A Vingança da Meia-Noite - Ato 3
Quando a escuridão finalmente recedeu e recobrei a consciência, mal pude acreditar no que via. Meu corpo estava posicionado num canto escuro dentro de uma das cabines do banheiro da escola, apertado contra a cerâmica da privada que há muito já tinha sido permanentemente manchada de mijo amarelo. Estar aqui deveria ter-me feito vomitar, mas cheiro eu não sentia.
A repulsa que ali normalmente existiria, já não mais era capaz de agir. Qualquer noção de nojo ou emoções que existiam em vida para me proteger de riscos biológicos foram apagados com a estranha experiência de morrer. Agora que havia retornado, ligado a este cadáver, até mesmo a noção do medo da própria morte fora extinguido. Era uma sensação curiosa, uma paz inexplicável, sem nada que abalasse minha mente que agora retinha um único pensamento, vingança.
Em meu pulso encontrei meu relógio falsificado que, ainda que tivesse quebrado sua tela com algum impacto, ainda funcionava quando movi minhas mãos para acionar o fraco brilho azulado. Eram onze horas da noite, uma hora restava para executar aquele que tomara minha vida.
— Filho da puta… — Comentei com um breve riso, me erguendo do chão úmido, abrindo a porta da cabine trancada sem qualquer cerimônia, disparando um chute que estourou a trinca com facilidade — Nem sequer tentou me enterrar pra esconder o corpo. Drogado de bosta, me largou aqui no mesmo banheiro onde estava transando. Bem, ele vai ter o que é dele, se tivesse me enterrado seria mais difícil, obrigado por facilitar o serviço seu covarde.
O ambiente estava escuro, a escola obviamente estava fechada. Mesmo sem enxergar nada, consegui sair do banheiro sem muito esforço ao tatear as portas, me guiando para a saída que, como a cabine, estava trancada. Não conseguia sentir meus membros, ou melhor, não conseguia sentir nada além da minha própria existência dentro desta massa que se mexia ao meu comando.
Guiada por Morte, minha alma se atrelava a este cadáver que fora reanimado por Vida. Um corpo como este não tinha restrições e, por ser energizado diretamente pela entidade luminosa, tinha força e tenacidade sobrenaturais. Repetindo o mesmo ato da cabine, chutei a porta, só que ao invés de apenas abrir, a porta explodiu em vários fragmentos.
Apesar de surpreso, sabia que esse ainda não era o limite do poder que me havia sido conferido, e como não tinha tempo para perder com pequenos detalhes, segui em frente. Felizmente, não havia alarmes na porta do banheiro, o que preveniu maior alvoroço, porém, com o barulho gerado pelo meu chute, um guarda noturno, gritando, correu pelo prédio em busca da origem do som.
Sem desperdiçar um segundo sequer, escolhi a sala de aula mais próxima, adentrando-a ao arrombar a porta com mais um golpe. Corri até as janelas. Estava no primeiro andar, a queda não era muito alta e, com alguma sorte, o poder da Vida preveniria os danos a seguir. Tomei alguma distância em preparo e então, corri. Com três passos galguei a distância entre a entrada e os vidros, com um quarto, saltei com mais força que provavelmente qualquer humano na terra era capaz.
Feito uma bala de canhão, rompi a estrutura e voei por diversos metros, aterrissando próximo ao muro da escola com um impacto que teria me partido as pernas pelo som que o solo emitiu. Era bem conveniente essa coisa de estar morto neste momento, não sentia dor ou sequer o baque dos meus pés contra o chão. Me ergui no instante seguinte sem dificuldade e já planejei o escape do confinamento escolar.
Andei até a parede e, com a benção da falta de dor, chutei a parede com a ponta do pé, abrindo um buraco que logo usei de apoio para me erguer e fincar as mãos no concreto. Assim, repetindo os golpes destrutivos, criei um meio para escalar o muro de três metros de altura e, com alguns minutos de esforço, alcancei a borda superior da estrutura. Agarrei-a e, com um único movimento, me arremessei por cima dela.
Um impacto audível acompanhado de gritos de pare do guarda noturno depois, alcancei a rua. A noite estava repleta de nuvens negras no céu, a chuva ameaçava cair a qualquer instante enquanto raios tempesteavam nos céus. Olhei para meu relógio e vi que agora eram onze e dez, perdi mais tempo do que gostaria.
Vida prometeu que me guiaria até ele, e não foi mentira. Conseguia sentir sua presença com acuidade perfeita, que atualmente estava a mais de dois quilômetros de mim. Fosse eu vivo, não conseguiria cruzar esta distância a tempo de reclamar minha devida justiça, contudo, agora morto, tinha certeza de que não teria qualquer problema.
Guiado pelo impulso sobrenatural, corri sem descanso ou necessidade respiratória, freneticamente galgando a distância o mais rápido que fisicamente possível. Em questão de quinze minutos, cheguei a uma pequena casa escondida entre os tantos outros barracos de um bairro cujo nome eu desconhecia por conta da minha obvia inabilidade social. A presença de David emanava através das pútridas paredes enegrecidas com infiltração como um farol, brilhando tanto que cheguei a me perguntar como exatamente ninguém o via aqui.
Me aproximei dos portões enferrujados da propriedade, os agarrando antes de arrancar um deles, jogando-o no meio da rua. Ao cair, o metal ecoou no espaço vazio e mal iluminado quase que como um sino, em instantes, diversas luzes se acenderam na vizinhança, inclusive na casa de David. As cortinas recederam em uma das janelas a minha frente e, como se o carma cantasse em meus ouvidos, quem olhou através dela foi justamente quem eu procurava.
Adentrei o terreno a passos lentos dessa vez. Em meio a vidro quebrado e o fraco luzir azulado, o relógio indicava que eram onze e meia, trinta minutos restavam para atingir meu objetivo. O garoto permaneceu na janela, atônito por alguns momentos. Devia ser um choque para ele, ver alguém que deveria estar morto e escondido perto de uma privada aparecer na frente da sua casa, arrancando seu portão com facilidade.
Não tinha noção alguma de como estava minha aparência, contudo, tenho certeza de que deveria estar no mínimo macabra. Podia vê-lo tremer, não mais as mãos, mas o corpo todo, seus olhos tão arregalados que ameaçavam pular para fora das órbitas. A cada colisão de meus pés contra o solo e metro galgado, mais cômicas eram suas reações a meu ver.
No primeiro passo, o garoto começou a tremer, no segundo, seus olhos se arregalaram, no terceiro, uma mão tão tremula que ele parecia ter parkinson se ergueu e apontou um dedo instável em minha direção. No quarto, quando já estava a apenas um movimento de encostar em sua janela, sua boca se abriu, repetidamente se movendo em busca de produzir algum som, porém, reduzida ao silêncio. Por fim, no último movimento, seu corpo pareceu reagir e ele balbuciou, sua voz falha e rouca.
— N-não pode s-ser… Você não tem como estar aqui… Não é real… É isso…V-você não é real… N-não pode ser!
Um sorriso largo surgiu em meu rosto.
— Mas eu sou bem real, David…
Disparei minhas mãos contra as barras protetoras da janela, agarrando o metal antes de repetir o dano que causei no portão da casa, causando uma explosão de pó e fragmentos de concreto. Arremessei as barras envergadas ainda ligadas a um pouco de rocha próximos ao portão.
— Acredita agora?
Para minha surpresa, o garoto assentiu com a cabeça. O gesto inacreditável que demonstrava o quão deteriorado deviam estar suas funções mentais neste instante me fez desatar a rir, gargalhar ensandecidamente a tal ponto que, se ainda estivesse vivo, estaria segurando meu estomago de dor.
David me encarou, incrédulo e confuso com minhas ações e murmurou.
— Por que você tá aqui?
Me tornei silente instantaneamente.
— Porque estou aqui, David? PORQUÊ EU ESTOU AQUI?
Minha voz gradualmente aumentou e a ira que eu não sabia que tinha dentro de mim aflorou como um rugido que fez o garoto cair de costas, se arrastando no chão na tentativa de se afastar. Esta, porém, foi inútil pois com um simples salto atravessei a janela e com um passo o alcancei novamente, disparando um chute contra uma de suas pernas. O fragmentar do osso foi audível, soando como um trovão em miniatura.
Sua canela direita envergou na forma de um V horizontal, a fratura rasgando a pele e expondo pedaços do osso, sangue esguichando das artérias partidas. A face do garoto empalideceu quase que em sincronia. Seu corpo agora reagira, dor inundando cada fibra de sua expressão distorcida pelo sofrimento e agonia enquanto ele tentava segurar a perna, berrando, e ao mesmo tempo não tendo coragem de tocar o ferimento, suas mãos parando trêmulas no ar, a centímetros da pele.
Ouvi o som de passos correndo em direção ao cômodo. Para garantir que o garoto que mal conseguia manter a consciência realmente não ia tentar escapar pelo buraco que deixei na janela, pisei em sua outra perna, partindo e afundando o membro, fazendo-o tomar a forma de um V, desta vez vertical.
Com mais um berro agonizado, David começou a chorar, lágrimas e catarro escorrendo por seu rosto enquanto eu andava em direção a porta, obscurecendo a imagem do garoto com meu corpo.
Notei que estava trancada. Golpes soaram sobre a madeira que abafava o som das vozes desesperadas dos familiares do garoto. Sorri o sorriso mais satisfatório que já exibira em toda minha vida e olhei para David. Fechei a mão em punho, deixando o dedão destacado antes de apontá-lo para a porta.
— Quando você me matou, imaginou nem que fosse por um segundo que meus pais ficariam desesperados assim?
O garoto olhou para mim, choroso e confuso, seu rosto todo melado pelos fluidos de seu corpo. Ele não foi capaz de responder, e isso me fez soltar um breve riso.
— Imaginei que não — Acenei com a cabeça — Transando no banheiro da escola e drogado do jeito que estava, dificilmente estaria pensando em qualquer coisa além de seu próprio prazer.
A frequência e força dos golpes contra a madeira aumentaram, o som dos impactos se tornando cada vez mais altos. Os gritos e urros se tornaram ainda maiores, mais estridentes, como se ursos e gralhas estivessem tentando atravessar a porta.
— Aliás… — Ignorei os sons, deliberadamente tornando minha expressão o mais sinistra que era capaz de imaginar — Me diz uma coisa, valeu a pena ter me matado por causa dela? Ela era tão apertada e gostosa que era justificável um homicídio? Espero que tenha sido, senão, vou ficar bem desapontado, afinal, não tem graça se você não tiver aproveitado ao menos este derradeiro prazer antes de ser destruído.
Sabe aqueles desenhos antigos onde os personagens literalmente deixavam seus queixos caírem até o chão, incluindo um som aleatório para efeito cômico? Bem, tenho certeza de que se isso fosse realizável, David o teria feito. Sua expressão era uma mistura de choque, medo e confusão perpétuas que me agradava imensamente os olhos.
A porta subitamente irrompeu, um som de trincas sendo partidas e ranger protestante da madeira que logo se partiu. Um homem, provavelmente na altura dos seus trinta e cinco anos surgiu acompanhado de uma mulher em seus prováveis trinta anos. Estavam vestidos com roupas casuais, ele com camisa regata cinzentas e bermuda preta e ela com um sutiã esportivo verde e um short azul claro.
O homem era barbudo, cabelos curtos, feições praguejadas com olheiras profundas e olhos avermelhados, sua pele pálida e repleta de pequenos sinais de alguma dermatite a mim desconhecida. A mulher era um tanto diferente, cabelo longo e cacheado, pele morena com a distinta semelhança de olhos avermelhados.
Engraçado, porém, foi quando notei os elásticos atados aos braços dos dois com um ponto vermelho em meio a diversas outras cicatrizes de pontos ao redor. Confesso, eu ri. O homem, furioso, gritou e avançou sobre mim, agarrando minha camisa e me erguendo do chão.
— Seu desgraçado! Quem é você? Onde está meu filho? O que você fez com ele? DAVID, CADÊ VOCÊ!?
Eu comecei a gargalhar. O homem ficou ainda mais irritado e me deu um soco que não teve qualquer efeito e nem foi capaz de impedir meu riso descontrolado.
— Filho da puta! Porquê tá rindo!? Vou te matar moleque!
Cessei minhas risadas e olhei direto nos olhos do oponente, um largo sorriso ainda decorando meu rosto.
— Porque eu acho muito engraçado de ver que o problema é de família — Se fosse possível sorrir ainda mais, eu tentaria, mas os músculos faciais do meu cadáver já haviam sido contraídos ao limite físico — E mais engraçado ainda é o fato de você achar que a morte vai assustar um morto?
— O que? Você tá doi…
Não deixei que ele terminasse a frase. Disparei um chute no meio das suas pernas, sentindo com clareza que o impacto havia destruído por completo as estruturas ali presentes, molhando suas calças com uma mistura de carne, sangue e outros fluidos. Os olhos dele começaram a rolar para o fundo do crânio.
— Ah não vai não!
Rapidamente ergui a mão e dei um tabefe em seu rosto, chacoalhando-lhe a cabeça e forçando-o a permanecer consciente. Suas forças, porém, esvaíram e ele caiu no chão instantaneamente segurando a genitália mutilada enquanto urrava de dor.
Foi então que, quando fui dar um passo à frente que algo surpreendente aconteceu. Subitamente, senti um puxão em minha canela. Algo agarrava minha calça tentando impedir meu progresso, era David, resistindo os ferimentos ao máximo de sua capacidade na tentativa de salvar o pai.
— Altruísmo, David? Que bonito! — eu gargalhei, desvencilhando-me da sua mão com um movimento brusco da perna — Por que será que ele só surgiu agora?
Me virei para o homem e usei meu pé para o virar. Suas costas expostas a mim, eu virei para o garoto e sorri antes de erguer minha perna para trás. Ele entendeu meu intuito imediatamente e tentou segurar meu golpe, eu apenas ri.
— Senhor Pai — falei com entusiasmo maníaco na voz — Sabia que seu filho, como você, é um drogado e, talvez diferente de você, é um assassino? Bem, a vítima voltou para acertar as contas, então, se quiser culpar alguém pelo que farei, amaldiçoe-o, não que isso vá adiantar muita coisa porque de hoje ele não passa.
O homem até tentou virar seu corpo para me encarar, mas antes que pudesse completar o movimento, disparei um chute na base de sua coluna, afundando meu pé em sua carne, demolindo sua espinha com um impacto audível que elicitou um grito de desespero dos familiares. Seu controle sobre as pernas desapareceu e elas amoleceram, sua dor desapareceu e, diferente do que esperava, ele deixou de digladiar, como um animal próximo a morte, apenas se deitou e em silêncio, desistiu.
— Poxa… — falei com um falso tom de irritação, tentando conter meu riso — Pensei que sendo um perigoso drogado ia durar mais… Que pena, acho que a maçã realmente não caiu longe da árvore, ambos podres.
David, boquiaberto, também desistira de se mover, suas mãos e cabeça pendendo soltas, seus olhos a muito desprovidos de lágrimas. A descrença dos eventos estava escancarada em seu rosto. Olhei para meu relógio, eram onze e quarenta, faltavam vinte minutos para cumprir meu objetivo.
Originalmente, meu intuito era apenas matar o garoto, mas agora que estava aqui, e tinha o poder de decimar seu espírito por completo, faria bom uso do presente. Matá-los todos, porém, talvez não fosse uma boa ideia, afinal, me deram a chance de remover apenas David da existência, outros não estavam inclusos, portanto, não iria arriscar tirar suas vidas também.
Virei minha atenção para a mulher que vislumbrava a cena destrutiva atônita, silenciosa em seu choque que não ousava nem sequer a tremular. Não a culpava por estar assim, afinal, em menos de meia hora, seu filho estava com as duas pernas destruídas, seu marido paraplégico e sua casa em rota de demolição.
— Sabe, senhora… — comecei a falar enquanto caminhava em direção a ela — Sendo bem sincero, essa coisa de violência nunca foi minha praia, passei toda a minha vida estudando para virar um médico. Mas seu filho despertou essa crueldade em mim quando me matou… — Se fosse fisicamente possível meu sorriso sádico se alargar ainda mais, ele já o teria feito — E confesso… até que é bom ser ruim.
A alcançaria em três passos, quatro se ela saísse da porta e recostasse na parede. Qualquer que fosse sua escolha, ela não tinha escapatória. Aterrorizada como estava, dificilmente seu corpo seria capaz de reagir, e se conseguisse, não a deixaria ir longe.
Um passo, a mulher ficou parada, ainda em choque. Dois passos, seus joelhos começaram a tremer fortemente e, no instante seguinte, perderam as forças, a fazendo cair sentada no chão. Boquiaberta na tentativa de balbuciar alguma coisa, lágrimas começaram a se formar em seus olhos enquanto ela se arrastava para trás com a mísera força que podia conjurar nos membros.
Três passos, a mulher se encostou na parede enquanto alcancei a porta. Subitamente, fios de líquido amarelado começaram a escorrer por suas coxas enquanto uma mancha se formou em seu shorts acompanhada de uma poça húmida no assoalho.
— É sério isso? — eu gargalhei — Sabia que em face de estímulos extremos, os seres humanos podem perder o controle da sua fisiologia, mas não pensei que conseguiria ver isso acontecer. Você é sem vergonha assim mesmo ou isso é efeito da droga?
Dei um último passo e dobrei os joelhos, disparando minha mão no pescoço da mulher antes de erguê-la, apenas parando quando seu rosto estava a altura do meu. Podia ver as veias saltando enquanto seu rosto rapidamente enrubescia, seus olhos adquirindo um tom ainda mais avermelhado enquanto suas pupilas contraíam aos limites.
Nas orbes gelatinosas pude distinguir um reflexo distorcido da minha própria aparência, e confesso, não foi nada bonito de se ver. Minha camisa estava manchada de ambos sangue e urina, meu crânio havia sido rachado, um buraco visível se destacando em meio ao cabelo.
— Teu filho fez um estrago… — Comentei para a mulher desesperada por oxigênio, seus braços agarrando o meu na tentativa de se soltar — Me fez um rasgo nas costelas — Apontei para o ferimento que expunha osso e carne — E depois escondeu meu corpo em uma cabine do banheiro da escola, lugar este onde ele, sob estímulo de drogas, estava transando com uma colega, é mole? Baita desrespeito viu…
Ergui meu braço livre e cerrei os dedos, formando um punho.
— E é justamente por isso, e por algumas outras razões que eu estou aqui, para matar ele, afinal, nada mais justo né? Uma vida por outra.
A mulher tremeu e abriu a boca, tentando falar, sua voz supressa por falta de ar conseguindo apenas sussurrar.
— Você… É… Um… Monstro…
Outro riso ensandecido irrompeu de meus lábios, minha mão se apertando ainda mais em volta de sua garganta.
— Monstro!? Ah não, eu não sou um monstro! — Retrai meu punho erguido — Monstro é esse drogado de merda do teu filho que me matou! Eu sou bem pior que isso… Eu sou a vítima, e agora que tenho a chance, vou retribuir o favor!
Golpeei na direção do ombro direito da mulher que até tentou se defender e bloquear o ataque com cotovelo, mas o esforço foi em vão pois alterei a trajetória do soco, inutilizando sua defesa. o impacto foi audível, o som de gravetos sendo partidos enquanto a carne era dilacerada pela força. Urrando de dor, a mulher tentou arranhar meu braço enquanto o membro cuja junta fora golpeada pendia inútil ao seu lado, quase totalmente decepado pelo ferimento.
Troquei a mão que a segurava, desvencilhando meu braço do aperto dos dedos da mulher sem muito esforço. Com o outro braço agora livre, formei um punho e disparei o ataque no outro ombro, destruindo por completo o ligamento, assim, inutilizando ambos os seus braços para sempre.
— Do pai tirei as pernas… — Comecei a cantarolar em um tom alegre — Da mãe tirei os braços… E agora de ambos vou tirar seu filho, o mais inútil de seus laços.
Relaxei minha mão, deixando-a cair sentada no chão, banhando o resto de suas pernas em urina e sangue. Ergui o relógio aos olhos e vi que era onze e cinquenta e cinco, apenas cinco minutos restavam do meu tempo. Caminhei até David cujos olhos agora estavam despertos, sua costa ereta enquanto cravada sua vista na minha figura.
Podia ver indignação e ódio em seus olhos, era como se gritasse injustiças sem dizer uma palavra sequer. Assumi um tom de quem fala com um bebê e disse:
— O que foi? Ficou bravinho David? Tá revoltado?
— S-seu filho d-da p-puta! — ele gaguejou, lentamente superando seu medo com a raiva que sentia — Você tá fudido! Você voltou dos mortos né? E-então eu t-também vou voltar para te pegar! Isso vai ter volta!
Eu ergui um dedo indicador e balancei negativamente, fazendo pequenos estalidos com a boca.
— Aí que você se engana cara, eu voltei por pura sorte, você… Hehe, você não vai ter essa chance, além de que, como exatamente vai se vingar de uma vingança imbecil? Eu já estou morto! Vai fazer o que? Me matar de novo? Aí eu viro o que? Super morto? Mega morto? Hyper ultra morto?
Comecei a gargalhar novamente enquanto me aproximava.
— Me poupe de ameaças vazias David, só estou acertando as contas.
Ergui minha perna e desferi um chute contra o braço direito do garoto, a força tamanha que o membro foi diretamente decepado. David urrou de dor enquanto ainda mais sangue jorrou do ferimento. Sua pele se tornara tão pálida quanto sulfite, sua consciência ameaçando colapsar no próximo instante.
— Ah não David, assim não dá! — Comentei num tom de falsa frustração — Você não pode desmaiar assim, cadê a força e fúria que tu mostrou quando me matou?
Disparei um segundo chute que destruiu seu outro braço, contudo, a reação não foi tão grande quanto eu esperava. Seu cérebro já devia estar embebido em todos os hormônios que secretou para resistir os danos, porém, a resposta à dor foi suficiente para o manter acordado, e para mim, isso bastava.
Olhei para meu relógio, era onze e cinquenta e nove, faltava exatamente um minuto para encerrar meu prazo para executar minha vingança. A essa altura, com a quantidade de sangue perdido e danos, era impossível que ele sobrevivesse, porém, tal como ele me matou, assim eu faria a ele. Não deixaria o acaso o exterminar, isso tinha de ser feito pelas minhas próprias mãos.
Coloquei lentamente a mão em volta do seu pescoço antes de o erguer. O garoto começou a sufocar, dando um último choque a sua consciência que o fez arregalar os olhos. Os resquícios de seus membros chacoalhavam e tremiam, seu abdômen contraindo repetidamente, fazendo parecer um verme se balançando, enquanto tentava se libertar.
— Bem, meu tempo aqui tá acabando, foi um prazer vir até aqui te matar — comentei, cerrando um punho com minha mão livre, contraindo o braço aos seus limites, o posicionando mais para trás — E até aprendi umas coisas legais…
— Que… Tipo… De… — o garoto tossiu, incapaz de completar sua questão provavelmente pejorativa.
— Que você é um câncer para a sociedade ainda maior do que eu imaginava. Morri enquanto tentava me tornar algo bom, e somente depois de morto fui capaz de fazer um bem real, que ironia né?
— Filho… Da…
— Diz ao Morte que mandei um oi.
Disparei um soco com toda força que tinha na direção do peito do rapaz. Sem qualquer surpresa, o punho reforçado com o poder da Vida atravessou a caixa torácica como um tiro de canhão, perfurando a parede atrás por completo, deixando-me até o ombro enterrado no corpo do oponente.
E então, o fim de minha vingança se anunciou. No meu relógio um alarme tocou, avisando que era meia noite, não lembrava de o ter programado, mas isso não importava mais. As trevas começaram a consumir minha visão, o poder deixando meu corpo em questão de instantes. Feito uma máquina, desliguei, meu cadáver endurecendo na posição que estava enquanto minha alma era extraída e puxada para a escuridão.
Depois de um incalculável tempo dentro da escuridão, uma voz familiar chamou minha atenção.
— Esplêndido, João! — A voz risonha comentou, empolgada — Sua performance foi interessantíssima! Fazia tempo que não via algo tão criativo garoto! Brutal!
— Assistiu tudo de camarote, hein? Estava bom o show?
— É claro! — A voz gargalhou — E o que mais eu tenho para fazer de divertido além de observar vocês humanos?
— Mas isso não é tipo… Seu trabalho?
— Não, meu trabalho é organizar os mortos, garoto, cuidar dos vivos é da minha amada.
— Então o trabalho dela é sua diversão, e o seu o dela?
— Exatamente, ela é incrível não?
— Definitivamente — Não pude conter um breve risinho — A vida é incrível… Mas sabe de uma coisa?
— O que?
— Você também é, ainda que tenha me matado.
— Acontece garoto, ossos do ofício sabe? Sem ressentimentos?
— Nenhum, estou satisfeito.
E assim, meus caros leitores, se encerra a morte de João. Vingado e a caminho do além, o rapaz ainda veria coisas inimagináveis, mas, isso são contos que nem mesmo eu sei como desenrolaram, afinal, tem coisas que até a morte não pode dar fim.