As Bestas de Brydenfall - Capítulo 11
Grey não esperou para ouvir mais palavras da abominação.
Partiu numa fuga rumo ao único beco que parecia livre de atrocidades.
Paralisou no momento em que sentiu o cheiro metálico de sangue sendo carregado por um vento forte.
Acima dos edifícios, os infectados esqueléticos salivavam rente ao próximo banquete. O mais faminto investiu contra a caça, pousando no escudo levantado do almirante Brydenfall.
Em pânico, Grey tentava lutar contra a voracidade do monstro. As garras da criatura estavam a centímetros de seus olhos, cada vez mais esticadas. Os outros demônios pularam dos telhados e janelas.
Partiram em botes sanguinários rumo aos pratos escassos de comida magra, repleta de metal e medo.
O sargento Witz vasculhava uma passagem estreita entre duas casas, quando percebeu que estava cercado por inúmeros roedores tão grandes quanto lobos.
As bestas investiram com gritos agudos.
Não deram tempo para o soldado sacar sua espada. As centenas de dentes perfuraram a carne nas coxas e os músculos da panturrilha, derrubando o aperitivo.
Witz grunhiu enquanto sentia as presas afiadas lhe talharem o corpo por todos os lados.
Vomitou no pelo engordurado da criatura que lhe arrancava o nariz. Bateu a nuca contra a parede mais próxima, tentando desmaiar e se livrar da dor. Sua luta corporal cessou apenas quando uma montanha de predadores já havia se erguido à sua volta.
Por longos minutos, eles se mantiveram comendo e cuidando para que a vítima continuasse viva.
Assim a carne era melhor.
Outros ratos se mantinham fora de vista, roendo madeira sem parar.
O capitão Sandor puxou sua espada montante, pesada o suficiente para decapitar cavalos em apenas um golpe. A lâmina afiada refletiu a face determinada do guerreiro, com diversas gotas de suor que escorriam pela barba negra.
Ao lado do lanceiro Yvon, o capitão partiu feroz rumo ao confronto com os infectados.
Sua coragem durou até o momento em que o chão do deque cedeu aos roedores, jogando os dois soldados contra as águas negras.
Caíram em uma armadilha.
Mesmo com os físicos invejáveis, Sandor e Yvon não puderam nadar. O peso de suas armaduras afastava-os da superfície, enquanto o frio fazia com que seus nervos gritassem em uníssono.
Soltaram as armas. Desprenderam as placas de aço. E foram devorados por criaturas sombrias que apenas nadavam, matavam e repetiam o ciclo, dizimando tudo que seu Deus ordenasse.
Retornaram às profundezas quando as refeições foram reduzidas apenas ao sangue farto que coloria o mar.
***
Após soltar um rugido descomunal, Larosse desceu sua pinça como um martelo, buscando esmagar Ed e seu cavalo.
Seu golpe foi rebatido por um imenso impacto.
A maça de Griggs estourou a carapaça de Sullyvan, revelando os músculos flácidos por trás da casca.
Com apenas um golpe, o cavaleiro inutilizou um dos braços do Rei.
Duas bestas tentaculares aproveitaram a deixa para atacar a montaria do comandante, pelos flancos.
Um dos membros, repleto de ventosas, se fixou no casco traseiro do cavalo, enquanto o outro serpenteou até a cauda do animal, arrancando-a com brutalidade.
A montaria entrou em um frenesi descontrolado, tombando em agonia.
Com seus reflexos ágeis, Griggs conseguiu desmontar no último instante, pousando de pé e sentindo seus ossos se cravarem na própria carne.
As guerras haviam lhe custado muito.
Sua perna nunca mais seria a mesma, após o ferimento que ganhou em Wymeia.
Mas não precisava dela para mover a pesada maça. Seu primeiro golpe provou isso ao esmagar o tórax de um homem-rato que tentou a sorte contra o Cavaleiro da Paz.
Quase todos os seus soldados haviam morrido em instantes.
Para cada lado que Griggs olhava, eram mais daqueles seres repugnantes e famintos.
Liderou exércitos em três das maiores batalhas que a Costa Brydenfall já enfrentara, então sabia, mais do que ninguém, quando estava diante da derrota iminente.
O comandante sorriu ao ver o homem-rato vomitar as tripas, sem conseguir levantar após o golpe no estômago.
Não compreendia a origem dos adversários, mas constatou que podiam ser mortos se ele batesse forte o suficiente.
Griggs virou-se para Ed.
— Você sabe o que fazer!
— Mas… comandante…
— SE APRESSE! — Entrou em guarda frente à besta crustácea, o Rei dos Monstros.
Larosse expelia uma cascata de saliva fétida.
Reconheceu o oponente como sendo um prato formidável.
— Isso… VAI SERVIR!
Ed deu as costas ao embate explosivo, ouvindo o couro demoníaco se chocar contra a maça de guerra.
Cavalgou em meio aos ratos, pisoteando-os numa investida em direção a Grey, que permanecia fugindo e gritando na rua principal. Um dos braços do aspirante largou as rédeas e agarrou o almirante, arrastando-o pela estrada de pedras, para longe dos aberrantes.
As garras de Larosse atingiram o escudo de Griggs, amassando o metal como se fosse tão frágil quanto papel.
Com o impacto do golpe, o comandante foi impulsionado três metros para trás, atravessando a vidraça de um joalheria.
O cavaleiro tombou entre pérolas e diamantes.
Lutando para se manter de pé, o velho tossiu sangue, tingindo sua barba grisalha. Ergueu-se com uma feição cansada, apenas para se deparar com mais de trinta monstros à sua frente.
Havia finalmente encontrado a população que tanto buscara e a única coisa que conseguia pensar era:
— Puta merda…
Esbravejou mais algum xingamento inaudível, antes de ser derrubado por dois infectados que poderiam ser confundidos com humanos, se não fossem as presas afiadas, os olhos ensanguentados e as veias enegrecidas.
No chão, em meio aos cacos de vidro, Griggs sentiu os dentes ferozes escavarem seu ombro.
Puxou uma adaga e revidou contra a nuca do aberrante, lhe apagando a vida.
O segundo aproveitou para abocanhar o braço armado com a lâmina, mas não esperava que houvesse também uma faca em meio aos armamentos do velho.
A criatura teve sua têmpora perfurada e enxergou os olhos raivosos do cavaleiro. Sentiu medo pela primeira vez desde sua morte humana.
Desvencilhando-se das duas bestas, o comandante se ergueu novamente, recobrando sua maça que o acompanharia à cova.
Todos os monstros investiram ao mesmo tempo.
Crânios foram quebrados. Corpos caíram aos montes. Para cada movimento de Griggs, um dos monstros era atravessado pelos espinhos e arremessado para trás, com os ossos esmigalhados.
Chovia sangue no Porto de Carvalho.
Cada passo do velho lembrava-o que sua perna estava contra si. Esmagou a face de uma aberração roedora, ignorando a dor pulsante no joelho.
O comandante estava vencendo a batalha.
***
Quando Ed já havia se afastado o suficiente, deixou que Grey montasse o cavalo dignamente.
Por mais de um quilômetro, o nobre da família real havia sido humilhado, com o aspirante o puxando pelo braço enquanto suas pernas raspavam o solo lamacento.
O jovem almirante, completamente imundo, se sentia enojado consigo mesmo e com o soldado responsável.
Ed tentou se justificar:
— Não havia outro jeito de escaparmos, lorde Brydenfall. Se eu parasse por um momento, estaria tudo acabado!
— Eu não preciso ouvir isso. Cale a boca e conduza!
Os cascos trotaram na lama. Patas monstruosas acompanharam os soldados.
Eram doze, no total, e todas elas eram parte de um mesmo ser, lotado de olhos na face, bocas no torso e dobras de gordura em seu corpo pálido.
Era como um aracnídeo obeso vindo do inferno.
Grey começou a bater nas costas do aspirante, ao perceber a criatura que os perseguia.
— Mais rápido!!!
— Não dá para ir mais do que isso! — gritou, sentindo as mãos do almirante se agarrarem na sua armadura.
Antes que o soldado raciocinasse, foi empurrado para fora do cavalo.
Grey tomou a sela, afastando-se do problema, enquanto o homem traído ainda quicou duas vezes no chão, banhando-se na lama.
Quando Ed abriu a boca para gritar, a criatura o alcançou, erguendo uma de suas patas pesadas e descendo contra o rosto do aspirante.
Outro golpe atingiu sua barriga e não demorou muito para que as doze pernas mutantes estivessem pisoteando sua vítima, esfarelando os ossos e amaciando a carne.
Cada impacto era sentido como uma marretada. Ed cuspiu seus dentes. Perdeu um olho. Rezou silenciosamente por uma morte mais rápida.
Já afastado do assassinato, Grey cruzou as últimas casas do Porto, antes de finalmente alcançar a planície que o levaria para longe do seu maior pesadelo.
Respirou fundo e sentiu a fumaça presente no ar.
Percebeu que, por janelas quebradas, uma figura sombria jogava tochas para queimar a cidade.
Não enxergou a face do incendiador, apenas seu cabelo branco reluzindo o brilho sanguíneo que a fronteira estava ganhando.
***
Em seus tempos de glória, Griggs foi conhecido como o mais forte de todo o reino, ganhando a alcunha de Cavaleiro da Paz, pois seus braços encerravam guerras.
Na flor da idade, ele matava dezenas de inimigos em apenas uma batalha.
Em sua última missão, terminou subjugado por quatro monstros tentaculares, que esticavam os braços e pernas do comandante, erguendo-o aberto acima do chão, enquanto se contorcia inutilmente.
— Demônios! DEMÔNIOS!!! — Esperneou em fúria.
— Vocês são os demônios — Larosse abriu sua pinça gigante, que cobria a vítima inteira. A parte superior tocou o nariz do velho, enquanto a inferior parou sob as costas. — E nós… Somos os anjos escolhidos por Deus.
— Me poupe de suas insanidades, seu caranguejo imundo!
As criaturas gritaram, jogando pedras e fezes contra o velho derrotado.
Nenhum dos dejetos abalou o espírito de Griggs.
Sullyvan permaneceu sorrindo.
— Não me importo de dividi-lo, marujos — A pinça se fechou, jorrando o líquido quente contra os espectadores sedentos. As duas partes de Griggs foram puxadas para lados opostos, enquanto suas entranhas se amontoaram no chão. — Sei que todos ainda querem um pedaço da recompensa.
Naquela noite, nem mesmo os ossos foram desperdiçados.
Todas as bestas de Brydenfall mastigaram um pedaço do Cavaleiro da Paz.
PARTE 1 – Desolação
FIM