A Herdeira do Gelo - Capítulo 8
Após um dia longo e cansativo, Yara adormeceu e mais uma vez acabou tendo um sonho. Nele, o choro de uma criança ressoava, e enquanto se aproximava, ficava cada vez mais alto, chegando perto podia ver uma mulher deitada no chão, com uma criança recém nascida em seus braços.
Ao lado da mulher e da criança, outras cinco mulheres mais velhas estavam presentes, todas usando vestimentas feitas de pano, até que uma delas tomou a frente e falou:
— A criança nasceu!
Olhando melhor, a garota notou que duas dessas mulheres presentes, haviam rostos conhecidos, sendo uma delas, Maibí, e a outra, sua avó, ambas mais jovens. Mas o que a garota não entendia, era o porquê de estarem em seus sonhos.
Em meio a rostos conhecidos, rostos vazios e embaçados, irreconhecíveis aos olhos de quem vê, mas ao mesmo tempo, familiar, como se algo tivesse arrancado seus rostos à força, rostos que uma vez devessem ter existido. Como em um quebra-cabeça, a sensação de que algo estava faltando era bastante presente.
O choro passou após um tempo, agora o local estava envolto por um silêncio bastante agradável, a mulher que segurava a criança, de certa forma parecia feliz, da mesma forma que todos ali presentes também estavam muito contentes pela criança que acabara de nascer.
— É um menino?… Não… Seu coração é de uma menina — disse a mãe da criança enquanto a segurava em seus braços.
— Abençoe esta criança! — clamou uma outra mulher presente no local.
— Mãe de Todos, essa criança precisa de um nome, que seu amor aqueça a vida dela, como o sol nascente aquece toda a terra! — Exclamou aquela que conhecia como sua avó, enquanto marcava o rosto da criança com o sangue de um cervo. — Diga um nome! — gritou a mesma, em seguida ergueu a criança em seus braços e a levantou sobre a luz do sol.
— YARA!!!! — ecoou uma voz.
Tal voz foi o motivo que a fez acordar de seu sonho, confusa ela se perguntou qual o significado de tudo isso, mas uma coisa era certa, o laço de Yara com sua mãe era forte o bastante ao ponto de estarem ligadas através de sonhos e visões do passado. Ela não sabia como, mas inexplicavelmente sabia que estava ligada à sua mãe e a prova disso eram essas visões e sonhos que a mesma vinha tendo.
Livrou-se de seus pensamentos, levantou da cama e se deparou que tinha algo que não estava lá antes, era um traje de inverno, com um capuz acompanhado de um par de luvas, que, por pura coincidência, servia perfeitamente em si, então percebendo que aquele traje a protegeria mais do frio do que o que estava usando, ela resolveu vesti-lo.
Assim que o tirou do lugar e o vestiu, notou também um papel virado logo em baixo de onde o encontrou. Ela não sabia quem deveria ter deixado aquilo, mas se sentiu bem ao saber que alguém demonstrou certa preocupação por ela. No papel não havia nada escrito, havia apenas um desenho de uma carinha feliz.
Yara sorriu. Guardou o papel e se retirou do quarto.
Aparentemente, todos já estavam à sua espera no portão da cidade, então se arrumou bem rápido e foi ao encontro deles. Enquanto Yara se dirigia para o portão da cidade, cruzou com muitos moradores no caminho ao passar pela pequena praça da cidade. Vários deles a cumprimentaram pelo nome Yara, e ela retribuiu a saudação com um sorriso que não era nem um pouco forçado.
Seu nome havia se espalhado rapidamente e todos já a tratavam como se ela sempre tivesse vivido naquele lugar. Yara achou isso um tanto injusto, afinal, ela simplesmente aparece do nada e de repente eles a aceitam sem nem ao menos saber de onde veio?
Passou por todas as casas então e os poucos jardins que ladeavam os limites da cidade. Até que chegou até o portão da cidade, onde todos estavam reunidos à sua espera.
Chegando ao local, notou os grandes cavaleiros usando armaduras magníficas, sendo a primeira vez vendo todos assim. Yara ficou impressionada com a tamanha grandiosidade deles.
Kanan por sua vez usava uma armadura bastante chamativa, de cor vermelha com detalhes brancos, por outro lado Orlen usava uma armadura mais robusta, coberta por peles de animais para o proteger do frio, enquanto Christa possuía uma armadura mais simples que as demais, cobrindo apenas um de seus braços, também acompanhada da cor vermelha. Jay e Jin vestiam armaduras leves e escuras, como a de um assassino, e por fim, Lynn, com uma armadura igualmente chamativa, de cor branca e detalhes azuis e amarelos.
Além do mais, eles carregavam armas, Kanan, o Guardião, carregava um grande escudo e uma espada média, Orlen, o Destruidor, carregava um forte e destrutivo martelo, enquanto Lynn a Guerreira, carregava uma poderosa espada.
— Você chegou, estávamos à sua espera — falou Kanan de braços cruzados.
— Senhor Kanan… Bom dia! — respondeu Yara, ainda sem saber como o chamar.
— Só Kanan, por favor — corrigiu. — Me deixe esclarecer algumas coisas a vocês, nós iremos a pé, não queremos chamar a atenção do inimigo, então… Estejam prontos para morrerem congelados no frio.
— HAHAHA! Você está supondo que Orlen o destruidor irá morrer de frio? Mas não mesmo! Nada pode superar a força de uma muralha, nem mesmo o frio! — disse Orlen, demonstrando muito orgulho.
— Vejo que serviu perfeitamente em você, Yara. Foi eu quem fiz, eu aprendi a costurar quando pequena, com minha mãe, e achei que você precisaria se proteger melhor do frio também… Aceite como um presente, entretanto peço desculpas caso não tenha gostado — falou Lynn um pouco nervosa e insegura.
— Obrigada, é muito confortável e quentinho, mas… Como adivinhou o meu tamanho? — Yara quis saber.
— Bem, foi só um palpite. — Lynn sorriu.
— Devo concordar que você é realmente boa com palpites…
— Se eu tiver que seguir a sombra imunda deles daqui até o fim do mundo, eu seguirei. Não descansaremos até que encontremos os desgraçados que levaram Eris e os façamos pagar — falou Kanan, determinado.
— Capitão… Não se esqueça que o nosso real objetivo é encontrar Eris e não iniciar uma guerra, lembre-se que não estamos preparados para algo assim — comentou Lynn, preocupada com sua determinação.
— Eu sei, não me diga o que eu já sei! — retrucou, não se importando em parecer arrogante.
— Mantenha a calma, nós queremos tanto quanto você que o culpado disso tudo seja punido, mas no momento as prioridades são outras — Orlen interviu-se, ficando do lado de Lynn.
— Ei! — Manifestou-se Christa chamando a atenção de todos.
— O que foi? — perguntou Yara.
— Só… Não morram, idiotas.
— Certo, voltaremos vivos e traremos seu companheiro de volta, eu prometo, você tem a minha palavra — confiante, a garota falou com um grande sorriso no rosto.
Christa sorriu de volta. Em seguida se aproximando de Yara, estendeu seu braço para um toque de mãos e sem dizer nada apenas tocaram suas mãos, como o firmamento de uma promessa, e antes que se retirassem, fez um sinal discreto com as mãos para Orlen, este na qual o fez de volta.
Como já era de se esperar, os cavaleiros Jin e Jay se retiraram do local junto a Christa, novamente sem dizer nada, fazendo do silêncio suas palavras.
— Abram os portões! — gritou Kanan.
Os portões se abriram e o grupo partiu, deixando a cidade nas mãos de Christa, a quem Kanan parecia depositar grande confiança.
Rumo a oeste de Valravam, caminhavam sobre a neve. Yara se mantinha inquieta durante todo o tempo, observando Lynn de relance; percebeu o quão belo eram seus cabelos quando voando ao forte e frio vento, assim como seus olhos que de tal maneira a deixavam encantada.
No momento em que seus olhares se encontraram, fora tomada por um forte e estranho sentimento, não conseguia tirar seus olhos dela, e foi então que, olhando para Lynn, ela falou a primeira coisa que lhe veio à cabeça:
— Seus olhos são belos… como o mar. Distantes… mas vivos.
Ao ouvir isso, as bochechas de Lynn ganharam um tom avermelhado. Não sabia como reagir, então escondeu o rosto, acreditando que não fosse notar.
— Me desculpe! Eu, eu… eu não queria! — disse Yara, buscando as palavras certas para usar na tentativa de se explicar. Imaginando que tenha dito algo de errado.
— Tá tudo bem, é só que ninguém nunca me falou isso, é a primeira vez que ouço alguém dizer algo sobre meus olhos — um tanto envergonhada, mas ainda contente, Lynn falou. — Mas você acha mesmo?
— Sim, eu acho. Sabe, você é realmente bonita.
— Obrigada, isso foi muito gentil. Irei lembrar disso — agradeceu com um sorriso no rosto. — Ei Yara, você alguma vez já teve um amigo em sua vida?
Certamente não lhe ensinaram o significado da palavra “amizade”, sua avó lhe dizia que não podia conhecer outras pessoas, pois era diferente. Mas agora, ela conheceu alguém na qual poderia compartilhar suas tristezas e alegrias.
— Eu… Eu não sei. O que é isso?
— Um amigo…? É como um irmão, que mesmo nos tempos difíceis, estará lá por você, um amigo de verdade é eterno e sempre quando precisar ele irá lhe estender a mão. Sabe, Kanan e Orlen também são meus amigos, eu confio neles e eles confiam em mim. Posso confiar nas escolhas que faço, mas nós não sabemos como vai ser, então eu prefiro confiar nas escolhas dos meus amigos.
— E o que um amigo faz? — quis saber.
— Os amigos se ajudam, independente da situação ou circunstância, e o mais importante, um amigo não deve abandonar outro amigo, caso contrário, não são amigos de verdade.
— Lynn, eu quero ser sua amiga! — disse Yara em um tom alegre.
— Yara… — Lynn virou o seu olhar, que antes estava voltado para Yara, e tentou esconder o seu rosto, que naquele momento estava visivelmente corado e envergonhado.
— Dessa forma, quando você me salvar de ser devorada por trolls outra vez, eu não terei que te agradecer, afinal, os amigos se ajudam sempre, né? — Yara sorriu.
— É verdade, você tem razão — assentiu ela, caindo em risos em seguida. — Você é mesmo adorável Yara, e se quer mesmo saber, eu adoraria ser sua amiga.
— Isso… Significa que somos amigas agora?
— Sim, amigas — respondeu, também não deixando de sorrir.
— Espere! Eu farei algo! — Yara se virou por um instante e momentos depois reuniu algumas folhas das árvores que haviam ao redor, usando-as para algo.
— O que é isso? — Lynn quis saber.
A garota havia juntado pequenas folhas que teria encontrado em algumas árvores, e com isso fez um anel improvisado de folhas.
— É para firmar nossa amizade, enquanto estiver usando isso, eu sempre estarei com você, mesmo estando longe — explicou ela, colocando o anel no dedo de Lynn.
— É simplesmente lindo… — responderá a mesma, se encantando com a simplicidade e beleza do anel.
— Fico contente que tenha gostado.
Continuaram a caminhar, até que algo pareceu incomodar Kanan. Ele sabia que uma hora ou outra, ela perguntaria, e Yara já suspeitava que estivesse escondendo algo, algo da qual não queria que a garota soubesse.
— Eu vi os cartazes, por que querem implantar um toque de recolher na cidade? Algo mais do qual eu não saiba está acontecendo? — perguntou, parecendo estar em um interrogatório.
— Existem coisas que certas pessoas não podem saber — respondeu Kanan. — E pra início de conversa, não era nem pra você estar aqui.
— Ele tem razão, menina — concordou Orlen.
— Tudo bem, eu entendo — assentiu Yara, na defensiva.
Kanan e Orlen, que estavam à frente de Yara, de repente, pararam. Alguns segundos de silêncio se passaram e após algum tempo de tensão e suspense no ar, Kanan chamou a atenção de todos e falou, surpreso:
— Minha nossa, vejam isso!
Quando se depararam com o que ele havia encontrado, puderam notar que alguém tinha passado por ali, pegadas com o tamanho duas vezes maior que a de um humano normal podiam ser vistas lá.
— Foi aqui! Foi aqui que encontrei o capacete de Eris! Mas… Algo parece errado… Ele não está mais aqui. Talvez alguém não queria que seguíssemos seus rastros e então tentou apagá-los completamente, ainda assim, se esse fosse o caso, por qual motivo deixaram essas pegadas? — perguntou Lynn, pensativa.
— Argh… Orcs imundos, eles passaram por aqui, eu já deveria imaginar — disse Kanan, emanando puro ódio e desprezo.
— Capitão, eles não devem ter ido muito longe, devemos segui-los? — sugeriu Orlen.
— Pode ser uma armadilha… Mas que outra escolha nós temos? Eris não deve ter muito tempo, precisamos ir o mais rápido possível — respondeu ele.
— Se demorarmos demais, as pegadas serão cobertas pela neve, vamos! Temos que ir! — falou Lynn, apressando o passo.
Percebendo que já não tinham muito tempo, decidiram seguir as pegadas dos Orcs o quanto antes. Passadas algumas horas caminhando, eles notaram que as pegadas estavam desaparecendo e pouco a pouco ficando quase imperceptíveis aos seus olhos, mas devido ao que Yara aprendeu com sua avó enquanto caçava, era fácil de se notar os pequenos resquícios dos rastros deixados para trás.
— As pegadas estão sumindo! — gritou Kanan, preocupado com os rastros.
— Não totalmente. Veja, aqui ainda há alguns resquícios dos rastros — apontou Yara, depois revirando o chão atrás dos rastros.
— O que? Deixe-me ver — inclinou-se Orlen, se forçando a enxergar alguma coisa. — Espera… Eu não consigo ver nada! Tem certeza de que está realmente vendo algo?
— Quando pequena, minha avó me ensinou a caçar, então pra mim não é tão difícil quanto parece — comentou, relembrando dos momentos ao lado de sua avó.
Lynn também olhou, mas assim como Orlen, não conseguiu ver nada. Kanan abriu a boca para dizer algo, mas ela o interrompeu.
— Ok, isso explica um pouco as coisas — respondeu Lynn, impressionada. — Você é mesmo incrível, Yara…
— Você tem sido mais útil do que eu esperava, graças a você nós podemos encontrar Eris, e então ele irá te agradecer pessoalmente por isso — falou Orlen.
— Um amigo de uma amiga também é meu amigo, eu darei tudo de mim para salvar um amigo! — disse Yara, mais uma vez se mostrando muito determinada a concluir sua missão, em seguida tomando a frente. — Os rastros continuam por aqui, vamos!
Desta vez, ao passo que caminhavam seguindo os rastros deixados pelos Orcs, foram pegos por uma forte e intensa nevasca, que de tal forma dificultava a visão dos mesmos, sendo impossível enxergar qualquer coisa num raio de um metro.
— Continue em frente! Fiquem juntos! Não podemos nos perder! — Kanan tomou a liderança.
Dadas as mãos, eles fizeram uma corrente humana para que não se perdessem na nevasca, com Yara na frente, depois Kanan, Orlen e por último Lynn.
— Não consigo mais enxergar os rastros! A nevasca está forte demais… — Yara tentou falar, mas sua fala foi interrompida.
Antes que pudesse terminar de falar, a nevasca se dissipou, e nesse momento três silhuetas monstruosas se revelaram a sua frente, eram os Orcs, com uma aparência incrivelmente assustadora e intimidadora, um deles se aproximou e falou algo em uma língua até então desconhecida pelos humanos:
— Ne nuk jemi armiqtë tuaj të vërtetë.
Todos ficaram assustados, mudando suas expressões para uma expressão de medo. Logo após ouvirem o Orc, Yara respondeu:
— Nós não somos seus verdadeiros inimigos…