mas o homem não se moveu.
Quando estamos perto da morte, não conseguimos pensar em nada, nada além de arrependimento. O sentimento de ter feito a escolha errada e de estar pagando pelos próprios erros, isso é a vida. Vivemos uma vida de erros e arrependimentos a todo momento, e quando chegamos ao fim dela, queremos voltar no tempo, mas não podemos.
A imperfeição da vida humana é o que a torna bela, somos imprevisíveis e ao mesmo tempo frágeis, tão frágeis como uma folha de papel, que quando arrancada de um caderno, não deixa de ser o que é, ainda que parte dela tenha sido deixada para trás.
Com seus dedos longos e finos, a criatura segurou o homem com delicadeza, quase como se estivesse em um banquete. Mesmo que o que estivesse vendo à sua frente fosse um demônio, parte do que era antes disso ainda continuava ali. Ele o levou até sua boca com seus dentes afiados e pontudos e o devorou na frente de Orlen, saboreando-o a cada centímetro.
Os gritos de agonia e dor eram como música para os ouvidos do demônio, que mesmo depois de devorar aquele homem, parecia com ainda mais fome.
“Cruel… muito cruel…” — pensou Orlen, seu estômago se embrulhando.
Do alto do saguão principal, o teto de vidro foi rompido, espalhando pequenos cactos de vidro para todas as direções daquele cômodo, o que fez os moradores protegerem suas cabeças para que não fossem atingidos.
As luzes se apagaram, e então algo se revelou saindo do teto.
Os moradores entraram em pânico e começaram a gritar assustados, sem entender exatamente o que estava acontecendo. Com todo o barulho acontecendo, as crianças menores começaram a chorar e suas mães as abraçaram na tentativa de as acalmarem.
— Corram para os quartos, vamos! — ordenou Lynn, antes mesmo que o pior acontecesse.
— Façam o que ela disse! — disse um dos moradores.
O que se revelou então… nada mais era do um demônio bestial de cor vermelha, que diferente dos outros, este tinha uma forma quadrúpede e em sua cabeça apenas um único chifre. A criatura rosnava como um cão feroz, babando de raiva feito uma besta.
Os moradores não pensaram duas vezes antes de fazer o que Lynn ordenou, pegando as crianças mais novas no colo e rapidamente subindo as escadas para o andar de cima, até que no meio do caminho o chão tremeu e um lustre se soltou.
Por um segundo, o lustre pareceu que iria cair sobre os moradores, mas algo o segurou no ar, uma força sobrenatural. Lá estava Lynn, parada com seu braço estendido em direção ao lustre. Ela não sabia como ou o que acabara de fazer, mas sabia que algo dentro dela havia se despertado, era a força.
No mundo, existem três tipos de usuários da força, aqueles que desenvolvem a sua ligação com a força através de treinamento, aqueles que nascem com o dom, e por fim, aqueles que são escolhidos. Lynn fazia parte dos que eram escolhidos, a força a escolheu, dentre tantas outras pessoas, ela foi a escolhida.
— Vamos, depressa! Não sei mais por quanto tempo conseguirei segurar isso! — gritou Lynn enquanto segurava o lustre com a força, quase como um poder telepático.
Do outro lado da mansão, Orlen estremeceu ao presenciar aquela terrível cena. O demônio então direcionou seus olhos para ele e começou a encará-lo com seu olhar aterrorizante e vazio. Naquele momento, seu orgulho havia o abandonado, Orlen já não era o mesmo Orlen orgulhoso e confiante de antes.
Ele voltou a entrar para dentro da mansão, fechando a porta e a bloqueando de todas as formas possíveis, como se isso fosse de alguma forma impedir que o demônio entrasse. Contudo, aquilo não era o suficiente e ele sabia disso.
Orlen segurou seu martelo com firmeza e esperou, e como previu, o demônio rompeu a parede com o mínimo esforço. Ficando cara a cara com Orlen, um sorriso medonho se mostrou.
Aquelas inocentes vidas estavam nas mãos de Lynn e Orlen, não podiam falhar agora, se falhassem, não só estariam falhando com os moradores como também estariam falhando consigo mesmos. Olhar para aqueles demônios aterrorizantes era como encarar seus próprios demônios, não podiam fugir.