Anjo Esquecido - Capítulo 1
Ao abrir os olhos, ele viu — seu criador.
Sem mesmo saber onde estava e o que ocorria, ele questionou: — O que sou?
— Você é o exemplo. — Um sorriso sereno surgiu, enquanto o criador respondia.
Dúvida nasceu pela primeira vez, e, mais uma vez, perguntou: — Por que eu sou o exemplo?
Duas mãos desceram, tocando-lhe calorosamente.
— Eu te criei para que guie os próximos. — Filáucia foi mostrada.
Dentro de si sabia que deveria indagar mais outra vez, contudo, de sua boca nada foi capaz de sair.
Com tom calmo, o criador falou: — Filho, não precisas saber por agora, quando a hora chegar, saberás.
Sua voz era a origem da paz, incapacitando-o de questionar. Era o calor que sentia por sua vez. Nem mesmo a resposta saiu de sua boca, entendendo que teria de esperar.
E, seguinte desse acontecimento, tempo se passou. Em verdade, não deveria haver tempo para ser dito, entretanto, a espera se comparou com a eternidade.
Apenas ele e o seu criador. Juntos.
Também, durante sua espera, conheceu outra. Uma outra vida, uma nova criação.
Contudo o rosto do criador não demonstrava qualquer sorriso, apenas afirmara: — Lux, conheça o teu irmão.
Um nome. Evidente era a força de recebê-lo.
Confuso do motivo, Lux cumprimentou o seu irmão e íntimo se tornou.
Ali em diante, mais e mais irmãos surgiram. Cada um deles trazendo ordem àquele espaço.
Porém durante essas eternidades passando, sentia dentro de si… Aquela dúvida, que conjunta a ele nasceu, crescer mais e mais.
Sentimentos começaram a ser conhecidos e entendidos. Amor, felicidade, satisfação. Lux os conheceu, assim como o ódio, tristeza e a inveja.
Neste domínio, construído por seu pai, somente para ele e seus irmãos, Lux permanecia sem entender.
Dentre todos os seus irmãos, ele, o primeiro, o mais velho, o mais belo e mais sábio, estava sem respostas desde o nascer.
Sua inveja não advinha da beleza dos outros, tampouco da esperteza, mas que cada um, ao nascer, sabia seu papel… Nasceram completos.
Entretanto ele ainda perdido estava, vazio.
Amava tanto o seu pai, mas também o abominava em mesma medida. Nascer vazio, apenas forçando-o a continuar se questionando para o sempre.
Via os olhares de seus irmãos, repletos de inveja, sendo o elegido. Ele não compreendia o motivo real de suas invejas, sendo que aquele quem mais sofria não eram eles.
Por carinho, observava seu pai todos os dias. Sempre obedecendo. O braço direito dele.
Não que fosse necessário, mas assim era visto por seus irmãos.
Ele não acompanhava seu pai por admiração ou mostrar serventia, apenas ansiava saber o motivo de sua existência.
E assim seguiu por tanto tempo que nem mais era possível compreender. No entanto houve algo que apenas ele saberia.
Um sorriso nostálgico, aquele mesmo sereno sorriso que viu ao acordar.
Diferente daquele dia, Lux sabia o que significava aquele sorriso.
Em outro espaço, havia um pequeno jardim… Era onde seu criador estava passando maior parte do tempo.
Sem saber o motivo do sorriso de seu criador, Lux só podia se questionar internamente.
Olhando para onde ficava o jardim, viu um ser semelhante a ele mesmo e aos seus irmãos… Não, em verdade, era mais próximo do criador do que eles, mas faltava tanto para estar próximo.
— Pai, o que é isso? — Era uma dúvida real, procurando entender a empatia que seu pai sentia.
— Este és teu primeiro passo, Lux. — As suas palavras acenderam a chama que permanecia escondida.
De imediato, seus olhos caíram de volta a nova criação. Como poderia ser o primeiro passo. Depois de tanto tempo, mais dúvidas nasceram. Era impossível descrever o tormento dentro dele.
Sabia que respostas não viriam de seu criador, então, estendeu sua mão para tocar aquilo no jardim. Compreendeu que estava mais próximo de entender seu propósito através disso.
E, com este simples ato, seu pai interviu. — Lux, ao teu tempo. Não terás mais o direito de vir até aqui. — Mesmo em sua repreensão imprevista, sua voz manteve-se calma como sempre, como se aquilo realmente não importasse.
Aquela chama dentro de si, forte e ardente, enfim se esfriou. Porém o exterior mostrava o espanto de Lux. A primeira vez que foi repreendido.
Sem responder, apenas se retirou do local.
A partir disso, nunca mais ao lado de seu pai esteve. Ele ficou naquele jardim, observando a sua última criação.
Impossibilitado de demonstrar a aversão dessa decisão de seu pai e encarando todos olhares jubilosos que seus irmãos entregavam, todo peso que sentia dentro de si, o vazio e repelência foi jogado para aquela criação no jardim.
“Como aquilo pode ser a minha resposta?! Pai, por quê? Por que não apenas me diz?!” Era tudo o que surgia em sua mente.
Ódio, anseio, medo e insegurança, cada sentimento fazia a dúvida crescer para um patamar inimaginável.
Lux se forçou a carregar aquele peso por tanto tempo e mesmo assim não havia indicativa que poderia descobrir o próximo passo. Contudo, exausto da espera, decidiu ir até o jardim.
Cada passo trazia certeza de que era um erro, cada um carregava o peso do medo, mas a agonia e tortura que sentia era supressora a esses medos. Nunca havia desobedecido uma ordem que fosse de seu pai… mas estava cansado.
Seus irmãos o olhavam caminhar, orgulhoso como sempre, sem nem prestar atenção para os outros. Ele, em suas visões, seria o único com capacidade de contrariar o pai, mas, ainda assim, o olhavam com desprezo e temor, não mais a inveja anterior.
Atravessou todos e tudo, até chegar naquele jardim, de frente ao seu pai.
Ele sentia claramente que seu pai o julgava pela atual atitude.
Lux, exaurido, questionou uma vez mais para aquela figura imponente à sua frente: — Por qual propósito fizeste isso, pai?
E, como se fosse impossível para o criador, entregou uma resposta repleta de amor, que até mesmo Lux cativado ficou… esquecendo da própria dúvida.
— Pelo futuro, Lux. — Uma resposta firme, sem esconder a verdade. Como certo estivesse.
Então, vozes soaram atrás, tirando Lux da própria cativação.
— Por desobedecer ao pai, nós, seus irmãos, viemos te deter!
Lux olha para eles com desconforto, era a primeira vez que entregava um olhar tão desamparado para eles e retorna o olhar para seu pai, que mantinha sua postura carinhosa como sempre.
Finalmente havia entendido. Seu pai estava ciente de tudo e todos, sabia da sua dúvida, de seus medos e quando adentraria o jardim novamente. Ele mandou seus próprios filhos deterem Lux, como se fosse culpado de algo. Sendo que a culpa só existia por causa do criador.
Em virtude a tudo, de todas eternidades que passou sufocando a dúvida dentro de si, seus medos e ódio, foi dado o nascimento do primeiro grito desesperado naquele espaço tão perfeito.
— POR QUE, PAI?! — Foi óbvio para todos que Lux era diferente. Aquele grito não poderia ter vindo de alguém como eles.
Por que aquele ser além de todos o fez sofrer por tanto tempo? Por que deu um sorriso tão amável quando o criou?
Ele sabia que nenhuma dessas respostas viria de seu pai, não mais.
Lux, abriu suas majestosas asas, emitindo um brilho que só ele poderia. Assim, voou através de todos seus irmãos, evitando-os.
Não havia comparação, ele era o primeiro, o mais velho, o mais experiente e o mais poderoso.
E, dessa forma, os mais novos de seus irmãos sequer vieram atrás dele naquele momento, sabiam que seria desperdício, mesmo que fosse pela ordem de seu pai.
Esse pensamento não parecia real para eles, mas assim sentiam, como se os mais velhos fossem capazes, enquanto isso, devessem esperar.
Fugindo de todos, Lux sentia a loucura o consumir. Como ele, elevado, poderia sentir vontade de rasgar a si mesmo de dentro para fora. Seria isso um castigo por ser o primeiro?
Não havia mais como ter qualquer resposta.
E mesmo a frente dessa loucura, foi incapaz de sentir ódio de seu pai, muito menos de seus irmãos, mas apenas de si mesmo. Ele odiava por ter sido invejoso, por ter sido curioso e por desejar saber… Se não tivesse sido assim, não enfrentaria tal castigo.
Sabia que seus irmãos não parariam de caçá-lo, e, naquele momento, insano, revidou aqueles que o perseguiam.
Começou a arrancar as asas de cada um deles.
O sentimento de arrancar algo tão precioso ao corpo deles… Mostrou para si mesmo que estava se afundando naquela culpa. Não havia mais volta.
Tempo então foi sentido passar, mais claro que nunca. Parecia que enfim começou a andar o tempo. E longo foi o sofrimento e perseguição dele.
Enfim acordado daquela loucura, olhou para suas mãos, que ainda seguravam a asa de um irmão… Olhou para frente, longe de tudo.
Eram tantos… tantos irmãos caídos, sem asas, não mais capazes de segui-lo…
Nem por um segundo deixou de lutar, preso em seu próprio ser, afogando-se na culpa.
Lux se odiou mais e mais. E, pela primeira vez, desejou ser morto, que sua existência fosse apagada.
Caminhou — não mais abriria suas asas contra seus irmãos — até aquele jardim.
E, do lado do criador, estavam seus primeiros três irmãos o encarando.
Lux avançou trêmulo, com passos pesados e a voz oscilante. Uma visão longe da que tinham dele.
— Pai… Por que…. não me parou…? Eles eram… seus filhos… Meus irmãos…
O segundo filho respondeu: — O pai te deu a vida, te deu uma razão e tu o desobedeces… Aquele que te deu a chance de existir.
Lux, conforme replicava, sentia algo escorrer de seus olhos. — Irmão… se assim fosse… neste estado… eu não estaria…
Não mais aguentando suas pernas tremerem, Lux ajoelhou-se no chão e falou: — Pai, perdoe-me… perdoe seu filho…
Ele sabia que aquele que o criou amava em igual a todos, assim, quis procurar o perdão.
Uma calorosa mão pousou na cabeça de Lux. Sua presença já trazia paz… E de sua mão parecia transmitir algo além da própria compreensão.
E, como se apenas o Lux pudesse ouvir, o criador disse: — Tu fizeste muito bem até agora, filho. Acabaste de dar teu primeiro passo.
Lux abriu os olhos em assombro. Aquele em sua frente não o veio perdoar, mas fazê-lo continuar.
E dor começou a espalhar por dentro de seu ser. Aquela gentil mão agora estava o fazendo sofrer, querer desistir.
Gritou e clamou em dor para que parasse, mas não foi feito.
Com medo, abriu suas asas mais uma vez e libertou-se da dor.
Sem pensar, afastou-se de seu pai. Assim que notou, viu que seus irmãos já estavam em sua volta.
O quarto irmão falou: — Lux, se tu arrependes de fato, aceitas a decisão do pai.
Nesse momento, olhando para a própria situação, as suas ações, desde o nascimento, Lux percebeu então; O seu objetivo.
Jamais deveria ter estado ao lado do seu pai, pelo contrário, notou que o criador nunca o quis do seu lado.
Ele nasceu para ser castigado.
Ódio queimava dentro de si, mas, finalmente, esse ódio não recairia em si, mas em outra pessoa…
Aquele que o fez sofrer tanto, viver em medo, dúvida e ainda ir contra os próprios irmãos. Aquele que mostrava benevolência para todos, descontou tudo apenas nele… desde seu nascer.
Aquele ser que parecia intocável, agora era o alvo do ódio.
Lux avançou no criador, estendendo sua mão para então sentir tudo o que ele sentiu. Não ligava que seus irmãos estavam lá para detê-lo, entregaria tudo neste momento.
Seus irmãos mostraram choque pelo que estavam vendo. Alguém que procurava o mal do pai.
Eles viram Lux se aproximar e, sem demora, voaram para impedi-lo.
À um dedo de distância do corpo do criador, Lux teve seu braço segurado.
O mais rápido foi o terceiro irmão. — Tu ousaras tocar…! — gritou para Lux.
Olhando para o rosto de Lux, poderia notar que algo imundava seu corpo, como lágrimas caindo, no entanto, sujas e escuras como piche.
Em tremor, colocou toda força em sua mão e puxou, arrancando o braço de Lux.
Enquanto segurava o braço de Lux em sua mão, com medo do que viu, os outros irmãos conseguiram alcançar e o deter, lançando-o para longe com suas forças.
Ele gritou algo inaudível. Era um berro de ódio… Um grito assombroso. A dor de desistir de tudo e não alcançar aquilo que estava em sua frente, ignorando até a dor de perder uma parte de si.
E, mais uma vez, começou a avançar contra o seu criador. Com passos pesados, Lux sabia que nunca conseguiria tocar no seu pai, mas, no seu âmago buscava o fim daquilo de uma vez. Sofrera demais, queria libertar aquilo preso dentro de si.
Era uma tortura sem sentido. Ele só tinha curiosidade. Desejava apenas saber sua causa.
Contudo, por causa disso, foi jogado contra seus próprios irmãos, que cresceram junto a ele, e teve que pôr o fim em cada um. Aquele mundo belo que seu pai fez para eles, agora não era mais perfeito. Havia manchado com seu sofrimento.
Compreendeu que seu único objetivo era odiar seu pai, diferente de todos seus irmãos, que nunca sentiram o que havia sentido, Lux, se provou o mais distante da perfeição.
Seus irmãos impediram novamente o avanço, lançando-o mais longe ainda. Porém nunca parou de levantar. Nem uma única vez, não importa quão longe estivesse.
Se antes tinha pernas para andar, seus irmãos a quebraram, e, mesmo assim, ainda avançava.
Se antes tinha braços para erguer-se, seus irmãos os arrancaram, e, mesmo assim, ainda levantava.
Se antes tinha as mais belas asas para voar, seus irmãos as partiram, e, mesmo assim, ainda voava.
Não havia mais orgulho naquela criatura que foi chamado de mais próximo do criador, o primeiro filho, o mais belo.
Seu exterior estava mutilado, mas dentro de si ainda era completo, ele foi criado para ser completo, afinal.
E aquele corpo belo, brilhante, agora era apenas uma mancha negra do que jorrava de dentro dele.
Incapaz de ver, ouvir e falar e sem forma, ele ainda queria tocar no seu criador, pelo menos uma única vez.
E, para seus irmãos, aquilo era algo incompreensível em palavra, algo longe do próprio mundo deles. Um pesadelo. O terror. Encarnação do ódio.
Disforme, mas vivo, com o fogo da existência ainda violento e ardente.
Cada passo que aquilo dava, trazia medo aos irmãos.
Ele tinha paralisado eles em terror e continuou avançando para seu pai.
Nessas incontáveis vezes que seus irmãos o lançaram, provou-se que, não importava como, ele continuaria avançando. Lux traria força para continuar, sem recuar.
E olhando para seu pai, Lux era como ele agora. Não importava o que fizessem, era como se não o tocassem. Como se tivesse alcançado algo além.
Assim, continuou, até que estava em frente ao criador mais uma vez.
Mesmo sem voz, Lux falou, e seu pai o respondeu: — Filho, sinto muito por ter feito isso com você. — Ele abraçou sua criação, e o breu que o cobria começou a tomar forma. — Boa sorte — despediu-se de Lux.
Lux, surdo, não conseguiu ouvir isso, mas, de alguma forma, compreendeu.
Ele tocou no seu criador, muito além do que ser tocado por ele.
E a escuridão, já amiga, tomou conta da mente dele.
Tempo se passou.
Tempo suficiente para uma alma se curar.
Tempo suficiente para ele acordar.
Lux acordou.
Acordou para ser o exemplo.