A Herdeira do Gelo - Capítulo 20
No meio de todo aquele caos, Kanan decide tomar a linha de frente ao lado de Christa e dos irmãos Jin e Jay, enquanto Lynn e Orlen mantinham a segurança dos moradores. As coisas acabam saindo um pouco do controle e dois demônios bestiais invadem a mansão, e agora Lynn e Orlen farão o que for preciso para proteger aquelas pessoas.
Quando os moradores enfim subiram para o andar de cima, Lynn colocou o lustre no chão com cuidado e correu para trás de um dos quatro pilares que havia em cada um dos cantos da sala. O demônio pulou e aterrissou no chão, fazendo o chão estremecer.
Ela engoliu em seco e esperou. Quando enfim teve a coragem para espiar a criatura, percebeu que ela não estava vindo em sua direção, Lynn não era a sua presa, sua presa era outra. No momento que o teto de vidro se rompeu, um dos moradores acabou se cortando e um rastro de sangue ficou para trás.
O que aconteceu? Por que ele não está vindo para cá? Será que não me viu? Mas isso é impossível, eu acabei de olhar em seus olhos!
A enorme criatura caminhou até o rastro de sangue e, com um olfato aguçado como o de um rato, começou a farejar o ar, em busca de qualquer resquício daquele cheiro. O rastro se estendia até o andar de cima, indo até um dos quartos da mansão.
Lynn saiu de trás do pilar e fechou os olhos na tentativa de se conectar com a força, à sua frente imaginava uma enorme pedra em seu caminho, então se concentrou em movê-la e quando abriu os olhos, estava levantando o lustre outra vez, desta vez o jogando contra a parede na direção contrária a escada. O lustre se espatifou na parede e um barulho estridente de vidro se quebrando ecoou por todo o cômodo.
Consequentemente, o som acabou despertando a atenção da criatura, que logo ficou dispersa e começou a vir na direção da cavaleira. Lynn não se moveu, ficou parada onde estava, acreditava que se fizesse isso, talvez a criatura não a notasse.
A criatura não a notou, passou reto por ela em direção ao som, quase como se ela fosse invisível aos seus olhos.
“Ele é cego! Ele não está me enxergando!” — deduziu Lynn.
Em um dos quartos da mansão, um morador se encontrava com um corte profundo no braço, por sorte, havia um médico presente ali, e ele poderia ser tratado de forma mínima.
— Você é médico? — perguntou o homem ferido.
— Sou sim. Posso estancar o sangramento pra você, mas é o máximo que posso fazer. Sinto muito mas eu não posso fazer milagres.
— Isso está bom, obrigado — Ele agradeceu.
— Você! Me dê algo para estancar o sangramento desse homem! — pediu o médico, apontando para Travok.
— Eu? Por que eu? Pegue você mesmo porra! Por acaso suas mãos estão furadas? — respondeu Travok.
No canto da sala, um homem começou a rezar desesperadamente:
— Senhor nos perdoe pelos nossos pecados! Prometo que não pecarei mais na presença do senhor!
— É só começar a rezar um pouco que você vai pro céu? Ah vai a merda você e esse seu deus de merda — retrucou o anão.
Enquanto isso, Lynn sabia que não poderia lutar ali, o risco era muito alto e qualquer deslize, tudo desabaria. Precisava de um plano para atrair a criatura para fora da mansão. Se pudesse usar de sua falta de visão ao seu favor, poderia fazer isso.
Prestes a se chocar com a porta fechada, a criatura parou e tudo permaneceu em silêncio, até que Lynn gritou:
— Está com fome? Venha me pegar então!
Como resposta, a besta soltou um rugido feroz feito um animal e pulou em sua direção. Com o caminho livre, ela desviou da besta e correu até a enorme porta dupla, saindo para fora da mansão. Agora do lado fora, ela gritou outra vez:
— Eu estou aqui! Venha me pegar!
Ela aguardou, e quando a criatura enfim estava do lado de fora, perto o bastante para abocanhá-la com seus dentes grandes e afiados, Lynn estendeu o seu braço e a segurou no ar no momento em que a mesma pulou para atacá-la com uma investida.
— Sem mais danos — disse, empunhando sua espada e decepando a sua cabeça enquanto a segurava sobre o ar.
Assim que soltou o corpo no chão, ele desapareceu como uma névoa negra e ela soltou um leve suspiro de alívio.
— Quantos mais terei que enfrentar? — Lynn segurou sua espada com firmeza, pronta para qualquer outra coisa que viesse.
Agora, Orlen se preparava para lutar contra o assustador demônio magro e de fisionomia esguia.
Orlen atacou, deformando o rosto da criatura em um único e poderoso golpe. O demônio recuou com a pancada e se preparou para agarrá-lo com seus braços finos e largos, contudo, ele largou seu martelo no chão e segurou seus braços como se não fossem nada e somente com sua força física, o arremessou para longe.
O demônio se recompôs, e antes mesmo que pudesse fazer qualquer coisa, Orlen voltou a segurar o seu martelo e, com firmeza, o jogou contra o demônio, com uma força absurdamente fora do comum. Usou tanta força que o martelo atravessou a criatura, deixando um grande buraco em seu peito.
Aproveitando o buraco que acabara de abrir, ele correu até a criatura e colocou seus dedos sobre o seu peito e a rasgou de cima abaixo com suas próprias mãos. Banhando-se em sangue, o demônio caiu morto no chão e desapareceu deixando uma névoa negra para trás.
Quando tudo parecia ter acabado, ouviu um rugido vindo do saguão principal e rapidamente correu até lá para ver se Lynn estava bem.
— Lynn? Você está bem? Você se machucou? — perguntou Orlen preocupado, com sua armadura banhada em sangue.
— Esse sangue é seu? — Lynn quis saber.
— Não, eu estou bem.
— Os moradores estão em segurança, mas eu ainda sinto um mal pressentimento quanto a Kian… — Lynn sentiu uma perturbação, quase como uma pontada.
Depois de Kanan discutir seu plano, os cavaleiros se encontravam ainda mais perto de enfrentar Kian.
— Capitão, como sabe que esse plano vai dar certo? — perguntou Christa, não acreditando que o plano fosse dar certo.
— Tem um melhor? — retrucou Kanan.
— Não… — Ela deu de ombros. — Acha que daremos conta sozinhos? Eu confio em você, mas o que estamos enfrentando…
— Não se preocupe, ficaremos bem. O inimigo pode ser forte, mas nós temos uns aos outros — disse Kanan, transmitindo confiança em suas palavras. — Essa pode ser a nossa última batalha, mas se formos morrer aqui, morremos com honra!
A verdade era que Christa estava com medo, não estava preparada para encarar cara a cara o assassino de seu amigo Eris, que além de tudo, também era parte da sua família. Ainda que soubesse que jamais ficaria em paz consigo mesma se não o fizesse. Não dormiu uma única noite, esperando para que esse dia chegasse, e o dia enfim chegou.
“Você precisa olhar nos olhos daquele desgraçado!” — pensou Christa, se forçando a ver o rosto de Kian em sua cabeça.
A imagem de Kian nunca saiu da sua cabeça de verdade. Mesmo que quisesse, era impossível para Christa passar um único dia sem pensar em Kian. Nos dias em que Lynn ficou de repouso, Christa saiu com Orlen para beber, a fim de esquecer tudo e deixar toda aquela dor de lado, mas aqueles momentos só a faziam pensar ainda mais no amigo.
— Então vamos repassar o plano, Jin e Jay se dividirão em duas direções, o cercando pela esquerda e pela direita, assim o deixando sem opções para fugir, entretanto, para que o plano de certo, Christa e eu tomaremos sua atenção na linha de frente para que passem despercebidos aos olhos de Kian — Kanan explicou o plano.
Jin e Jay assentiram, então se dividindo em direções opostas e desaparecendo da visão de Christa e Kanan, escondendo-se entre as sombras das casas e se movendo o mais silencioso possível.
Na maioria dos casos, Jin e Jay trabalhavam em missões secretas que não iam ao público, sempre que precisavam pegar informações de seus inimigos, Kanan os enviava. Em todas as suas missões, eles sempre tiveram sucesso, eram os melhores naquilo que faziam.
Tudo isso se dava ao fato de eles terem vindo de um antigo grupo de assassinos sorrateiros, a ordem dos assassinos. Nos tempos de guerra, eram inimigos naturais do clã Ymawara. No início, Christa demorou para confiar neles, mas como a guerra já havia acabado, não havia mais motivos para serem inimigos.
— Se Eris estivesse aqui, seria tudo mais fácil… — murmurou Christa baixinho, imaginando o que Eris faria naquele momento. Provavelmente contaria uma piada para animá-la.
Não importava o quão séria fosse a situação em que estivesse, Eris sempre dava um jeito de quebrar o clima, e logo depois todos iam a gargalhadas. Ela sentia falta disso.
— O que disse Christa? — perguntou Kanan, notando a falta de determinação em seu olhar.
Kanan sabia que o trabalho de um líder era transmitir confiança e inspiração para sua equipe, mas naquele momento já não sabia se podia fazer isso.
— Nada, não foi nada.
— Para onde foi toda a sua determinação? Já se esqueceu que seu povo vive em você? A Christa que eu conheço nunca se deixa por vencida, ou melhor, a dançarina do fogo ardente — Kanan deu-lhe tapinhas nas costas a fim de mostrar que ele estava lá por ela.
— Sabe que eu não uso esse nome já faz um tempo, não sabe? Desde aquele acidente, quando um dos moradores acabou morrendo por minha causa — comentou Christa.
— Mas é dessa Christa que precisamos agora, sua força é essencial para o nosso plano. Não está a fim de fazer mais um de seus shows? — Kanan esperou por uma resposta, mas não a teve.
Christa o encarou sem resposta.
— Por Eris — Kanan estendeu-lhe sua mão.
— Por Eris — Ela apertou sua mão com firmeza.
“Christa… Quando eu morrer, quero que dê o maior show de toda a sua vida. Faça a platéia pegar fogo!” — se lembrou do que Eris um dia disse para ela, e isso a encheu de determinação.
Uma promessa é uma promessa.
No caminho, encontraram alguns demônios bestiais espalhados pela cidade, e por muita sorte, conseguiram atravessar a cidade sem que trombasse com algum deles. Considerando que eles eram lentos, não seria difícil evitá-los caso um deles o encontrassem.
Próximos do portão da cidade, que agora estava bloqueado pelas chamas, ouviram uma risada do alto dos muros. Lá estava Kian, esperando por eles.
— A verdade é que eu não sei se estou realmente pronta para encarar Kian… — admitiu Christa, sussurrando para Kanan.
— Nem eu… Mas se não fizermos isso agora, nunca poderemos ficar em paz — respondeu Kanan.
Conforme se aproximavam, podiam sentir uma presença maligna no ar, tão forte quanto uma uma nevasca fria e congelante. Seus corpos pesavam, o ambiente ficava cada vez mais denso e sussurros podiam ser ouvidos de todos os lados.
— Kian, seu desgraçado! Eu estou aqui! Venha até aqui e resolveremos isso como homens! — gritou Kanan, a voz cheia de ódio.
— Finalmente… — disse Kian com um sorriso prazeroso, quase como se tivesse esperado por esse momento por toda a sua vida.
Kian se levantou e retirou o seu capuz, revelando o corpo cheio de cicatrizes e cortes. Marcas que representavam seus anos de sofrimento de uma vida miserável. Além das cicatrizes, um grande símbolo em forma de pentagrama nas costas, que talvez viesse de algum pacto que o mesmo fizera enquanto esteve no inferno.
— Eu até desceria até aí embaixo, mas sabe, assistir daqui de cima é muito mais divertido, não concorda, Kanan? — disse Kian abrindo os braços. — Me diga, como é ser olhado de cima? Por alguém como eu?
— Aproveite os seus momentos de glória, porque logo você estará com a cabeça em uma estaca — retrucou Kanan.
— Você quer saber por que estou aqui? Para os livrarem dessa vida miserável que carregam… As pessoas clamam por liberdade, mas somente o caos liberta! Eu sou o único que pode libertá-los desse ciclo de desgraça que é a vida! — declarou. — O verdadeiro julgamento começa agora!
Kian sentiu uma aura, uma presença na força, estava perto, mas não tão perto. Era uma presença fraca, que acabara de se despertar. Ele podia sentir o medo emanando dessa presença, um medo que ele mesmo implantou.
Desta vez, não tinha que se preocupar somente com Yara, ela não era a única presente na força, havia outra.
— Eu esperei tanto por esse momento… — começou Kian, apertando os punhos. — Chegou a hora de revidar toda a dor e humilhação que este mundo me causou!