A Herdeira do Gelo - Capítulo 24
Desde as antiguidades, quando o mundo não era tão extenso como nos dias de hoje, os primeiros povos sempre interagiram com os demônios, porém a paz entre essas duas raças só foi possível quando um dos lados propôs um tratado de paz.
O tratado traria paz e tranquilidade para ambos os lados; o portão que por milênios permitiu a passagem de um mundo a outro, enfim seria selado eternamente, impedindo então a interação entre demônios e humanos. Com apenas uma única exceção, os juramentos de sangue continuariam a ocorrer.
Mais tarde nomeados como “pacto de sangue”, os juramentos de sangue eram promessas feitas entre homens e demônios, onde os humanos vendiam seus corpos ou sua alma em troca de algo maior.
Como era de se esperar, a paz não dura pra sempre. O acordo foi quebrado e os deuses tiveram que intervir antes que uma guerra se desencadeasse. Com a intervenção de Odin, foi lançado um feitiço que impediria que qualquer demônio atravessasse a barreira entre mundos.
Abaddon, esse era o seu nome, o demônio que atravessou o portão para o mundo humano, assim então quebrando o tratado de paz. Logo mais ficando conhecido como o demônio do abismo. Seu julgamento foi passar a eternidade nas profundezas do abismo das almas, um inferno criado propriamente por Odin, o pai de todos.
Agora, um pacto foi realizado e a primeira das correntes de seu juramento foi quebrada.
Com suas forças renovadas, sentiu um estranho poder fluir pelo seu corpo. Um poder do qual não era seu. Suas veias ficaram maiores e um pequeno chifre cresceu do canto de sua testa.
“Esse poder… De onde vem tanto poder?” — Kian se perguntava, não conseguia compreender o que era aquele poder.
Deveria estar morto, mas ao invés disso se sentia tão vivo como jamais esteve em qualquer outro momento de sua vida. O que quer que fosse aquele poder, seja uma benção ou uma maldição, não lhe importava, ele iria usar cada gota dele, até que não lhe restasse mais nada, nem mesmo migalhas.
— Despertem agora…
No momento em que proferiu essas palavras, um pequeno exército de mortos-vivos emergiu do solo, cercando os cavaleiros, que naquele instante se encontravam com a guarda baixa.
— Kanan, cuidado! Atrás de você! — alertou Christa, contudo a criatura foi mais rápida do que esperava, perfurando o estômago de Kanan com uma espada velha e enferrujada.
Mesmo sendo pego de surpresa, ainda conseguiu reunir forças e contra-atacar, desfazendo a criatura em um ataque cortante.
Não foi um corte fatal, mas certamente seria o suficiente para o tirar de batalha, e era o que Kian queria. Precisava tirá-lo de jogo para que pudesse lutar contra Christa sem que ninguém interferisse.
— Impossível… Seus ferimentos… M-mas… Como? Como é possível você ainda estar vivo? Eu te perfurei inúmeras vezes, vi você sangrar no chão enquanto sua vida era apagada aos poucos… Você deveria estar morto! — exclamou Christa surpresa.
— A resposta é óbvia, o caos nunca morre — respondeu Kian.
Ele caminhava com tranquilidade em direção aos cavaleiros, enquanto ao passo que se aproximava tentava se acostumar com seus novos e misteriosos poderes. De alguma forma, ele se sentia atraído por esse poder, como se houvesse algo do outro lado o chamando.
Tão destrutivo e ao mesmo tempo tão sedutor, essa era a melhor das definições. Era diferente da força, mas semelhante, era maligno, demoníaco, tal como o lado negro da força.
Um desejo irresistível de se render àquele estranho poder era o que tomava conta de seu ser. Se render seria uma prova de fraqueza, mas não abraçar aquele poder seria a mais burra das escolhas.
Para se vingar de toda a humilhação que esse mundo um dia o fez sofrer, estaria disposto a fazer qualquer coisa. Até mesmo firmar um pacto com um demônio.
Diante de seus inimigos, seu exército se encontrava parado, à espera de uma ordem.
— Christa… — Kanan falava enquanto arquejava. — Corra até a base e peça ajuda, eu posso segurar ele.
Apoiando-se em sua espada, ele segurava seu ferimento com uma de suas mãos, estava perdendo sangue a uma velocidade incrível.
— Você tá brincando né? Até parece que vou deixar você sozinho com esse monstro capitão — protestou ela. — Você não está em condições de lutar, mas eu… eu ainda posso lutar.
Suas chamas podiam ter se apagado, mas seu espírito de luta ainda ardia intensamente como um grande incêndio. Seu show ainda não havia sido finalizado, e todo show precisa de um fim.
— Droga Christa! Isso é uma ordem! Faça o que eu digo pelo menos uma vez na vida! Você não pode enfrentá-lo sozinho, isso seria loucura!
— E você pode?
Kanan não respondeu. Ele mal podia ficar em pé e todo pequeno esforço era muito.
— Foi o que pensei…
Aquela foram as últimas palavras ditas por ela logo antes de se virar para Kian e começar a girar sua lança. Novamente suas chamas se acenderam, mais fracas do que anteriormente, porém ainda intensas.
— Você parece acabada, o que aconteceu com seus braços? Você não me parece a mesma guerreira de poucos instantes atrás. Tão poderosa e imponente…
— Se eu quisesse sua opinião, eu tirava na porrada. E não era você quem estava clamando por ajuda a poucos segundos atrás? Para onde foi todo aquele desespero? — retrucou Christa.
Kian respirou fundo, tentando não perder o controle, e com um único movimento fez seu exército desaparecer em um piscar de olhos.
Agora, a única coisa que os cercavam eram as chamas da cidade, que hora ou outra era confundida pelas chamas de Christa. Estava confiante de seu novo poder, nada poderia o abalar, exceto por…
Uma nova presença apareceu na força, uma presença poderosa, uma presença familiar, alguém que ele já havia enfrentado antes.
“Ela finalmente chegou, bem como eu esperava. Mas eu ainda não consigo compreender, como a força pode ser tão presente nela? Ela é só uma garotinha…” — Kian se perguntava sem entender.
— O que lhe incomoda, Kian? Você não confia mais nos seus novos poderes? — provocou ela — Nada mudou, você ainda não pode me vencer. Está desperdiçando seu tempo.
— Não é isso. Encontrei alguém mais interessante do que você, e essa pessoa está vindo para cá nesse exato momento. Eu posso senti-la.
— Bom pra você.
Sua arma se moveu ao encontro de Kian, tão próxima de o atingir, sentiu uma mão forte segurar em seu braço, e então sua lança parou e suas chamas se apagaram. Ela não era a única que sabia analisar os movimentos de seus inimigos.
— Você já não é mais tão rápida. Dessa vez você perdeu.
Ele pressionou seu braço com uma força sobre-humana, a fazendo largar sua arma e urrar de dor.
— Christa! — gritou Kanan, mas sua voz foi interrompida pelo grito de sua companheira.
Ele tentou correr, entretanto estava tão fraco que caiu no chão sem forças. Sabia o que estava para acontecer a seguir, porém era tarde demais. Enquanto aqueles gritos ecoavam por seus ouvidos, tudo o que fez foi se entregar às lágrimas.
“Christa, não morra! Por favor!”
Sem piedade alguma, Kian torceu o seu braço e novamente gritos de dor puderam ser ouvidos vindos da cavaleira Christa. Em seguida ele a segurou pelo pescoço com sua outra mão e enquanto olhava no fundo de seus olhos, falou:
— Suas últimas palavras?
Christa perdeu, mas lutou com bravura e coragem até o fim. Se aquela fosse sua última batalha, morreria sem arrependimentos. Estava certa de sua morte, então apenas fechou os olhos e aguardou.
De algum lugar não tão distante dali, uma flecha foi atirada a uma velocidade incrível, impossível de ser vista a olho nu. A flecha não o acertou, caindo a poucos centímetros de Kian, que se abaixou para pegá-la logo após ser atirada.
“Que tipo de pessoa consegue errar um alvo parado? Nem mesmo o pior dos atiradores faria isso.” — pensou Kian.
Distraído, ele acaba afrouxando o pescoço da cavaleira sem querer, que consegue se livrar de suas mãos e cai exausta no chão, quase sem ar.
— Acho que você errou — disse, alto o bastante para que pudesse ser ouvido, retirando a flecha do chão em um esforço quase que inútil.
Sua confiança era tanta que nem passou pela sua cabeça que o alvo poderia não ser ele. Kian estava subestimando seu inimigo.
— Tem certeza? — retrucou Yara, se revelando através da cortina de fumaça. — Não estava mirando em você.
— Yara…? — indagou Christa, a voz quase não saindo.
— Ela voltou? Mas… Por que? — Kanan se perguntava.
A flecha brilhou com um brilho bem fraco e explodiu na mão de Kian, que no mesmo instante olhou para Yara com um olhar mortal. Seu corpo começou a se congelar pouco a pouco, primeiro os braços, depois as pernas e, por fim… a cabeça.
Em seus últimos momentos antes se congelar por completo, ele proferiu suas últimas palavras:
— Tudo em nome do caos.
O símbolo marcado em suas costas novamente voltou a brilhar e sigilos escritos em dourado começaram a aparecer por todo o seu corpo, uma linguagem que nem mesmo Yara podia compreender.
O gelo se rompeu, Kian estava livre.
— Eu te dei uma chance Kian, e você desperdiçou essa chance como se não fosse nada… Deveria ter ido embora e deixado essas pessoas em paz, era o certo a se fazer. — A garota falava com decepção na voz.
— O certo a se fazer? — Ele riu. — Não existe certo ou errado nesse mundo… Somente a vontade do caos. O caos é quem decide o fluxo de todas as coisas que acontecem!
— Está errado, você não consegue enxergar o brilho nos olhos das pessoas que matou porque já perdeu o seu e isso o deixa frustrado.
Sabia que era verdade, houve uma época em que Kian realmente era feliz ao lado de sua mãe e daquele que hoje busca vingança. Junto de suas memórias felizes, também se foi todo aquele brilho no olhar de uma criança inocente e sonhadora.
A verdade nua e crua entrava em seus ouvidos como um assobio, que conforme ecoava, o incomodava cada vez mais.
— Cala boca! Cala boca! Cala boca! — gritou Kian repetidas vezes.
Mesmo com um dos braços quebrados, Christa não se deu por vencida e se recompôs, levantando mais outra vez e com o braço que ainda não havia sido quebrado, agarrou sua lança do chão com firmeza e se pôs para atacá-lo pelas costas de surpresa.
— Você já tinha esse chifre antes? Ou você levou uma pancada tão forte na cabeça que um chifre nasceu em sua testa? — provocou ela.
— Esse corpo não é mais meu, eu vendi o meu corpo em troca de mais poder, e agora… eu sou invencível! — Kian falava enquanto dava passos lentos e calculados em direção a garota.
— É o que veremos… Agora Christa!