A Herdeira do Gelo - Capítulo 22
Kian estava cercado, não havia para onde correr. O plano de Kanan foi um completo sucesso e ele agora se perguntava onde foi que errou para ter deixado algo tão óbvio ter passado despercebido.
“Como? Como passaram por mim sem que eu percebesse?” — pensou Kian desacreditado — “Isso é impossível… Eu teria os notado no exato segundo em que se aproximaram!”
Kian se lembrou de algo. Há exatas duas semanas, ele se encontrou com o rei da capital de Valravam — cidade da nobreza — a fim de tomar o seu lugar no trono e conseguir mais poder.
Contudo, sua busca incessante por poder o levou apenas à derrota.
“Reconheço a sua força, mas está longe do meu nível. Ainda que me enfrente mil vezes, eu ganharia outras mil vezes. Posso fazer isso o dia todo”, comentou, enquanto empunhava uma espada banhada em ouro.
“Você está zombando de mim? Eu sou um deus!”
“A capacidade de trazer os mortos de volta à vida… Um poder de fato extraordinário… Porém, nas mãos de alguém tão ingênuo”, respondeu o homem com desprezo no olhar.
“Não é só porque você tem essa coroa na cabeça que tem o direito de me humilhar assim. Não aceitarei tais humilhações vindas de um mortal imundo como você!”, retrucou Kian sem abaixar a cabeça.
O homem abaixou a espada e falou: “Não irei te matar, mas terá que fazer um favor para mim.“
“Primeiro eu tento te assassinar e tomar o seu lugar no trono e depois você me da piedade? Que tipo de rei é você, afinal?”, indagou ele.
Ignorando-o, ele falou: “Encontre os cavaleiros Jin e Jay e diga-os que estou com seu irmão, ou torça para não me encontrar de novo.”
Sabia que não havia outra escolha, a não ser fazer o que o homem o pedia, mas seu orgulho era grande demais para aceitar a derrota. Entretanto, não seria a primeira vez que perde para alguém.
“Acha mesmo que farei isso?”
“ Você vai. Por que? Porque eu sei quem você é, ele me contou, ele sabe de tudo. Também sei sobre sua fraqueza, sei que quando invoca seus soldados você fica de guarda baixa. É difícil manter a concentração, não é?”, disse o rei, andando de um lado para o outro.
“Quem te contou sobre mim?”, quis saber.
“Não posso lhe dizer. Ele me mataria se soubesse que eu falei com você sobre isso.”
“Aquele mizeravel… Eu sabia que não deveria confiar nele, ele contou a Kanan sobre minha fraqueza… Aquele maldito me vendeu! Primeiro me manipulou e depois me descartou como se não fosse nada! — um sentimento de raiva tomou conta de Kian.”
A espada fria continuava pressionando sua garganta. Ele até mesmo podia sentir a lâmina prestes a rasgá-la, e quando pensou que aquele seria o seu fim, outra voz falou, tão abafada quanto a primeira:
— Deixe comigo, eu posso fazer isso.
Como resposta à voz, o homem que segurava a espada a abaixou devagar. Kian logo se virou, mas quando se virou deu de cara com a lâmina de Jin.
— Se eu fosse você não tentaria fazer isso.
Kian recuou, dando dois passos para trás e, por tão pouco, não pisando em falso e caindo da beirada. Assim que recuperou seu equilíbrio, ele indagou, nem um pouco amedrontado: — O que vai fazer? Vai me matar?
— O que você acha? Eu pareço uma assassina pra você? — respondeu Jin enquanto o encarava.
Mesmo através de sua máscara, ele podia sentir o ódio e desprezo emanando de seu olhar. Da mesma maneira que Yara podia sentir coisas, Kian também podia ver além do que seus olhos o mostravam.
— Ninguém é perfeito, Jin. Mas me diga, você não quer saber sobre o paradeiro de seu irmão? Soube que não vê ele há algum tempo já. Um passarinho me contou — contou Kian.
Ao ouvir isso, todo o ódio que transbordava dentro de si se apagou, e o que antes era raiva, se tornou medo.
— Desgraçado… O que você sabe sobre isso?! — Jin o segurou pelo pescoço, o ameaçando soltá-lo da borda.
Enquanto isso, Kanan e Christa, estando próximos do muro, tentavam entender o que estava acontecendo lá em cima para que estivessem demorando tanto. Se passaram minutos desde que Kian fora rendido e até então não tiveram mais respostas.
Pelo menos agora já não teriam mais que se preocupar com os demônios que antes se encontravam destruindo a cidade, já que estes pararam de surgir e apenas alguns poucos ainda estavam de pé.
— O que está acontecendo? Sobre o que estão conversando? — perguntou Christa à Kanan.
— Eu não sei, estão conversando baixo demais. Não consigo escutar nada — respondeu Kanan.
— Kanan… isso está errado… Algo deve ter acontecido, Jin nunca hesitou em matar alguém — a expressão de Christa mudou de repente, estava com um mal pressentimento.
— Tem razão, não podemos baixar nossa guarda tão cedo. Devemos ficar atentos. Esse maldito pode estar planejando algo para ganhar algum tempo com Jin e Jay.
— O que vamos fazer então? — perguntou Christa.
Kanan olhou para o alto dos muros e respondeu confiante: — Vamos confiar neles.
Pela primeira vez em toda sua vida, Jin hesitou em matar alguém. Se o que Kian estivesse falando fosse verdade, ela não poderia matá-lo mesmo que quisesse, afinal, era sobre seu irmão que estava falando.
— Ainda quer me matar? Me disseram que assassinos não hesitavam na hora de matar, acho que mentiram pra mim então, ou você não é uma assassina de verdade? — provocou Kian.
— Se tiver encostado um dedo sequer nele… — começou Jin, apertando seu pescoço com força.
— Espere Jin, ele não está com nosso irmão Sunn! Talvez ele possa saber de algo, eu sugiro que solte-o e escute o que ele tem a dizer, por mais perigoso que isso seja — disse Jay a fim de acalmá-la.
— Como pode ter tanta certeza irmão? Ele é um mentiroso, é óbvio que está falando isso só para se safar!
Kian riu. Para ele encarar a morte era como encarar sua própria rotina diária, já escapou da morte tantas vezes que ela não o assustava mais.
— Me mate então e você nunca mais verá seu irmão! Seria uma pena para ele… já que ele não tem mais ninguém…
— Você está duvidando de mim? Saiba que em todas as minhas missões eu nunca hesitei em matar um alvo sequer e não será agora que farei isso — respondeu ela com frieza na voz.
— Se estiver afim mesmo de me matar, vá em frente. Não irei implorar pela minha vida.
— Sabe o que cada uma das pessoas que assassinei tinham em comum? Nenhuma delas merecia o direito de viver. Você não é muito diferente se quer saber.
Jin o soltou, e quando Kian estava prestes a cair, ela rapidamente segurou pelo braço e falou:
— Me dê um bom motivo para não te soltar agora. Um que realmente valha a pena.
— Sei onde está seu irmão… — murmurou Kian com certa dificuldade em respirar.
À espera de uma resposta, Kanan e Christa presenciaram Jin salvar Kian. Aquele que matou Eris e assassinou seus companheiros enquanto mantinha um sorriso no rosto.
— Veja! O que é aquilo?! — Christa apontou para o alto dos muros, onde Jin segurava Kian pela beirada.
— O-o que? Jin está salvando Kian? M-mas… por que? — indagou Kanan sem entender o que exatamente estava acontecendo.
— Jin, solte esse desgraçado logo de uma vez! Não podemos deixar que ele fique vivo! — a voz de Christa ecoou.
De um lado, Christa pedia para que Jin matasse Kian, e do outro, seu irmão a olhava com um olhar de desaprovação. O tempo estava correndo e logo mais teria que fazer uma escolha.
— Jin, pode por favor confiar em mim? — pediu Jay, retirando sua máscara e estendendo sua mão para Jin, então revelando seus olhos azuis e seu cabelo loiro.
— Irmão… Se não matarmos ele agora, quantas outras pessoas irão morrer?! O que Sunn pensaria se soubesse que deixamos centenas de pessoas morrerem?! — gritou Jin para seu irmão.
— Você está exagerando, é de Sunn que estamos falando! E se ele realmente estiver falando a verdade e souber onde está nosso irmão?!
— Esse desgraçado matou centenas de pessoas enquanto sorria! Ele destruiu famílias! — cada uma de suas palavras mostrava o tamanho ódio que tinha por Kian.
— Você fala isso, mas e enquanto as pessoas que você matou, Jin? Elas não mereciam viver? Elas também não tinham família? O que mudou Jin? Me diz, o que mudou? O que difere as vidas que você tirou para essas vidas?
— Isso é diferente… aqui é a nossa casa — disse Jin baixinho.
— Você já se esqueceu de qual era a nossa missão? Desde o início nosso dever como assassinos sempre foi matar essas pessoas, não salvá-las. Não somos cavaleiros, somos assassinos, ou você já se esqueceu do nosso dever?
— Não, eu não esqueci.
Olhando para o chão, Jay largou sua katana e com a cabeça baixa, começou a rir de maneira descontrolada enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas. De repente, o céu se fechou e pingos de chuva começaram a cair dos céus em sua cabeça, acompanhados de trovoadas de uma tempestade que se aproximava.
— É verdade… Eu acho que fiquei aqui tempo demais… Já fazem 3 anos que eu estou cercado só de idiotas, se eu ao menos soubesse que existiam pessoas assim… Eu não teria me tornado a merda de um imprestável. Agora, só me resta encarar as consequências de minhas ações e cumprir o meu dever como guerreiro…
No ápice da guerra, quando o Olho da meia-noite se viu sem mais recursos, mandaram Jin e Jay para se infiltrar entre os inimigos com uma criança, para que fossem poupados e não fossem mortos. Os anos se passaram e logo eles ganharam a confiança de Kanan, se tornando parte dos cavaleiros da avalanche.
Pensativa, Jin olhou para Kian, que a encarava com tremendo ódio no olhar. Ao norte da cidade ainda se podia ver alguns demônios bestiais destruindo o que restou da cidade.
O que Jay disse era verdade, passaram tempo demais com aquelas pessoas, esqueceram de qual era o seu real objetivo. Quando menos se deram conta, já estavam chamando aquele lugar de lar, mas cedo ou tarde, a verdade viria à tona.
Após alguns minutos de discussão, Jin enfim decide puxar Kian de volta à superfície.
— Certo, diga de uma vez antes que eu me arrependa.
— O Rei está com seu irmão, ele me pediu para avisar a vocês — disse Kian com sinceridade na voz, algo que não era de sua natureza.
— Espere… Ele mandou você aqui? — perguntou Jay, surpreso.
— É o que quero que ele pense, porém assim que eu tiver a oportunidade, irei matar aquele desgraçado! Mas primeiro, preciso acabar com vocês.
— Sabe Kian, a verdade é que matando essas pessoas você estaria fazendo um grande favor para nós — respondeu Jay.
— Fico feliz que alguém aqui saiba a importância do meu trabalho, por que não se junta a mim? Formaríamos um belo time — disse Kian com um sorriso forçado no rosto — É realmente uma pena que sua irmã não pense da mesma forma…
— Jay? No que está pensando? — perguntou Jin com um olhar desconfiado.
— Jin… você terá que fazer uma escolha — ele pegou sua katana do chão e se colocou ao lado de Kian. — Terá que escolher entre mim e essas pessoas, quem vai escolher?
— Isso é loucura! Nós somos irmãos, Jay! E enquanto a nossa promessa de cuidar de Sunn juntos?!
— Isso não é sobre Sunn irmã…
Agora, Jin precisava fazer uma escolha difícil. Não poderia simplesmente deixar aquelas pessoas para trás, aqueles que não só deram um lugar para ela chamar de lar, como também deram uma família para ela, a família que ela nunca teve. Entretanto, desistir do irmão era ainda mais difícil.
Ela retirou a sua máscara e revelou seus cabelos igualmente lisos e loiros, os olhos azuis como os céus. Precisava olhar nos olhos do irmão com seus próprios olhos.
— Entendi… nunca foi sobre Sunn então não é? Foi por isso que não quis aparecer no enterro de Eris também? — perguntou Jin, já sabendo a resposta.
— Eris era um idiota, como todos os outros! — gritou Jay, a voz cheia de arrogância.
No instante em que a discussão começou, Kanan automaticamente soube que algo de ruim estava para acontecer e então deu a ordem: — Christa! Você precisa intervir!
Christa assentiu e correu até a muralha.
— Ele confiava na gente, ele também era nosso amigo! — protestou Jin, não se segurando e indo às lágrimas.
— Ele escolheu as pessoas erradas para confiar — retrucou ele.
— Mas e enquanto a Lynn, Kanan e todos os outros?! Vai me dizer que era tudo mentira também?!
Jay não respondeu, permaneceu em silêncio.
— E o que vai acontecer depois de cumprirmos o nosso dever? O que vai sobrar pra você Jay?! O que vai sobrar?!
— Eu ainda vou ter você irmã… — respondeu ele. — Por isso, se junte a mim e juntos cumpriremos o nosso dever!
Ele estendeu uma de suas mãos para Jin.
— Você está louco! Eu não posso aceitar que mate essas pessoas inocentes! — Jin empunhou sua espada contra Jay.
— Não me obrigue a lutar contra você irmã… — relutante, Jay também empunhou sua arma e entrou em posição de combate.
— Você está tomando a escolha errada, irmão… — murmurou Jin e deu o primeiro passo, atacando Jay com uma investida direta.
Jay bloqueou o ataque e suas mãos começaram a tremer, uma tremedeira descontrolada tomou conta de si e seus olhos se marejaram. Com a chuva caindo sobre seus rostos, já não sabiam o que eram suas lágrimas e o que não eram.
— Não posso lutar com você… Eu desisto… — Jay soltou sua espada, caindo de joelhos.
Kian aproveitando que eles estavam distraídos enfrentando um ao outro, apareceu nas costas de Jin. Jay tentou gritar para alertá-la, mas já era tarde demais.
— Devia ter cortado a minha cabeça assim que teve a chance — disse Kian enfiando o braço no peito de Jin e arrancando seu coração com as mãos.
Ainda com vida, Jin se virou para Kian e colocou a mão no peito ao ver o que ele segurava consigo, em seus últimos suspiros de vida, tentou dizer algo, mas sua voz não saiu e sua visão começou a se desvanecer, até que tudo ficou escuro.