A Herdeira do Gelo - Capítulo 21
O inevitável confronto entre Kian e os cavaleiros estava mais próximo do que nunca de acontecer, metade da cidade já havia sido destruída pelos demônios e muitas pessoas morreram como consequência daquele conflito. Frente a Kian, Kanan tinha um plano.
— Quer saber como derrotar seu inimigo? — perguntou.
— Sim, meu rei. Me diga como posso derrotar meus inimigos! Eu lhe peço! — suplicou Kanan de joelhos para o homem.
— Certo, eu lhe direi então… — começou ele. — Para derrotar seu inimigo, primeiro deve saber o seu ponto fraco, e então, o acerte com força! O inimigo que deseja derrotar, ele é instável, age por impulso, e se usar disso ao seu favor, poderá tirar vantagem contra ele.
— Algo mais que eu preciso saber? — perguntou Kanan, aguardando uma resposta.
— Sim. Como já deve saber, ele tem o poder de ressuscitar os mortos, mas para controlá-los, é necessário muito foco e concentração, e é nesse momento em que ele abaixa a sua guarda e você entra, o atacando de surpresa! Agora se levante daí e derrote seus inimigos!
— Obrigado. Graças a você, eu derrotarei meus inimigos — agradeceu, se curvando diante o homem e em seguida se levantando do chão e se retirando de seu aposento.
Kanan sabia como vencer Kian, mas também sabia que Kian era cheio de surpresas, uma pior que a outra. Então, isso seria o suficiente? Não tinha como saber se não tentasse.
— Querem saber como eu matei o amigo de vocês? — perguntou Kian, sem esperar uma resposta.
— Posso te fazer uma pergunta da qual você se interesse também? Quer saber como eu irei te matar? Eu irei te fazer em pedaços e depois darei seus restos para os lobos! — retrucou Christa, a língua afiada como uma faca.
— Isso não importa, o que importa é que vingaremos a sua morte, custe o que custar! — exclamou Kanan. A voz cheia de determinação.
— Primeiro eu quebrei suas pernas para que não pudesse se mover, então cacei seus companheiros um a um, como animais em um abate. A última coisa que viu, foi seus companheiros morrendo diante de seus olhos, ele assistiu a morte de cada um deles, sem que pudesse ao menos fazer algo, e ele nem sequer implorou por sua vida! Dá pra imaginar isso? — Ele riu como se fosse uma piada.
— Desgraçado… Ele está zombando da gente! Ele acha que somos apenas brinquedos… — murmurou Christa, irritada.
— Mesmo com as duas pernas quebradas… Mesmo que a única coisa que pudesse fazer naquele momento fosse gritar… Ele tentou de todas as formas salvar a vida de seus companheiros, mas tudo foi em vão no fim. O que quero dizer é que as pessoas só dão o melhor de si quando percebem que a morte está próxima. No meu caso, só pude alcançar a minha melhor versão depois de enfrentar a morte. Eu já morri uma vez, nada pode me matar mais — disse Kian se vanglorificando.
— Você não é imortal Kian, é só um idiota. O idiota que será morto pelas minhas mãos — rebateu Kanan insultante.
— É o que veremos… — Kian acirrou os olhos.
— Kanan tem razão, você é só um idiota, nada mais e nada menos — Christa concordou com Kanan.
— Christa não é? Você alguma vez já matou alguém? Me diz, qual é a sensação de manchar suas mãos em sangue? Todo aquele sangue… derramado por suas próprias mãos! — Ele provocou Christa. Sabia que Christa era mais forte do que Kanan, e talvez se achasse o seu ponto fraco, poderia tirar proveito disso.
— Saberá a resposta logo depois que eu te matar!
— Fique calma Christa, esse maldito está apenas tentando nos provocar, não dê a ele o gostinho que ele quer — disse Kanan, a puxando pelo braço.
— Se é isso o que queria, ele conseguiu… — respondeu ela com frieza.
Pronta para o combate e com sangue nos olhos, Christa retirou sua armadura, diminuindo o peso de seu corpo e pegou a sua lança e cortou o seu rabo de cavalo. Entrando em posição de combate, ela esperou até que Kian movesse a primeira peça de seu jogo.
— Isso será divertido… — animou-se Kian.
Kian colocou sua palma direita no chão e um exército de demônios bestiais surgiu ao redor de Kanan e Christa.
— Eu já o derrotei uma vez antes no passado, uma segunda vez não será difícil. Você é fraco, Kian. Por isso se esconde atrás de seu exército — provocou Kanan.
— Está enganado, eu mudei, não sou mais o mesmo de antes, agora eu sou um ser renascido. Se espera me deixar irritado somente com essas palavras, sinto muito em lhe dizer, mas isso não vai funcionar. Veja ao seu redor, você viu o que posso fazer, e mesmo assim me acha fraco?
— A verdade é que é difícil demais pra você aceitar que eu te derrotei uma vez, por isso você voltou, não é? — Kanan continuou a provocá-lo.
Kian rangeu os dentes, mas se controlou para que não perdesse o controle. Ele esperou tempo demais para aquele momento, não poderia simplesmente estragar tudo agora.
— Calado! Você não sabe de nada! — retrucou Kian, e então deu um sinal para que as criaturas atacassem.
Kanan e Christa não se moveram, se mantiveram calmos.
Os demônios começaram a caminhar com passos lentos e pesados, se fosse para chutar, demoraria cerca de 10 minutos ou menos para que alcançassem eles, dada a sua velocidade e a distância em que se encontravam uns dos outros.
— 1, 2, 3… — Kanan começou a contar.
— São 20 — acrescentou Christa, indo direto ao ponto.
— Certo… Eles são lentos, então ainda temos algum tempo até que Kian suspeite de algo. Por agora, vamos apenas aguardar.
— Isso é tempo o suficiente para mim — disse Christa com tranquilidade na voz.
Christa respirou fundo e fechou os olhos. Imaginando estar em um palco cheio de pessoas e holofotes, começou a dançar, deslizando seus dedos sobre a lança e fazendo movimentos rápidos e coreografados. Conforme seus movimentos ficavam ainda mais rápidos, uma chama começava a se acender, deixando um rastro de fogo para trás.
Seu corpo parecia leve, sentia como se estivesse flutuando, aquele era o seu paraíso e ninguém poderia tirá-la de lá. Enquanto dançava, esquecia cada vez mais da realidade ao seu redor, para ela aquela era a única realidade que fazia sentido, afinal, ela nasceu pra dançar.
— Impressionante… Ela pegou todo aquele ódio e o canalizou em sua lança, junto com todo e qualquer outro sentimento… — Kanan arregalou os olhos, surpreso.
“Se está feliz, dance! Se está triste, dance! Se está com raiva, dance! A vida só é bela quando é vista com outros olhos, por isso, viva! Não pare de dançar, nem por um minuto!” — gritou a voz do seu coração.
Seu coração estava ardendo em chamas, sua única vontade naquele momento era seguir o seu coração. Christa dançava como se aquela fosse a última dança de sua vida, dançava como nunca dançou um dia, dançava em homenagem a todos que se foram. Não precisava mais se preocupar com seus movimentos, seu corpo por si só já se movia sozinho.
A lança começou a pegar fogo em suas mãos, mas ela parecia não sentir, quase como se as chamas fizessem parte de si. As chamas não a incomodavam, pelo contrário, ela se sentia confortável, segura, aquecida, era como estar de volta ao útero de sua mãe.
Ouvia vozes através do fogo, as vozes gritavam pelo seu nome e ela reconhecia cada uma delas. Sua mãe, seu pai, suas irmãs, todos estavam clamando pelo seu nome. Por tão pouco, Christa não segurou as lágrimas e se deixou se afogar em lágrimas de emoção.
“Se estiver se sentindo desmotivada, ou sentindo que não é forte o suficiente, incendeie o seu coração.” — disse uma voz em seu interior.
A dançarina do fogo ardente, era assim que a chamavam. Sua dança era tão intensa que fazia a platéia pegar fogo, com direito a gritos e clamores. Ela dançava com o coração e era através da dança que ela se expressava.
A partir dos 10 anos de idade, as meninas eram obrigadas a treinar em altas temperaturas para que um dia pudessem aguentar o calor que era ser uma guerreira do sol. Quando enfim completavam seus 18 anos de idade, era feita a seleção para o ritual de provação, o ritual na qual as tornava oficialmente uma guerreira do sol.
O ritual se constituía em duas partes, a primeira onde as participantes tinham que apresentar uma dança com a lança, a chamada dança do sol, e a segunda, onde as participantes precisavam incendiar suas lanças no fogo e não deixá-las se apagar por pelo menos 12 horas.
Aquelas que tivessem sucesso no teste, teriam suas marcas moldadas pelas próprias chamas do fogo, como marcas de queimaduras. Ser uma guerreira do sol significava amadurecer e deixar o passado para trás a fim de se focar no futuro.
Para Christa, aquilo era mais do que um simples ritual, era a prova de seu amadurecimento e também a prova de sua força. Quando realizado o ritual, as participantes não poderiam mais ver seus pais, porque era parte do ritual deixar todo o seu passado para trás e seguir em frente.
No início foi difícil para Christa aceitar isso, nunca concordou com a cultura de seu povo e ser proibida de ver seus próprios pais era um tremendo absurdo para ela, mas sempre que dançava, sentia seus pais por perto, por isso sempre dançava com um sorriso no rosto.
“Vocês estariam orgulhosos em ver o que me tornei…” — pensou Christa, soltando um leve sorriso de felicidade enquanto dançava.
— Idiotas! O que estão fazendo?! — gritou Kian impaciente com a espera. — Não fiquem parados, façam alguma coisa ou vão morrer!
— Deixo essa com você, Christa — disse Kanan.
Ele observou Christa dançar e quando sua dança estava para chegar ao fim, sentiu-se uma pontada de felicidade. Ver Christa dançar o acalmava e o trazia paz, era como observar um verdadeiro espetáculo.
— Agora Christa! — gritou Kanan, despertando Christa de sua paz interior.
Christa abriu os olhos e com um único movimento, começou a girar sua lança a uma velocidade incrível, as chamas se estendendo ainda mais, Kanan até podia sentir o calor emanando de Christa agora. Então fez um arremesso giratório, fazendo a lança voar como um bumerangue em direção a um dos demônios.
O arremesso foi certeiro, acertando o pescoço do demônio e o fazendo cair instantaneamente, acertando também o segundo, e então o terceiro e consequentemente o quarto… Quase como um efeito dominó, todos os demônios foram derrubados em questão de segundos. Sua lança estava tão quente que atravessou todos eles sem dificuldade alguma.
Kian não pareceu se impressionar, já esperava que aquilo não fosse o suficiente. Ele apenas riu, soltando gargalhadas cruéis de sua garganta, até que falou:
— Você tem ideia do que são esses demônios? Eles já foram pessoas um dia, sabia? Você está matando pessoas.
— Por que está me falando isso? Qualquer coisa que tenha sido antes, já deixou de ser a muito tempo — respondeu Christa.
— Você já sentiu como se sua existência não fizesse sentido? — perguntou Kian. — Era assim como essas pessoas se sentiam, estavam perdidas, vivendo um ciclo infinito de dor e sofrimento, mas então eu dei um novo propósito para suas vidas.
— Elas estavam sofrendo porque mereciam, eram pessoas como você. Aquelas pessoas não mereciam paz — retrucou Kanan soando frio e arrogante.
— Por que vocês não entendem de uma vez?! — Kian aumentou seu tom de voz. — Eu sou o único capaz de salvar vocês! O único capaz de dar um propósito para suas vidas insignificantes e sem graça. Quando matei seu amigo, eu o trouxe de volta a vida com um novo propósito, um propósito glorioso!…
Sua fala fora interrompida quando sentiu uma lâmina fria em sua garganta, e então uma voz falou:
— Xeque-mate.