A Herdeira do Gelo - Capítulo 4
Atacados e encurralados por um bando de lobos, eles lutaram por sua sobrevivência; devido aos ensinamentos de sua avó, Yara percebeu que às vezes temos que fugir de nossos problemas. A verdade é que todos tem um limite, e é importante reconhecer esse limite.
Yara tivera dificuldades para dormir esta noite, não deixava de pensar no que aquela criatura havia dito e na forma como a olhou nos olhos. O que será que ela queria dizer com aquilo?
“…Você é a deusa que trará o nosso fim!”, se lembrou, ainda sem compreender o que isso significava.
Sabia que a resposta não cairia dos céus; provavelmente sua mãe era a única que podia lhe dar alguma resposta agora. Isso se ela de fato estiver no topo mais alto da montanha.
O dia amanheceu e eles já estavam mais do que prontos para continuar a sua jornada, não podiam esperar nem mais um segundo.
Ela estava séria e pensativa, já o anão irritado e mal humorado como sempre; estranho seria se ele estivesse de bom humor. Após alguns minutos de caminhada, encontraram uma bifurcação na trilha, à direita uma placa escrito “Valravam”.
— É aqui que você larga do meu pé e me deixa em paz. Se seguir a trilha da direita, dentro de alguns minutos você estará em Valravam, mas se seguir a da esquerda, chegará mais rápido ao topo da montanha, é o atalho mais rápido — disse Travok.
Nem sempre o atalho mais acessível é o melhor a se seguir, muitas vezes o caminho mais fácil para alguns pode também ser o mais difícil para outros. Entretanto, sua mãe estava a esperando, e ela tinha que a encontrar o quanto antes.
— Tudo bem, obrigada. Eu seguirei a da esquerda então — respondeu ela em tom sério; partindo para a trilha sem nem olhar para trás.
— Tá, tá, só vê se desaparece da minha frente.
Impaciente, o anão deu dois tapinhas no animal, este qual começou a andar a passos lentos e pesados. E quando estava para seguir o seu caminho, tornou a perguntar para a garota:
— Espera, mas quando foi que você ficou tão séria?
— Eu… — pensou em dizer algo, mas logo desistiu.
Sua mente parecia distante, focada em outro lugar, como se aquilo fosse a única coisa que pudesse pensar naquele momento.
— Que seja. Fique longe de problemas, menina. Você ainda tem uma longa vida pela frente — aconselhou Travok. Mesmo sabendo que uma hora ou outra ela iria acabar se metendo em mais problemas.
— Certo, eu tentarei, e espero que tenha bons resultados com suas vendas, Travok.
Yara deu um sorriso sincero e ele retribuiu.
Mesmo que não tivesse deixado isso transparecer, o anão havia gostado de ter a companhia da garota por perto. Talvez no fim das contas Yara estivesse certa, ele não era uma pessoa tão ruim.
Após se despedir de Myla e Travok, ela tornou a seguir seu caminho, rumo a seu objetivo. Não estava nem na metade da trilha, porém estava positiva o bastante de que se passasse um dia inteiro caminhando chegaria pelo menos na metade.
Horas se passaram, e de tanto caminhar já não sentia mais suas pernas, o frio estava cada vez mais intenso; estava à beira de congelar, mas mesmo com tudo isso, não parava por um segundo. Afinal, ela não podia parar.
“Preciso continuar… Não posso parar… Não posso parar…”, Ela se forçou a continuar, mesmo quando não lhe restavam mais forças.
O Frio parecia estar mexendo com sua cabeça, podia escutar vozes reverberando em sua cabeça a todo momento; elas diziam:
“Você é a deusa que trará o nosso fim!… Por trás de seu poder existe uma grande maldição, ele não trará apenas a salvação, mas também a destruição!… Você está destinada a um final trágico e não há nada que possa fazer para mudar isso!”, disseram as várias vozes.
Devido ao extremo cansaço de suas pernas, seu corpo não aguentava caminhar nem por um segundo a mais, e logo ela caiu ao chão.
Sem saber quanto tempo havia se passado enquanto ficou desacordada, a garota resolveu abrir os olhos. A primeira coisa que se pode notar é que estava sendo arrastada por algo ou alguém; a criatura era alta e tinha braços fortes. E sem qualquer aviso, sua visão se apagou outra vez.
Em mais um lampejo de lucidez, escutou vozes ao fundo; carregavam um tom grave e pesado, acompanhado de tremores.
— HAHAHA! Tiramos a sorte das grandes!
— O que você achou aí? Espere! Uma humana? Não encontramos outro desde o inverno passado! — disse uma outra voz, não tão grave como a anterior e nem tão fina.
— Idiota, tire o olho! Essa aqui já é minha! Se quiser sua humana, procure por você mesmo! — retrucou ele, a voz causando arrepios nas árvores.
“Onde estou? De quem são essas vozes?”, as perguntas não paravam de surgir em sua cabeça.
Seu corpo todo estava gelado, da cabeça aos pés, como se tivesse acabado de tomar um banho de água fria; seus braços e pernas se encontravam em estado dormente. Além das vozes e dos tremores, também ouvia o som de algo borbulhando, e com ele, o calor.
— Você sempre fica com os melhores pratos, irmão. Isso não é justo!
— A culpa não é minha se a sorte só vem até mim, quem sabe um dia você deixe de ser um azarado e tenha um pouco de sorte.
As vozes continuavam, e Yara sentiu seu sangue subir dos pés até a cabeça, e depois, apagou-se por completo.
Assim que recuperou a consciência, sentiu o cheiro desagrádavel da fumaça subir pelas suas narinas, causando-lhe uma forte tontura. Tentou se mover, mas não teve sucesso, seus braços e pernas estavam amarrados e, sua boca, amordaçada.
Estava virada para cima; quando abriu os olhos, tudo o que conseguiu ver foi o céu estrelado cheio de estrelas e algumas árvores ao seu redor.
“Espere… O que é esse calor? Tá brincando… Eu estou sendo cozinhada viva?! Não, não, não… Isso não tá acontecendo”, sua ficha acabara de cair e com ela o desespero logo veio à tona.
Começou a se debater intensamente na tentativa de se soltar das cordas que a prendiam, porém, sem resultado algum, ela logo desistiu.
“Isso não vai funcionar…”, tornou a pensar, já sem opções.
— Não se preocupe, eu irei te tirar daí — sussurrou uma voz doce e feminina em seu ouvido.
Saindo dos arbustos, uma jovem garota se revelou, esta cujo tinha cabelos longos e castanhos, acompanhados de lindos pares de olhos azuis.
Yara estava com medo, mas ao escutar aquela voz, seu coração logo se acalmou e sua respiração voltou ao normal. Nunca havia escutado algo tão belo em toda a sua vida, até o momento de agora.
— Por favor, faça silêncio. Eles podem te ouvir.
A jovem se aproximou com cuidado da garota e, com tamanha delicadeza em seus dedos, desamarrou-a. Antes que pudesse agradecer, ela falou:
— Não precisa agradecer. Deixe as explicações para depois, eu me chamo Lynn e precisamos sair daqui o quanto antes. É só questão de tempo até eles perceberem que você escapou.
No instante em que seus olhos se encontraram, Yara fora tomada por um estranho sentimento. Inexplicavelmente não conseguia tirar seus olhos da mesma, estava encantada, ou seria outra a palavra?
Se forçando a voltar para a realidade, ela logo se recordou da situação em que se encontravam, se dando conta de que não estava com sua arma.
— O que? Não! Minha lança ainda está lá, eu tenho que recuperá-la! Ela foi um presente que minha avó me deu assim completei meus doze anos de idade…
— Só, não grite. Por favor — respondeu Lynn, pausadamente.
A lança se encontrava ao lado das criaturas, que assim que Yara bateu o olho, ela não teve dúvidas, eram trolls.
Sua avó lhe dissera que os trolls eram criaturas humanoides que somente pensavam em caçar e comer carne, de preferência, carne humana. Eles possuem uma força tremenda e são monstros cruéis, mas criaturas estúpidas e burras.
É verdade que nem todo encontro com essas criaturas acaba em uma luta — embora não sejam muito inteligentes, os trolls são capazes de raciocínio —, mas é melhor estar preparado para o pior. Do contrário, sua caminhada pode não terminar muito bem.
— Tá legal, vamos lá então, precisamos de um plano. O que você tem em mente? — Ela esperou por uma resposta.
Eles estavam sentados em frente a uma fogueira acesa, conversando e dando risada enquanto contavam histórias uns aos outros. Ainda que os trolls fossem criaturas brutas, também possuíam hábitos humanos.
— E então eu falei irmão, Tom e Bert não vão acreditar no tamanho do peixe que encontrei; ele era tão grande que eu nunca tinha visto nada parecido antes, e quando eu mostrei pra vocês vocês ficaram de boca aberta! — disse, caindo na risada.
— Irmão deixe de mentiras, ele nem era tão grande assim, você só tá inventando isso para se achar.
— Não é o que pareceu pela cara que cê tinha feito, eu me lembro exatamente da cara que cê tinha feito. Eu to te falando, ele tinha no mínimo dois metros de largura!
— Essa é a quinta vez que você me conta essa história, quando é que vai me contar uma história diferente? — retrucou o troll.
Um terceiro apareceu saindo da mata, este na qual acabara de voltar de uma caça e agora carregava um javali debaixo de seu braço.
— A Humana sumiu! — gritou ele, soltando o animal no mesmo instante.
Perto dali, escondidas em um arbusto próximo, as garotas pensavam em um plano para passar pelos tais trolls monstruosos.
Podiam estar em menor número, mas ainda tinham o elemento surpresa.
— Eles sabem que estamos nos escondendo. Pode ver quantos deles são? — perguntou Yara, se inclinando para fora do arbusto para ter uma visão melhor.
— Deixe-me ver, se me lembro bem… Ah! São três, isso, são três!
Observou-se com atenção o ambiente em que se encontrava, um acampamento rodeado de árvores densas e altas.
— Eu tive uma ideia. Que tal fazermos uma armadilha? — sugeriu ela.
Nos anos em que viveu ao lado de sua avó, não apenas aprendeu a caçar como também aprendeu a fazer armadilhas e a usar de seu ambiente a seu favor. Só não esperava que tivesse que usar isso tão cedo.
— Ashla?… — falou a jovem, se distraindo por um breve momento.
— Ashla? De quem está falando?
Sabia que havia algo de estranho com aquele nome, talvez a forma com que fosse pronunciado, ou quem sabe outra coisa, mas algo lhe causava estranhamento. Ainda assim, era só um nome. Que mal traria um nome?
— Não é ninguém, esquece. Onde estávamos mesmo? Ah sim! Me parece uma boa ideia, o quão boa você é com armadilhas? — quis saber Lynn.
— Bem, se tem algo que eu sou ótima em fazer, é isso!
— Ótimo! Temos que ser rápidas. Só não se esqueça, apesar do tamanho e da força que eles possuem, eles tem um grande ponto fraco…
— O pescoço — falaram simultaneamente.
Não era como se ela já não soubesse, para ela era óbvio, o ponto fraco de um troll fica localizado na parte traseira de seu pescoço, a parte mais frágil de todo o resto do corpo.
O segredo para vencer um troll em combate está em juntar agressão e velocidade. Se tiver a chance de atacá-lo de surpresa, comece com um golpe poderoso o suficiente para derrubá-lo em um único golpe.
— O que estão esperando? Vamos, andem logo! Procurem-a! Ela não pode ter ido muito longe — exclamou o troll.
— E o que a gente ganha caso encontre-lá, irmão?
— Podem ficar com as pernas.
Confiantes de que seu plano fosse dar certo, elas montaram uma armadilha improvisada, usando a grama alta que havia por perto para amarrá-la entre duas árvores.
Tudo estava pronto, só o que precisavam fazer agora era chamar a atenção deles, e então Lynn fez:
— Ei, seus idiotas!
Estava parada atrás de uma árvore; claro, ficar tão exposta seria burrice e ela sabia disso. Precisava da atenção deles voltada a si, dessa forma Yara poderia passar por eles sem que fosse notada.
Tendo o que queria, ela engoliu em seco e aguardou.
— Hã? O que? Falou comigo? — disse um deles, logo após reparar na presença da jovem.
— Sim, você mesmo seu bobão.
— Ei! Ninguém chama Bill de bobão! — irritou-se ele, partindo para cima de Lynn. — Fique parado, almoço!
Seu corpo era tão pesado que a cada passo era um tremor, o chão tremia e as árvores balançavam, fazendo a garota ter que se agarrar a algo para não perder o equilíbrio.
A enorme criatura caminhava em sua direção furiosamente, chegando cada vez mais perto. Faltava só mais um pouco, estava quase lá, bem onde queria que estivesse. Tão perto, ele tropeçou em algo e foi direto para o chão, caindo de cara contra o solo.
— Irmão! — gritou um deles, indo ao seu encontro.
— Você irá pagar por isso, humana idiota! — disse um outro. Sua voz carregada de ódio.
Diante a oportunidade, Yara correu até sua arma sem que fosse notada, e com sua lança recuperada, preparou um ataque poderoso pelas costas de um dos trolls, mirando bem em seu pescoço.
“Eu só tenho uma chance… Uma única chance… Não posso falhar, se eu falhar…”, pensou, colocando tudo o que tinha naquele ataque.
Prestes a acertá-lo, algo deu errado, algo que não era pra acontecer; o troll que estava caído, viu seu irmão em perigo e logo gritou:
— Cuidado, Tom! Atrás de você!
No mesmo instante ele se virou e com uma cotovelada, fez-a voar para longe e acidentalmente bater em uma árvore que havia a poucos metros de distância dali, consequentemente desmaiando com o impacto.
O troll que antes estava derrubado, agora se recompôs e junto aos outros a cercaram de direções diferentes. Diante dela, os trolls riam e zombavam de sua situação, a olhavam com desprezo, como se não significasse nada para eles, nada além de comida.
Lynn logo pensou em correr, mas se recusou a fazer tal coisa e empunhou sua espada contra aquelas monstruosidades.
— Uma dos sete do esquadrão dos Cavaleiros da Avalanche, eu me chamo Lynn Heraldrys, defensora e guerreira da paz! Prepare-se para ser julgado pelos seus crimes!
— Hahaha! Que engraçado! Veja isso, parece que ela quer brincar de herói, Bert — zombou-se ele.
— E o que você vai fazer com esse brinquedinho na sua mão?
De uma certeza ela teve, era impossível ela sair dessa viva, a não ser que um milagre acontecesse.
— Eu… Eu… Calem a boca! — retrucou Lynn, e logo em seguida atacou o primeiro dos trolls, mas falhou em feri-lo.
Estavam tão distraídos que nem ao menos consideraram a possibilidade de serem atacados de surpresa. O que não sabiam, é que em uma caça quem vence não é o mais forte, e sim o mais inteligente. Quem hoje pode ser a presa, amanhã pode ser o caçador.
Em uma questão de instantes, Yara já estava praticamente em cima de um dos trolls, pronta para atacar. Ao sentir sua presença, ele ficou aterrorizado; a garota que antes era doce e demonstrava bondade, agora estava com um olhar de ódio e raiva.
Parada no ar, ela arremessou sua lança contra a criatura, usando toda a força que tinha. Assim que acertou seu pescoço, inexplicavelmente tudo ao seu redor virou gelo, inclusive o troll e a sua lança.
Amedrontados, os outros dois correram para fora do acampamento, porém assim que pisaram no lado de fora, se transformaram em pedra.
Agora que se recordou, os trolls são fracos contra a luz solar, quando estes ficam em contato com a luz, se transformam em pedra. Por isso possuem hábitos noturnos.
— Ufa… Eu sabia que daríamos conta — falou Lynn, aliviada.
Ela tentava esconder, mas estava com uma tremedeira terrível, e quem não ficaria depois de quase morrer? Por um instante pensou que partiria dessa para melhor, já até tinha aceitado que aquele seria o seu fim.
— Você mandou bem. Qual é o seu nome?
— Yara. Meu nome é Yara — respondeu com um sorrisso.
Lynn – A cavaleira