A Herdeira do Gelo - Capítulo 6
Após o acordo com Kanan, ela estava disposta a fazer parte de um iminente confronto; em troca receberia informações sobre o paradeiro de sua mãe. Agora, iria participar de um teste para descobrir se está apta para fazer a missão ou não.
— Aqui, este é o quarto de hóspedes onde você irá ficar nos próximos dias, sinta-se em casa — disse Kanan, se retirando em seguida.
— Obrigada…
Apesar de muito bagunçado, dava pro gasto. Ele não aparentava ser grande, havendo somente uma cama e uma cabeceira encostada ao lado de um armário empoeirado. Na parede, um jogo de dardos pendurado por um prego mal colocado e no canto algumas tralhas jogadas.
Assim que Kanan se retirou, a garota sentou-se na cama e se pôs a refletir sobre o seu futuro. Depois que encontrasse sua mãe, o que iria fazer? Não havia parado para pensar nisso até o exato momento.
“Pensar demais não vai me levar a lugar algum, preciso focar no aqui e no agora. O presente é a única coisa que importa.”
Sua mente estava um turbilhão, precisava de um tempo para colocar a cabeça no lugar e processar todas as coisas que estavam acontecendo ao seu redor. Primeiro descobriu que sua mãe estava na montanha, depois que algo de estranho estava acontecendo com o mundo e, por fim, pessoas começaram a desaparecer sem explicação alguma.
A fim de relaxar um pouco, respirou fundo, fechou os olhos e mergulhou-se na cama, deixando se guiar pelo silêncio.
Livre de quaisquer pensamentos, sentiu-se como se seu corpo estivesse flutuando. Podia ouvir com clareza o som dos pássaros cantando e da brisa do vento lá fora; aquilo era como música para seus ouvidos.
Alguns minutos de calmaria se passaram e, de repente, algo arrancou-a daquele estado de paz. Duas batidas na porta.
— Pode entrar! — respondeu ela de forma tímida.
Quem se revelou foi Lynn; estava com um olhar preocupado no rosto.
— Como está você? Você ainda pode mudar de ideia, sabia? Se quiser eu te ajudo a encontrar sua mãe, não tem que fazer parte desse acordo idiota.
— Você realmente me ajudaria? Nós acabamos de nos conhecer e você nem ao menos sabe de onde vim… Não seria um pouco injusto? Por que está tão disposta a me convencer? — Yara quis saber.
Ela fechou a porta com cuidado e se sentou ao seu lado.
— Você me lembra alguém que conheci. Ela era como você, os olhos, o rosto… É impossível não lembrar dela quando olho pra você.
— Seu nome era Ashla, não é? — deduziu ela.
Não houve resposta, mas seus olhos já diziam que era verdade, aqueles olhos sinceros jamais poderiam mentir para alguém.
— Eu nunca me esqueceria daqueles olhos…
— Por que está com um ar tão triste? — Yara perguntou ao notar a tristeza na feição da nova amiga. — Ei, anime-se!
— Devemos descansar um pouco, eu não sei, acho que estou muito cansada — sugeriu Lynn. — Temos alguns dias aqui pra frente, e toda a missão vai exigir muito de todos nós.
— Como eram seus pais? — perguntou Yara fugindo do assunto.
— Minha mãe costumava sempre andar com os bolsos cheios de tralhas que achava por aí. Isso deixava meu pai maluco, as coisas que ele encontrava quando lavava suas roupas — contou Lynn. — Eles costumavam brigar por causa disso, mas no bom sentido, sabe?
Lynn percebeu que era muito provável que Yara não soubesse, mas era uma questão na qual não resistiu perguntar.
— Seus pais discutiam? Quer dizer, você teve pais, né?
Um sorriso lento surgiu no rosto de Yara ao imaginar como eram seus pais, curvando primeiro um lado da boca e depois o outro. Sejá lá no que estivesse pensando, dava para Lynn ver que era algo bom.
— Eu não conheci meus pais, porém pelas histórias que ouvi eu tenho certeza de que eram boas pessoas. Gostaria de tê-los conhecido.
— Eu sinto muito por isso… Olha, eu já vou indo! E antes que me esqueça, Kanan pediu para que deixasse isso para você — colocou um pequeno pacote sobre a mesa — Coma isso se estiver com fome e me perdoe pelo incômodo.
— Lynn! — chamou-a quando estava quase saindo pela porta.
— O que foi? — perguntou.
— Obrigada. — Yara agradeceu com um sorriso gentil.
Isso deixou Lynn um pouco envergonhada, que naquele momento não soube nem como reagir e apenas sorriu de volta com um sorriso sincero, em seguida deixando o quarto.
Lynn passava um ar de pureza e sinceridade, no exato momento em que Yara a viu pela primeira vez, já tinha certeza de que poderia confiar nela.
A cama não era das melhores, mas já era melhor do que qualquer lugar onde Yara alguma vez já teria dormido.
No momento em que se deitou, caiu no sono.
— A resposta na qual procura, está dentro de você, Yara — disse uma voz familiar, em seguida se segurando em seu ombro.
— Vó? É você? — indagou a garota confusa, se virando para ver sua avó sorrindo. Logo tudo desapareceu e ela acordou.
— Isso foi um sonho? Argh… Minha cabeça dói… A resposta que procuro, está dentro de mim? O que ela quis dizer com isso? — perguntará para si própria. — Afinal, quem sou eu?
Enquanto isso, já no outro dia, sentados em uma grande e espaçosa mesa no salão principal da mansão dos cavaleiros da avalanche, se encontrava Lynn, ao lado de seus outros companheiros, em uma conversa para descobrir mais sobre a tal Yara.
— Lynn fez uma amiga! — disse Orlen, provocando-a.
— Fez, é? — Christa balançou as sobrancelhas escuras para ela.
— Não…! Nós ainda não somos amigas! — corrigiu-se um tanto envergonhada.
— Até que ela é bonitinha… Mas não faz o meu tipo, eu gosto de mulheres mais velhas se é que me entende Hahaha! — acrescentou Orlen, revirando sua cabeça para Christa.
— Babaca… Com um bafo desses ninguém irá te querer — comentou Christa, rindo. Lynn não pode deixar de rir também.
— Evidentemente, ela parece ser boa no que faz — falou Kanan, o líder dos cavaleiros. — Mas como exatamente ela te salvou?
— Ela é esperta. Não parece ser o tipo de gente que você facilmente passaria a perna. — Lynn o advertiu. — Ela me salvou de alguns trolls quando estava em perigo. Quero dizer, ela é boa com armadilhas e mesmo que eu não concorde com a ideia, ela será útil para todos nós.
Lynn por tão pouco não mencionou que a nova amiga possuía poderes mágicos, mas algo a deteve. Ela temia a maneira como Kanan reagiria se soubesse.
— Tem alguma sugestão de onde ela seja? — perguntou Orlen, olhando para seus companheiros à espera de alguma resposta.
— Eu não tenho dúvidas, pelas suas marcas no rosto, eu tenho certeza que ela também é uma sobrevivente do clã Ymawara — afirmou Christa com total certeza.
— Mas você não nos disse que não havia mais deles? — questionou Kanan, curioso.
— Eu me enganei, ainda existem alguns sobreviventes e pelo jeito ela é uma entre os poucos que sobreviveram a guerra. Me impressiono que ela tenha conseguido passar tanto tempo despercebida…
— O que mais você descobriu sobre ela, Lynn? — Kanan quis saber mais.
— Nada… Ela não disse nada — admitiu Lynn.
— Você não pode culpá-la por ser cautelosa se ela é nova na cidade e está sozinha — observou Christa. — Você está certa sobre ela ser esperta. Ela provavelmente quer saber como são as coisas na cidade antes de se abrir.
— Tem razão. Espero que ela se dê bem na cidade — respondeu Lynn.
— Deixaremos o teste em suas mãos, Christa. Faça com que ela passe no teste — ordenou Kanan.
— Entendido, capitão! — concordou.
Instantes depois, no quarto de Yara, duas batidas foram ouvidas na porta, já era manhã e a mesma já estava preparada para o seu teste. Se levantou e rapidamente foi ver quem era, abrindo a porta, era Christa, que esperava por ela.
— Já era hora, quanto tempo pretende ficar de moleza aí? — indagou ela em um tom autoritário.
— O que? Que horas são? — ainda um tanto sonolenta perguntou a garota.
— São 7:00 da manhã, é claro!
— Por que tão cedo? — Yara quis saber.
— Guerreiros de verdade não descansam, você é uma guerreira, não é? Um guerreiro só descansa quando o objetivo é alcançado!
— Bem, como deve ser. Vamos lá, eu estou preparada! — confiante, ela falou.
— É isso que eu gosto de ouvir! — disse Christa, empolgada. — Você tem mesmo o espírito de uma guerreira, quem sabe um dia você se torne parte dos cavaleiros da avalanche. O que acha?
— Não! Eu, eu… Eu não quero isso… — explicou-se.
— Tá bem, tá bem, só estava dizendo, o capitão gostou de você, mesmo que ele não admita isso.
— Depois de ajudar essas pessoas, eu só quero completar o meu objetivo — respondeu a garota.
— Ah sim, objetivos… Todos tem seus próprios objetivos, e independente de qual seja o seu, espero que consiga completá-lo — falou Christa, enfim.
— Obrigada, eu também espero conseguir.
Levaram algum tempo caminhando até um pequeno campo de treinamento que havia de trás da mansão, parecia um local perfeito para um teste, mas que tipo de teste a aguardava?
— Humm… Yara, né?! Me diga, que arma você usa para lutar? — perguntou a jovem.
— Uma lança — disse, empunhando-a logo em seguida.
— Interessante… Agora vejo o motivo pelo qual Kanan me escolheu para te testar, por sinal, a decisão foi totalmente dele — falou ela, empunhando uma lança também. — Sobre o teste, é simples, quero que você tente me desarmar uma única vez, se conseguir, passou.
— Então é isso? — questionou Yara, considerando a possibilidade de que seria um teste simples e fácil.
— Eu não disse que seria fácil, mas se quer mesmo tentar, vá em frente, me mostre do que é capaz.
Sem pensar muito, Yara atacou, mas Christa desviou de todos seus ataques e com um simples empurrão a fez cair. Não pretendia desistir tão fácil, se levantou e tentou mais uma vez, falhando novamente.
— Isso é tudo o que pode fazer? — indagou, tentando provocá-la. — Que decepção, esperava mais de alguém do clã Ymawara.
— Clã Ymawara? Eu não faço a mínima ideia do que está falando.
— Reconheci a marca em seu rosto, tenho certeza que você é do clã Ymawara. Provavelmente uma exilada. Você não sabe sobre a história de seu povo? Quem viveu com você não a contou sobre? — comentou Christa. — Deixe-me contar um pouco sobre, caso não se importe, claro.
— Por que minha avó não me contou isso? Por que ela escondeu isso? — pensativa, disse ela em voz baixa.
— Desde os tempos antigos, o clã Ymawara prosperou, todos no clã Ymawara acreditavam numa mesma coisa, mas ainda assim haviam ideais diferentes, foi aí que o clã se dividiu em duas famílias, a família da lua e a família do sol, ambas eram rivais — falou Christa, em seguida mostrando seu braço direito. — Veja, assim como você eu também tenho uma marca, mas no lugar do rosto, tenho marcas nos braços.
Marcada com as chamas de um fogo ardente, em seu braço carregava as marcas do passado, por trás delas, um grande legado.
— E o que significa sua marca? — Ela quis saber.
— Significa que… somos rivais! A marca no rosto representa a família da lua e a marca no braço representa a família do sol, compreende? Como minha rival, você precisa provar que é digna, ou então desista, se não for capaz.
— Eu não desistirei! — a lança de Yara foi de encontro a Christa, que bloqueou o seu ataque e a derrubou com uma rasteira.
— Você não está facilitando as coisas, isso funcionaria com outra pessoa, mas não comigo. Somente o treinamento e disciplina podem te garantir a vitória, percebo agora que seu treinamento continua incompleto, isso é algo na qual precisamos trabalhar — disse.
— E como posso melhorar isso? — Yara perguntou, frustrada.
— Tudo tem o seu tempo, respeite sua força. Se puder entender o limite dela, poderá ir além, mas não se deve confiar apenas na força, deve confiar em tudo que sabe ao mesmo tempo, deve fazer melhor do que isso se quiser vencer. Vamos, entre em posição! Mais uma vez!
Respirou fundo e se forçou a manter a calma, entrou em posição e começou a atacar desesperadamente, a cada golpe com a lança, era possível sentir a raiva por trás dele, ela estava em uma batalha constante contra si mesma, uma batalha que parecia perdida.
— Não está lutando comigo, está lutando com você mesma, e está perdendo. Posso ver o peso nas suas costas, mas saiba que você não foi a única que perdeu coisas, todos perdemos coisas até aqui — falou Christa, enquanto desviava dos ataques de Yara. — Não está se comprometendo, é melhor desistir.
— Você não tem ideia do que está falando! Você não sabe o que perdi, eu perdi tudo o que tinha! Mesmo assim… Eu… Eu não desistirei, não posso desistir! — gritou, deixando que toda a raiva e culpa guardada em seu interior vazasse.
As lanças se chocaram e agora as duas rivais disputavam suas forças, de um lado, Yara, a guerreira da lua, e do outro, Christa, a guerreira do sol, qual é a mais forte?
— É mesmo? Não é o que parece, você fugiu, não fugiu? Onde estava você quando seu povo precisou?
— Não!… Eu não fugi! — protestou, indo-se às lágrimas.
— Você tem ideia do peso que essas marcas carregam? Sua família fugiu, isso é o que seu povo pensa, você fugiu de seu clã, fugiu de seu povo! — exclamou, com palavras tão poderosas que a faziam pensar que era verdade.
— Mentira! — gritou a garota em seguida, com seus olhos marejados em lágrimas, lágrimas que por tanto tempo ela guardou.
— Então qual é a verdade?! — insistiu ela.
— A verdade!… A verdade é que minha avó e minha mãe fugiram para me proteger, foi para salvar todos eles!
Agora, sem pausa alguma, ela começou a pressionar Christa com seus ataques, e Christa estava com dificuldades em segurar seus ataques. Estando com seus olhos cheios de lágrimas pelo sentimento de culpa, a cada golpe dado por ela era uma lágrima que caía ao chão.
— Minha mãe!… Meu pai!… Minha família, meu povo! — Yara deu seu último ataque e a lança de Christa voou para uma outra direção. — Nós fugimos para proteger todos eles! Mas quando fizemos isso… Eles tiraram minha avó, eles a levaram de mim — exausta, ela caiu no chão e começou a chorar, com todas as forças que lhe restavam.
— Pode não ser o que gostaria de ouvir agora, mas da minha parte, eu seguirei você. Saiba que seu povo ainda vive dentro de você, não importa o que aconteça. Você me provou ser alguém forte e agora vejo que o sangue Ymawara corre em suas veias, você venceu.
Reconhecendo a sua dor, Christa a envolveu em um abraço acolhedor, dando pequenos tapas em suas costas, e então, não disse mais nada, optando por deixar que o silêncio dissesse o resto.
— Eu venci…
— Isso é ser uma guerreira. Enfrentar suas mágoas e inseguranças, tornando-as parte de sua força. Aceite onde errou e lute para melhorar, não aceite a derrota tão facilmente, derrotado é aquele que desiste antes mesmo de lutar! Seu teste, acaba aqui, Yara. Você está pronta.