A Vingança da Meia-Noite - Ato 1
Anos atrás, num dos numerosos e indistintos bairros de variadas periculosidades de São Paulo, aconteceu um crime. Para as estatísticas, este ato ilegal foi apenas mais um número a ser incluso no noticiário televisivo dali há umas semanas, quando fosse reportado a frequência de mortes ocorridas no mês passado.
A rotina seria essa: A voz séria e impassiva do âncora de cabelos grisalhos que já falava a mesma espécie de notícia há anos relataria mais uma trágica — foco nessa palavra pois ela seria repetida inúmeras vezes — morte de um adolescente nas mãos de outro, igualmente em uma escola pública como tantas outras. Ele então tentaria de uma maneira honestamente patética atribuir a morte à alguma crise social atual, atiçando o público a se revoltar de alguma forma.
Em seguida, enquanto a foto do defunto, provavelmente uma de seu R.G., ficaria em exposição por vários minutos durante discussões do âncora e co-âncora sobre a crescente criminalidade e tantos outros problemas que o governo, seja lá qual for a esfera de poder que escolhessem na hora, deveria resolver. Obviamente, com um gancho desses já feito, não perderiam a chance de tecer críticas ao chefe de tal governo, tal como se miraria golpes num saco de pancadas.
A população, já anestesiada e, infelizmente, acostumada com essa espécie de notícia, provavelmente iria ignorar completamente a mera menção do assunto, como se uma morte, a antítese da tão preciosa vida, fosse apenas barulho de fundo na existência dos telespectadores.
Se este singelo extinguir de uma chama vital fosse relacionado a outros fatores, talvez chamasse mais atenção. Caso fosse um adolescente com um tom específico de pele, um membro de algum movimento específico, filho de uma celebridade ou parente direto de um figurão do governo, provavelmente essa morte criaria um alarde maior.
Mas não, era só um pobre ferrado desconhecido que não tinha nada de mais. Literalmente um número medíocre e insignificante na sociedade, que morreu nas mãos de outro igual a si, com aspirações pouco mais violentas. Não haveria grandes discursos em rede nacional nem a comoção de milhares de internautas hipócritas criando hashtags em memória do morto.
Todos os dias acontecem coisas assim, mortes sem sentido de pessoas invisíveis, não as de nomeadas como tal, mas as realmente assim, então, por que esta seria diferente? Seu destino era ser obscurecida em meio ao ruído frenético de centenas de milhares de informações por segundo. E a vítima? Bem… Ela não teria qualquer fala, afinal, mortos não contam histórias, correto?
Ao menos é isso que o público gostaria que tivesse acontecido. A expectativa passou radicalmente longe da realidade e o que deveria ter ocorrido não se tornou fato, mas sim mera ficção esperançosa, e agora, lhes contarei o quão imenso foi o preço imposto ao infeliz que teve o azar de brincar com esta vida.
A história tem início em uma escola estadual, daquelas que usualmente tem uma reputação um pouco melhor que as municipais já que o ensino é mais uniformizado.
Os envolvidos neste evento são vários, destes quais mencionarei ao longo desta narrativa, porém, os atores principais desta tragédia são dois.
De um lado, temos o seu típico adolescente mais retraído socialmente, altamente focado em seus estudos com o intuito de passar no vestibular e ir cursar o ensino superior de medicina numa faculdade pública, pois sua família nem de longe tem o dinheiro suficiente para lhe pagar uma, seu nome é João. O clássico aluno “modelo” que até mesmo já possui algumas premiações escolares e iniciações científicas.
Do outro, o seu antônimo em todos os sentidos. Um garoto aproveitando ao máximo a sensação de invencibilidade que a juventude proporciona, rodeado de colegas com os quais partilha alguns vícios destrutivos por ter sido iniciado ao cigarro, bebida e sexo logo cedo. Passando pelas fases obrigatórias através de auxílio estatal e conhecido como um problema social, o clássico aluno “má influência”, David.
Porém, meus caros leitores, devo-lhes pedir perdão de antemão. Adoraria ser um narrador talentoso capaz de explorar múltiplos pontos de vista sem perder o andar da história como um todo. Infelizmente, isto não está dentro de meus poderes, e por tal, acompanharemos as coisas a partir da perspectiva de João.
Felizmente, entretanto, graças a minha posição e visão… Digamos… Privilegiada dos fatos, poderei introduzir os acontecimentos de uma forma mais intima. Obviamente, ao dizer isso, já posso afirmar que obtive a autorização do próprio morto para incorporar o seu ponto de vista. Agora, deixo de ser este que vos fala e me torno a vítima, sou João, no dia de sua morte. Isso dito, espero que este seja um bom entretenimento.
Os sonhos sempre foram uma grande potência mental para mim, eles sempre foram aquilo que me movimentara e me instigara a buscar a excelência acadêmica. Sonhava em sair da casa onde morava, me tornar um médico, construir uma carreira e conquistar riqueza para tirar meus pais dali.
A ideia era uma obsessão, uma meta definitiva que estava determinado a alcançar, independente do sacrifício. Para tal, após decidir seguir essa árdua jornada, implementei a regra de eficiência temporal máxima. Cada segundo era precioso para o meu desenvolvimento, por meses treinei dormir o mais rápido que pudesse para atingir o melhor sono possível.
Dormia, cronometrado, oito horas por noite, das dez as seis da manhã. Não precisava de alarme devido a rotina, por isso, quando batesse o horário, meu corpo despertava por si só, isso, porém, não me impedia de checar meu relógio digital comprado no camelô devido a uma paranoia de perder tempo. Almejava com tanto fervor este objetivo que era capaz de sonhar, vividamente, meu futuro durante o sono.
Me via saindo de um escritório após preencher alguns relatórios relacionados a uma longa e complexa cirurgia recente, em direção ao meu carro do ano que aguardava no estacionamento dos funcionários. Meu jaleco branco sobre minha camisa social azul claro com gravata de tom marinho, sem decorativos, acompanhados de uma calça preta e sapatos da mesma cor devidamente engraxados. Fisgava minhas chaves do bolso, abrindo a porta com facilidade antes de ligar a máquina, o motor silencioso enquanto dirigia para minha casa nova em um bairro nobre da metrópole paulistana. Era maravilhoso a visão.
Acordei, as fracas luzes do sol penetrando através das frestas da minha janela. Os raios luminosos atingiam com precisão minhas pálpebras, dando a impressão perpétua de que já era bem mais tarde. Meu braço disparou para o pequeno e velho criado mudo ao lado da minha cama, alcançando o dispositivo e apertando um botão. Um fraco brilho azulado alumiou a escuridão do meu quarto, em seu display indicando que eram exatamente seis da manhã, respirei aliviado, um pequeno sorriso surgindo no canto direito da minha boca.
“Veni, vidi, vici.” Repeti mentalmente o mantra vitorioso, me levantando. Em seguida, dei início a minha rotina matinal tão cronometrada quanto meu sono. Fui ao banheiro, já levando comigo o uniforme escolar para me trocar, ao chegar, escovei os dentes, lavei o rosto e rapidamente me vesti para o dia.
Segui para a cozinha, onde acendi o fogão para aquecer a água do café. Era um hábito familiar o café da manhã onde todos faziam questão de tomar juntos e, mesmo quando alguém não podia estar, os remanescentes tomavam unidos. Hoje, contudo, era um dia anormal na rotina, afinal, ambos meus pais tinham de ir ao trabalho mais cedo, cada qual com seus respectivos problemas para resolver, isso significando que hoje comeria sozinho.
Por volta de cinco minutos depois, já havia passado o café e feito meu pão chapado com presunto e queijo. Sentei-me após dar graças e comi, devagar, ponderando as tarefas que o dia iria trazer. Iria para a aula durante a manhã, após o almoço, descansaria durante uma hora, depois, faria exercícios para aquecer o corpo e agitar a mente e então, estudaria o conteúdo do cursinho online até as nove, depois, passaria minha última hora livre lendo alguma coisa ou assistindo a mais um episódio do seriado médico que gostava.
Até onde podia me lembrar, ou conferir no meu caderno de anotações após a refeição matinal, nada de extraordinário estava nos planos, tudo seguiria nos conformes rotineiros aos quais estava tão bem acostumado. Com meu dia planejado, peguei minhas coisas e, após trancar a casa, fui para a escola.
O trajeto era bem simples, ainda que longo, pegava apenas uma condução, porém, o ônibus demorava quase uma hora para chegar a um ponto próximo ao meu destino, de lá, ainda tinha de andar mais cinco minutos. Fui até o ponto de ônibus perto da minha casa e, algum tempo depois, o transporte chegou. Adentrei o veículo que, como esperado, estava relativamente cheio e, após passar a catraca, me guiei entre os tantos passageiros até achar um lugar ao lado da janela.
Coloquei a mochila no meu colo, puxei o celular e fones de um dos bolsos e, momentos depois, escolhi um audiolivro sobre a revolução industrial que estava na minha lista de estudos. Daí para frente, o tempo passou rápido. A uma hora pareceu voar enquanto focava minha atenção nas palavras do narrador, de tempos em tempos checando o indicador digital no teto que afirmava qual era o próximo ponto.
Ao ver que havia chegado o momento de descer, me ergui junto com mais uma meia dúzia de alunos perdidos que pegavam essa mesma condução e, instantes depois, estava cruzando as ruas em direção à instituição de ensino. A passos rápidos, andei até uma curva e virei, caminhando alguns metros antes de entrar numa viela que dava diretamente para a portão do lugar.
Era uma curta escadaria por onde tinha o costume de passar. Seus degraus, originalmente cinzentos, eram quase pretos, desfazendo-se devido aos inúmeros anos sem qualquer espécie de limpeza. Nas paredes, manchas enegrecidas de infiltração acompanhado de musgo, dando ao ambiente um aroma de úmida podridão.
Segui pelo caminho, fones em meus ouvidos, veloz o meu andar diante da breve rota. Usualmente, ali sempre jaziam alguns outros transeuntes, subindo ou descendo pelas escadas ao compasso de conversas quase sempre idênticas. Era curioso ver como as pessoas eram capazes de reclamar das mesmas exatas coisas todos os dias sem enjoar.
Atravessei a viela em questão de momentos, logo chegando a frente da escola. A rua estava lotada, carros, ônibus e vans passando apressados, abrindo portas rapidamente para deixar seus passageiros uniformizados por ali. Por todos os cantos do ambiente, se via aglomerações, os famosos “grupinhos”, de alunos conversando e se reunindo antes de decidirem se dirigir à instituição.
Se via gente de todos os tipos, gostos e estilos. Tinha os que, como eu, andavam apenas com o uniforme escolar, carregando mochilas como a grande parte da multidão, outros, porém, adicionavam acessórios. Uns usavam decorações na mochila, outros usavam blusa mais chamativa, corte de cabelo diferenciado, maquiagem e tantas outras variações estilísticas.
Infelizmente, não era difícil de encontrar o grupo de alunos mais… Problemáticos. Dispostos em alguns grupos com carros tocando som em alturas dolorosas que até meus tímpanos eram capazes de captar por através do fone com volume alto. O gosto musical não era dos melhores, com letras decadentes e fortemente pejorativas, abusando da utilização de xingamentos e referências sexuais explícitas.
Os membros de tal aglomeração, além de serem muito barulhentos, também costumavam provocar praticamente todo e qualquer aluno que pensasse em entrar para aula. Para as garotas, assovios e comportamentos que os faziam parecer maníacos em cio, para os garotos, xingamentos e intimidações com números. Alguns sortudos conseguiam passar despercebidos e escapar da vigília estrondosa destes indivíduos.
Geralmente, eu era um deles, um dos sortudos, passava tanto tempo com a cara nos livros que muitos alunos sequer sabiam que eu existia. Por vezes, eu era capaz de passar semanas sem ser chamado até que um professor decidisse que era uma boa ideia dizer para toda a sala o grau de excelência dos meus esforços acadêmicos.
Caminhei em direção ao portão, tentando me infiltrar em meio a multidão de estudantes uniformizados. Tomei o cuidado de me manter um tanto mais longe do centro, se estourasse alguma encrenca, ainda conseguiria escapar dali antes que o problema me atingisse. Felizmente, minha cautela teve bons resultados, não demorou muito para que alguns dos alunos começassem a brigar com os encrenqueiros em retaliação.
A troca violenta começou com dois participantes, mas logo escalou para quase vinte em um piscar de olhos. Podia ver os alunos começarem a se incomodar mais e mais, alguns sendo empurrados, outros tropeçando e isso não demoraria para chegar em mim. Apertei o passo e quase sai em disparada, rapidamente escapando da comoção e adentrando a estrutura.
Após subir três lances de escadas e atravessar um corredor disposto em L, cheguei na minha sala, 3° ano A, a sala dos alunos inteligentes , que automaticamente implica em aqueles que tiram as melhores notas e equilibram a média das notas ruins produzidas pelas outras três salas de 3°s. Dessa forma, a verba da escola não era reduzida por conseguir garantir um bom desempenho de todos os alunos.
Contudo, ainda que esta fosse a sala dos melhores resultados, não implicava que existiam apenas os melhores alunos. Havia também seus encrenqueiros que formavam a turma do fundão, daqueles que você via no noticiário que eram capazes de puxar facas e atirar cadeiras no professor se não gostassem de sua fala.
Nos primeiros instantes, por ter chegado primeiro, a sala permaneceu vazia, um raro silêncio se estabelecendo no lugar. Os alunos mais estudiosos logo chegaram, falando baixo ou talvez até nem isso, se sentaram e prolongaram o silêncio por mais um tempo. Em seguida, o professor chegou, desejando um bom dia a turma, ao qual respondeu, eu incluso, sem muito entusiasmo.
Um alto e estridente alarme soou pelos corredores. O sinal de fechar dos portões. Com o silêncio rompido pelo som, a algazarra de centenas de passos desordenados logo acompanhou o barulho de inúmeras vozes que conversavam alto ou até mesmo gritavam enquanto se dirigiam as salas. Senti meus ouvidos protestarem contra a poluição auditiva.
Confesso, sempre fui daqueles caras ranzinzas que detestam muito barulho. Me acostumei a muito tempo com o silêncio da constante concentração dos estudos que eram apenas rompidos pelos ensinamentos de vídeo aulas e áudio livros necessários para os testes de vestibular.
Por hora, não tinha tempo para gastar com os impulsos da adolescência, havia muito a ser feito para conquistar meu objetivo e cada instante era precioso. Se não fosse pelo fato que o ensino médio era requisito obrigatório para cursar o superior, provavelmente nem sequer estaria estudando neste lugar.
Alguns momentos depois, enquanto a chamada corria pelos nomes dos alunos, a turma do fundão enfim resolveu anunciar ao mundo sua presença. Seis garotos acompanhavam seu líder, David, que já possuía uma reputação… menos que legal. Rumores corriam soltos sobre seu envolvimento com drogas, alguns até afirmando que o mesmo estava ingressando no narcotráfico, porém, nada que houvesse sido comprovado pelo corpo docente ou pela polícia que rotineiramente realizava buscas dentre os alunos.
— Atrasados de novo? — O professor, um homem careca que usava óculos e tinha uma barba preta que vestia uma camisa social, jeans e sapatos marrom escuros comentou.
— Foi mal aí profê — David, um garoto franzino com uma expressão irritadiça em seu rosto, olhos avermelhados e, para minha surpresa, leves tremores nas mãos, respondeu — Tava conversando com a inspetora, aí meus parça colo junto e nós subimos, mal o atraso.
Ele vestia o uniforme que parecia um tanto largo demais para si com uma mochila igualmente grande em excesso. Parecia que ia tombar a qualquer momento, mas não o fazia. Com exceção das mãos, seu corpo permanecia perfeitamente imóvel, como se ele não sentisse o peso que carregava. Óculos que pareciam olhos de mosca o decoravam.
— Apenas se sente, temos muito conteúdo a ver hoje.
— Beleza — o garoto se virou para os companheiros — Vamo cambada.
Alguns acenaram com a cabeça, outros afirmaram com a voz, mas no fim, todos foram para os fundos da sala, e assim, a rotina escolar progrediu como de costume. Quando David passou ao lado da minha carteira, senti um fétido odor exalando de seu corpo. Minha mente rapidamente conectou os pontos e chegou a perigosa conclusão, o garoto estava sobre o efeito de drogas, não era uma boa ideia ser pego perto dele.
Mentalmente, tomei nota de permanecer o mais longe dele possível. Não sabia o que ele havia utilizado, seus efeitos e ações eram imprevisíveis e um verdadeiro risco à qualquer um, tanto para si quanto para os outros, portanto, me afastar do garoto era a melhor opção.
Até a hora do intervalo, o tempo correu tranquilo. Os alunos conversavam durante a aula, atiravam papel e pedaços de borracha uns nos outros, xingavam, contudo, isto já era rotina que todos, incluso professores, estavam acostumados. A essa altura, já tinha certeza de que os profissionais sequer se importavam com o barulho, reclamando e pedindo silêncio apenas para manter sua imagem e tradição.
No intervalo, desci ao refeitório para comer a gororoba que a instituição tinha coragem de chamar de almoço que hoje consistia em arroz, feijão e almôndegas com gosto de qualquer coisa menos carne acompanhado de um copo de suco de uva com açúcar demais para ser saudável. Após vinte minutos, terminei a refeição e, ao soar do sinal, subi em direção a sala, parando apenas para ir ao banheiro após sentir o forte e inescapável chamado da natureza.
Ao me aproximar da porta para abri-la, ouvi alguns sons molhados abafados vindos do lugar acompanhados de baixos gemidos e respirações ofegantes. “Puta merda… Tinha que ser justo aqui!? Tem uns três outros banheiros para você fazer isso!” Pensei, frustrado. Meu estômago, porém, não queria conversa, e começou a doer, fazendo-me segurar a barriga “Porcaria de comida! Não tem jeito, vai ter que ser aqui mesmo!”.
Um dos problemas correntes na escola era de que os alunos mais corajosos usavam salas vazias, banheiros e qualquer outro lugar fora de vista dos monitores de corredor e as câmeras para ter sexo. Apenas de ouvir o barulho repetitivo e molhado, sabia que se tratava do mesmo, porém, não tinha outro banheiro próximo o bastante que pudesse alcançar, por isso, respirei fundo e esperei que eles ao menos estivessem dentro de uma das cabines do banheiro.
Abrindo a porta com o máximo de discrição, adentrei o lugar e, para minha sorte, os barulhos vinham do compartimento mais ao fundo. O pungente aroma de urina e feromônios intoxicando o ar. Sem pensar duas vezes, fui ao primeiro, o mais próximo a porta, abri e fiz minhas necessidades o mais rápido que fui capaz. Foi, porém, no momento em que sai para lavar as mãos que tudo começou a dar muito errado.
Abri minha porta e, simultaneamente, a última cabine irrompeu com um estrondo enquanto dois corpos seminus de calças arriadas, suas genitálias expostas, caíram de costas no chão, gritando de dor e susto. Imediatamente olharam ao redor em busca de testemunhas e, obviamente, não demoraram nem sequer cinco segundos para me encontrar com uma cara surpresa, parado feito um idiota enquanto ainda segurava a maçaneta da porta.
Os indivíduos em questão eram David e uma garota de um outro terceiro ano. A garota rapidamente cobriu seu corpo, completamente envergonhada enquanto gritava.
— DAVID! FAZ ALGUMA COISA!
O garoto sob efeito de entorpecentes, sequer hesitou, seus olhos avermelhados cravando em minha figura como um predador que avistou uma presa. Se ergueu tão rápido quanto um felino e, ainda de calça caída na altura da coxa, correu na minha direção, erguendo a roupa a cada passo, sacando um canivete do bolso. O banheiro não era muito grande e, graças ao choque de toda a situação, não pude agir rápido o suficiente.
David cruzou a distância entre nós em questão de segundos e, quando finalmente pude reagir, dando um passo desesperado em direção a porta, ele me alcançou e fincou o metal nas minhas costelas. Senti a ferida arder como se em brasa, meu mundo se tornando mais lento enquanto meu cérebro tempesteava em busca de alguma solução.
Por reflexo, virei o corpo e acertei uma cotovelada no nariz do garoto que largou a arma enterrado em minhas entranhas. Tentei me desvencilhar e escapar, sequer me dando o luxo de tentar tirar a lâmina dali pois sabia que se tentasse, além de provavelmente sofrer uma hemorragia, daria chances ao oponente de realmente me finalizar. Essa decisão, porém, foi meu erro fatal.
Ao tentar virar, a mão do inimigo alcançou-me outra vez, agarrando o cabo da lâmina antes de a puxar com força, abrindo um rasgo na lateral do meu corpo que chegou quase até minha coluna antes da lâmina se partir. Eu caí para trás, de volta para a cabine. Senti um baque do lado da cabeça. Tudo rapidamente se tornou frio. O mundo perdeu suas cores e minha visão lentamente escureceu, as trevas se arrastando no canto dos meus olhos e devorando a luz que deveria ser capaz de ver. Nos últimos instantes que antecederam a escuridão completa, ouvi gritos abafados, distantes, mas definitivamente desesperados.
Não conseguia entender exatamente as falas, mas sabia que a garota estava questionando os atos do rapaz. Meu corpo pesava, um grande sono se apoderando de mim. Queria resistir! Almejava lutar e sair desta situação! Mas o físico já não respondia meus desejos e a mente, seus pensamentos turvos e confusos não me permitia clareza o suficiente para reagir a mais nada. Estava com sono, cansado.
Vi uma grande mancha negra se estendendo em minha camisa e no chão. “Ah… Meu sangue… Que coisa… Eu vou morrer…” Meus pensamentos fragmentados ainda expressaram uma derradeira coerência. Minha existência fluiu feito um filme diante dos olhos e, sendo bem sincero, achei a coisa toda uma piada.
Tanto tempo me esforçando, obcecado com alcançar a prosperidade e realizar meus sonhos, apenas para morrer, esfaqueado no banheiro de um lugar que eu frequentava apenas por pura obrigação. “Haha… Que jeito… Merda de…” E então, tudo escureceu. O silêncio se instaurou e assim, findava essa que fora a vida de João.
Sem uma batalha grandiosa, esforço monumental ou qualquer espécie de glória. Morto a facada por um drogado espalhafatoso que caiu em meio aos seus atos libidinosos. Abatido como um rato em um homicídio no banheiro. Não mais capaz de mudar o destino dos pais, estes que quando descobrissem o ocorrido ficariam desolados.
Uma vida de poucas riquezas e alegrias, de constante batalha por um futuro que agora nunca teria a chance de acontecer. Tudo isso por causa de um imbecil que provavelmente escaparia de alguma punição verdadeiramente significativa por ter apenas dezesseis anos. Que coisa engraçada, não acham meus caros leitores?
Com a capacidade e idade para arranjar e usar drogas, transar e até mesmo de matar, mas não com idade para ser punido como deveria ser. Coisa muito curiosa essa ai… Me perdoem, quebrei a perspectiva do morto para ponderar um pouco sobre essas tais leis humanas, acho que “Dê a Cesar o que é de Cesar, não?” nestes casos, não posso julgar aquilo que não tenho conhecimento… Ou que não me importo nem um pouco.
Mas bem, como disse antes, aqui encerrou a vida de João, que tal agora retornamos ao cenário da vítima e falarmos da sua morte?