A Herdeira do Gelo - Capítulo 3
Decidida, Yara escolheu subir a montanha; em seu caminho ela encontrou o Anão Travok, um vendedor de armas ranzinza e muito ignorante, que com nada se importava senão com suas mercadorias.
Acreditando que a jornada seria fácil, eles são atacados por um bando de lobos. Então se vendo sem opções, são obrigados a se esconderem em uma caverna, caverna essa que era a toca dos lobos, e agora os lobos de antes os cercaram e um problema ainda maior estava diante deles.
— O que você tem aí? — perguntou a garota entrando em posição de combate, já com sua lança em mãos. — Acha que pode fazer isso?
— Talvez eu esteja velho demais pra isso, mas é isso ou eu morro aqui, menina — respondeu Travok, de costas para Yara — Se for pra morrer eu prefiro não morrer com você.
Falado isso ele puxou uma pequena espada velha de sua cintura, cujo cabo estava inteiramente desgastado.
Entrando em posição de combate, se preparou para agir; juntamente de Yara que também se preparava para o combate, e mesmo parecendo em desvantagem, a garota não baixou sua guarda em momento algum e não parava de pensar em uma maneira de sair daquela situação.
Se olharmos bem, os lobos possuíam a vantagem numérica, entretanto, se considerarmos o ambiente em que se encontravam, sendo este uma caverna apertada e de pouco espaço, teriam dificuldades em bolar um plano para atacar Yara e Travok em conjunto.
O fato é que Yara poderia facilmente passar por cada uma das feras e derrubá-las em um instante, um a um, porém o maior dos problemas se encontrava no lobo maior atrás deles.
Ao olhar pelo porte do anão, ele não aparentava ser do tipo guerreiro; a forma nítida com que segurava a espada deixava isso bastante evidente, ninguém seria tão idiota ao ponto de segurar o cabo de uma espada pela parte mais próxima da lâmina.
Precisava de uma distração para lidar com os lobos menores; Travok seria a distração perfeita naquele momento.
— Travok! Distraia o lobo maior! — exclamou a garota.
— Por que caralhos eu devia seguir ordens suas? — retrucou ele — Por que quem dá as ordens aqui é você e não eu? Eu digo que deveríamos derrubar o maior primeiro! Por experiência própria!
— Eu estou tentando nos salvar. Apenas faça o que eu digo!
Não havia mais tempo para pensar, os lobos estavam se aproximando, se não fizesse algo agora, seria tarde demais.
Yara rapidamente empunhou sua lança e correu em direção às feras, usando uma agilidade absurdamente incrível, algo que nem mesmo ela sabia que era capaz de fazer; seus movimentos pareciam inigualáveis, qualquer que fosse a pessoa, seria incapaz de repetir tais movimentos, porém por alguma razão para ela pareceu tão fácil e prático.
Travok arregalou os olhos, estava mais impressionado pelo que Yara era capaz de fazer do que com as feras famintas à sua frente.
— Droga, que seja! Eu farei isso sozinho!
Ele reuniu suas forças na tentativa de ferir a grande fera, atacando-a diversas vezes com ataques cortantes e seguidos, mas sem qualquer resultado, a criatura nem sequer se moveu e apenas o ignorou, como se sua presença fosse totalmente insignificante.
Partindo para o ataque, Yara passou por dois deles, os derrubando no exato segundo. Um terceiro tentou atacar, mas ela desviou e contra atacou, derrubando-o também. Os outros três lobos que restaram, se reagruparam em formação.
Considerando que agora seus números haviam diminuído, seria mais fácil de liderar uma estratégia de ataque; então, eles fizeram.
No primeiro que atacou, ela não teve dificuldades em desviar, mas sem que tivesse qualquer tempo para respirar, um segundo a atacou, por tão pouco conseguindo bloquear. Restando apenas um agora, este na qual se preparava para dar uma investida.
“Droga!… Não posso desviar disso… Estou sem opções! Eu não posso morrer aqui, não antes de encontrar minha mãe!”, considerou todas as suas opções, que por sinal já eram poucas.
Após muitos ataques consecutivos, e sem ter sucesso em nenhum deles, Travok se encontrou cansado e ofegante. Até que, acidentalmente, uma pedra desabou do teto da caverna, caindo em cima da fera.
O anão vendo a oportunidade diante de seus olhos, correu ao encontro da garota, salvando-a do lobo que estava para a atacar; agora restando apenas dois deles, um para cada um. Yara se livrou do que estava com ela e Travok se livrou do outro.
Para a tristeza deles, o líder da alcateia se mostrou muito mais resistente do que aparentava ser, se levantando dos destroços com extrema facilidade. Eles sentiram uma enorme pressão emanando do mesmo, um verdadeiro instinto assassino.
— Ah, legal! Pelo jeito você é bom de queda então! — disse o anão, engolindo em seco.
— A saída está livre agora, vam-
Estava para terminar a sua fala, quando sua voz foi interrompida abruptamente. Assim que seus olhos se encontraram com os da fera, sentiu como se estivesse olhando para o próprio diabo, sua presença era amedrontadora e transbordava como água.
— Não pode ser… Esses olhos… Você… Você é a deusa que trará o nosso fim! — disse a besta, a voz grave e impotente.
O chão tremia a cada pisada dada pela fera, suas garras arrastavam no solo fazendo um som insuportável; Travok e Yara estavam paralisados, completamente apavorados.
Ela nunca havia sentido um medo tão grande como o que estava sentindo naquele momento. De todas as coisas que sua avó lhe ensinou, lidar com uma besta de mais de 2 metros não era uma delas. Somente agora ela entendeu o porquê de sua avó ter a escondido do mundo por tanto tempo, era para não ter que enfrentar coisas como aquela.
A única coisa em que podia pensar naquele momento, era a morte.
Mesmo diante de uma situação tão desesperadora como aquela, a garota não se deu por vencida, respirou fundo e tentou manter a calma, se forçando a pensar: O que minha avó faria?
“Sabe minha pequena… Sua mãe sempre foi uma mulher muito forte e corajosa, mas a verdade é que até os mais fortes sentem medo, ninguém de fato está livre de sentir medo. O medo faz parte de nós, e não há nada de errado em senti-lo, ele não é seu inimigo, muito pelo contrário, é uma arma para reconhecer o seu limite. Se nunca sentir medo, como saberá que chegou ao seu limite?”
“É isso! Eu entendi… não posso enfrentar uma criatura dessas! Estou no meu limite! Se não posso enfrentá-la… tudo o que me resta é fugir!”, concluiu, enfim.
Mesmo apavorada, ela sabia que precisaria agir e fazer alguma coisa, ou senão a morte de sua avó teria sido em vão. Então, segurou o anão pelo braço e correu o mais rápido que podia na direção contrária.
Próximos à saída, a criatura se moveu a uma velocidade incrivelmente rápida, passando por eles em um piscar de olhos e parando logo a sua frente, bloqueando a única saída que tinham. Contudo, Yara teve a brilhante ideia de deslizar por baixo da fera e enfim alcançar a saída.
Agora estando do lado de fora, a caverna começa a desabar; seus problemas tinham chegado ao fim, pelo menos por enquanto.
— Estamos vivos? — perguntou Travok, ofegante.
— É… Acho que estamos. Essa foi por pouco.
Mesmo agora, ela não parava de pensar naquelas palavras, pelo jeito como a olhou nos olhos, parecia conhecê-la de alguma forma.
— Você viu como eu acabei com aqueles dois? Era só questão de tempo para eu acabar com o grandão! Eu posso até estar velho, mas ainda estou em forma! — exclamou o anão.
— A gente não morreu por pouco! — protestou ela.
— É, mas fui eu quem te salvei. Você já imaginou se eu não estivesse lá para livrar você daquele lobo?
— E o que faria você se eu não tivesse acabado com o restante dos lobos? Onde está sua gratidão, Travok?
Somente agora Yara percebeu o quão babaca Travok era, começando a se questionar se ele realmente era só um velho rabugento que reclamava de tudo ou se ainda havia um pingo de bondade nele.
— Foda-se, que se dane essa gratidão de merda. Ah! Esse deveria ser o nome daquela coisa, gratidão de merda. Oh gratidão de merda, cadê você? — chamou, à procura de Myla.
— Aliás, você também ouviu aquele lobo falar? Por um segundo eu achei ter escutado ele falar, mas é provável que seja apenas minha cabeça me pregando uma peça…
— Falar? Desde quando lobos falam? — retrucou ele. — Essa menina só pode estar maluca, em toda minha vida eu nunca vi um lobo sequer falar.
— Tudo bem, esqueça isso. Eu vou procurar por Myla, ela não deve ter ido muito longe.
Deu-se às costas e se retirou, adentrando-se na mata escura e fria que os cercava. Por sorte os rastros do animal ainda não haviam se perdido.
— Faça o que quiser, eu não ligo.
Não demorou muito para que ela a encontrasse; estava com medo e assustada, mas quando Yara apareceu, o animal pareceu contente em ter sido encontrado e agradeceu por isso.
Assim que voltou para onde Travok se encontrava, ela o encontrou sentado em frente a uma fogueira, comendo um pedaço de carne, ou melhor, devorando um pedaço de carne. Ela esperou até que ele lhe oferecesse um pedaço, mas ele não o fez.
— Você nem ao menos vai me oferecer um pouco?
Sua barriga fez um som parecendo um grunhido de um animal, estava com tanta fome que poderia comer até uma pedra.
— Por que eu faria isso? Esse é o meu pagamento por ter salvado sua vida. Se quiser, cace sua própria comida você mesma.
— Eu já devia ter imaginado que essa seria a sua resposta, e só pra avisar, você também não teria saído vivo de lá se não fosse por mim. Por sinal, pode ficar com essa comida, eu não estava com fome mesmo…
— Tá bom, tá bom, mas só porque você insistiu. Aqui, pega logo e não me enche o saco mais — Ele a entregou um espetinho de carne.
— Eu sabia que no fundo você era legal.
Ela sorriu, agradecida.
Após isso, estando muito exaustos da batalha, eles construíram duas barracas improvisadas com alguns paus e pedras. Sua avó sempre a ensinou a sobreviver em caso de que um dia se perdesse para fora do bosque além de sua casa.
— Ei Travok, você tem família? — Antes que pegassem no sono, a garota perguntou. — Onde está sua família agora?
Provavelmente aquela era uma pergunta sensível, mas se tratando da garota curiosa que Yara era, ela não iria deixar essa pergunta passar.
— Meus pais morreram quando eu ainda era muito novo, eu tenho poucas lembranças deles…
— Ah… Me desculpe, sinto muito por seus pais — disse ela, logo se arrependendo de ter entrado no assunto.
— O que? Não! Que se fodam eles, eles eram uns babacas. Eu não sinto falta deles. Pelo menos ainda tenho meus dois irmãos, Tordek e Kathra.
Era engraçado para alguém que nunca conheceu seus pais e sempre quis os conhecer ouvir isso de outra pessoa; isso lhe fez pensar se seus pais realmente eram boas pessoas como sua avó dizia, ou se era tudo inventado, como uma história para crianças.
— E como eles são? — Yara quis saber.
— Tordek é um aventureiro colecionador, ele ama colecionar relíquias e coisas antigas; eu não o julgo, mas que futuro isso trás? Já Kathra por outro lado é uma grande guerreira, ela sim é fodona pra cacete. Você tinha que ver, a maldita é bem durona.
— E de onde vocês são?
— De uma terra não tão distante de Heredem. Bem, nós crescemos na terra de Tortland, mas depois de um tempo acabamos nos separando e aqui estou eu — disse Travok, dando um leve suspiro.
Pelo que ouvira das histórias de sua avó, Tortlant era um reino desértico, onde fazia muito calor; ao contrário de Heredem, que era o mais frio de todos os sete reinos conhecidos.
— Sabe, durante minha vida toda eu nunca conheci outras pessoas, a verdade é que eu era uma pessoa muito solitária, eu apenas não sabia disso ainda. Acredito que você também seja assim, é provável que você passe muito tempo sozinho.
— Qual é a desse papinho todo? Você queria que eu me tocasse com essa baboseira? Ora, corta essa! Eu estou bem sozinho, não preciso de ninguém para me fazer companhia — retrucou, o desconforto aparente em sua voz.
— Se você diz então… — se convenceu a deixar o assunto de lado.
A neve caía sobre o chão, o vento frio batia em seus rostos, e sem saber o que esperar do dia seguinte, caíram no sono, pensando no dia em que enfim conseguiriam alcançar seus maiores objetivos.