As Bestas de Brydenfall - Capítulo 10
Com as forças repostas, Gwyn carregou Arthur de volta à estrada, onde poderiam escolher entre uma fuga desesperada e uma incursão arriscada rumo ao Porto.
Não demoraram para encontrar Niall e Vortius vigiando a fronteira da cidade. Após presenciarem os horrores na floresta, ambos fitaram os sobreviventes com admiração no olhar.
Antes que pudessem comemorar, a arqueira fez questão de destruir o clima:
— Corven morreu lutando… enquanto vocês fugiam.
Um minuto de silêncio.
O esquadrão se lembrou do soldado rabugento e exibido, que escondia tudo sobre o seu passado. Skar era o único que desafiava Arthur para uma luta amistosa e terminava ela consciente. Sempre foi insensível e mal humorado, o que fazia de seu sacrifício algo completamente inesperado para o grupo.
Corroído pela culpa, Niall abaixou a cabeça.
— Ele não parecia o tipo de homem que valoriza a vida dos outros acima da própria. — Engoliu em seco. — E se nós não partirmos agora, seremos os próximos.
Sabia que sua irmã o odiava cada vez mais, e tudo que fazia quanto a isso era acrescentar mais motivos para a raiva. Até Niall sentia raiva de si mesmo, por ser tão covarde.
O cardeal deu um passo à frente.
— Eu irei ao Porto. — Tentou esconder seu semblante de medo.
— Pensei que suicídio fosse o maior dos pecados — Arthur provocou.
— As ordens do Griggs foram claras. — Gwyneth encarou o padre. — Nós vamos montar um acampamento e esperar que eles voltem com os sobreviventes.
— Quando foi que essa conversa virou um campeonato de ideias estúpidas? — O subcomandante tentava estancar o sangramento da perna e do ombro. — Esqueçam o acampamento e pensem direito: temos que ir à capital e voltar com um exército.
Vort ignorou o grupo, saindo da estrada de terra e seguindo pela planície.
Seus olhos esbranquiçados contemplaram a região por onde nem mesmo os pássaros ousavam voar.
Admirou as torres da guarda, todas tombadas entre ruas labirínticas e incontáveis casebres que enfeitavam a antiga cidade mais populosa do mundo.
Quase chorou ao imaginar tudo aquilo em chamas.
— Não questione Deus… — sussurrou para si mesmo e então elevou a voz para que fosse ouvido por todos. — Podem ficar com o cavalo, irmãos.
Niall caminhou até Arthur.
— Espere, Vort! — Tomou sua espada de volta. — Eu vou com você.
Arthur se apoiou no cavalo do cardeal, sentindo-se cada vez mais fraco.
— Não sei se é o melhor momento para tentar ser útil, tenente. É um milagre vocês ainda estarem vivos.
Gwyn segurou o irmão pelo braço.
— Tem certeza que você dá conta?
— Não cabem três de nós em um cavalo desses. E Arthur… — Encarou o soldado moribundo, ganhando um ar de seriedade. — Quando eu estiver voltando com o comandante, é bom que te encontre já na estrada, com esse tal exército.
— Se eu conheço a força do Griggs, vou fazer isso só para passar a vergonha de dizer aos homens que deem meia-volta.
A arqueira tocou o queixo do irmão, virando-o para olhar em seus olhos.
— Nem pense em morrer.
— Você me conhece. Não tem quem me segure quando eu fico irritado para valer. Aquelas coisas só me pegaram desprevenido, tá bem? Vai ficar tudo bem, sua ogra.
Riram juntos quando o rapaz lembrou a irmã de seu apelido carinhoso. Se fossem dez anos mais jovens, ela teria lhe dado um chute entre as pernas.
Os irmãos se abraçaram por um longo momento, sabendo dos riscos que o tenente correria ao continuar na região.
Blake acenou com a cabeça.
— Até logo, tenente Vesper. E obrigado pela espada, ela serviu bem.
— Sempre que precisar. — Respirou fundo, tentando espantar o terror.
Gwyn e Arthur partiram rumo à Neverfall, a excêntrica capital do reino, que ficava a apenas sete horas do porto. Enquanto a dupla de cavaleiros se afastava no horizonte, o padre permanecia impassível, observando as ruínas.
O tenente tocou o ombro de Vort.
— O que está esperando?
— Eu sinto muito. — Começou a soluçar, tateando os bolsos de seu robe.
Em meio às lágrimas, o cardeal atravessou o pescoço do tenente, utilizando uma seringa abençoada pelo Supremo Ser.
O líquido espesso penetrou a corrente sanguínea do soldado. Niall sentiu como se o interior de seu corpo começasse a arder em chamas.
Tentou reagir, mas sua espada foi ao chão.
Seus dedos lutavam contra a própria vontade. A visão escurecia rapidamente, enquanto sua pressão sanguínea despencava. Os olhos empalideceram, como os do padre.
A voz do traidor chegou abafada aos ouvidos do tenente:
— Sobreviva, por favor.
***
Uma ventania intensa carregou folhas mortas e o frio da noite que se aproximava.
No Porto de Carvalho, o cheiro de peixe apodrecido ao Sol infestava as narinas de todos os soldados.
O comandante cavalgou pela terra encharcada, observando um nevoeiro espesso que se formara entre as ruas. Griggs e Ed eram os únicos que andavam a cavalo, enquanto os outros se esgueiravam nas partes mais estreitas e remotas.
Os homens passaram pelo Ninho das Moscas, casa de grande parte do povo costeiro.
Não havia nada além de lixo e insetos.
Adentraram o hall do maior hospital e viram apenas camas ensanguentadas e marcas de uma luta injusta, onde nenhum enfermo teve sua vida poupada.
Transpuseram quase todos os bares, tavernas e mercados, vendo alimentos estragados e copos que permaneciam cheios, sem seus donos.
Finalmente, decidiram encerrar a jornada investigando os navios.
Precisavam encontrar resquícios dos antigos habitantes da cidade. Qualquer coisa que não fossem vísceras, abundantes por todo o cenário macabro.
Após revistar o último galeão, Sandor concluiu:
— Nada além de ratos.
— Quer dizer que nós podemos cair fora. Não tem mais o que inspecionar — o aspirante Yvon respondeu, entre um tropeço e outro.
Apressaram-se em sair do veículo escorregadio, tomado por limo. Haviam passado o dia inteiro explorando casas e embarcações arruinadas, apenas para constatarem o óbvio: não havia sobreviventes.
Com exceção de um: Grey Brydenfall, que tremia feito uma criança despertada de seu pesadelo.
— Nós vamos morrer aqui… — Mantinha-se sempre encolhido, próximo ao comandante. — Precisamos sair logo!
— Eu escutei da primeira vez, almirante. — Griggs nem dava mais atenção ao nobre. — Já estamos de saída.
O aspirante Ed não acreditava nos relatos que ouvira do sobrevivente, mas a curiosidade estava consumindo-o.
— Sobre os monstros que você mencionou… Como eles se pareciam?
— Como monstros, porra! Passe a noite aqui e você os verá… Tenho certeza.
— Creio que os médicos da capital vão gostar de ouvir isso. — Griggs considerava os avisos e descrições como nada mais do que alucinações, provavelmente ocasionadas por algum tipo de enfermidade ou trauma.
Os únicos monstros que caminhavam livres em Brydenfall eram pessoas como ele. Disso sabia bem.
Ed entregou seu escudo ao almirante.
— Fique com isso, meu senhor. Pode ser útil.
Nas docas, placas de madeira estalavam a cada passo de Sandor e Yvon.
Elas vibravam e rangiam no extenso deque, recobertas pela maresia salgada. Os soldados aproximavam-se do grupo a passos largos, apressados para voltar de viagem.
Igualmente ansioso estava o tenente Thalmor, que nunca havia partido em uma missão fora de Neverfall.
Interrompeu sua investigação em uma casa velha, sorvendo um gole de uísque em seu cantil. Nervoso, coçou a cabeça repetidas vezes, imaginando se sua mãe estaria bem sem seus constantes auxílios. A velha foi uma mulher forte, mas a cada dia se tornava menos sadia e quase não lembrava como sobreviver sozinha.
“Ninguém me avisou que isso ia demorar tanto” pensou o tenente, sem ouvir seu algoz se aproximando.
Um tentáculo avançou contra o soldado distraído, iniciando um sufocamento brutal.
Thalmor bateu contra o músculo gosmento que lhe rompia a traqueia. A pressão na garganta permaneceu até o momento em que os olhos da vítima pareciam saltar das órbitas, com veias estourando e um pavor interminável estampado na face.
Por todos os becos, edifícios e ruelas que cercavam o Porto, moviam-se os seres que já não eram humanos.
Pela estrada principal, o exército de ratos anunciou a chegada do Rei.
Larosse caminhava pesado, quebrando todas as pedras do chão em que pisava. Seu corpo blindado tomava uma coloração cada vez mais próxima do vermelho que ambicionava.
A cada vez que devorava algo vivo, sentia uma mudança em seu interior. Estava começando a entender como as mutações funcionavam e como poderia controlá-las.
Pensava que bastariam apenas mais algumas refeições e, com certeza, seria o predador perfeito.
O gigante encouraçado observou as novas presas patéticas, que sacavam as armas e entravam em guarda.
Sua boca continha tantos dentes que já estava pregada em um sorriso eterno.
— Olhem só para vocês. Perderam a vontade de viver?