As Bestas de Brydenfall - Capítulo 12
Parte 2: Ascensão
Fracos, doentes e feridos, Arthur e Gwyn alcançaram as muralhas de Neverfall, após dois dias de viagem.
Seguro no interior de sua torre fortificada, o rei Maximus Brydenfall ainda desconhecia o poder que se espalhava entre os infectados do reino.
Nas sombras, os Devotos de Deus planejavam seus próximos passos.
A peste se espalha como um câncer em estado terminal.
Mesmo salvos, Gwyn e Arthur se sentiam cada vez mais próximos daquilo que combateram no amaldiçoado Porto de Carvalho. Com uma das pernas repleta de mordidas dos roedores, a tenente Vesper já não conseguia nem mesmo se erguer, tendo o organismo assolado pela febre suspeita.
Blake não tirava os olhos da subordinada, que tossia sangue, com a respiração descompassada e exalando o cheiro amargo da doença.
O soldado sentiu como se ele mesmo a tivesse deixado naquele estado de coma.
Antes da última missão, pensava que havia aceitado o conceito do fim. Dizia aos outros que não tinha medo de morrer. Agora, diante do corpo pálido da mulher que o salvara, ele se sentia como uma criança prestes a ser abandonada pelos pais.
E Arthur sabia que, em seu organismo, a peste também se esgueirava furtiva, esperando o momento certo para transformá-lo em uma abominação.
Começou como um calor febril, que foi acompanhado por tosses secas e uma indisposição crescente, fazendo o corpo pesar mais a cada hora. Suas pernas tremiam, mesmo sem frio.
Não precisava ser um gênio para saber que os ferimentos da batalha os matariam de uma forma lenta e dolorosa.
Padre Hector, o responsável pelo hospital, esboçou um sorriso ao ver o soldado prostrado ao lado de Gwyn.
— Ela já despertou alguma vez desde que demos as medicações?
— Não. — Arthur nem sequer olhou para o velho de cabelos grisalhos.
— Acho que seria uma boa ideia pensar em um descanso, major Blake.
— Eu dispenso as suas ideias, padre.
Um breve silêncio se instaurou.
Hector tentou reconfortar Arthur, pondo uma mão em seu ombro.
— Seus colegas do exército dizem que o senhor tem problemas para lidar com os sentimentos no campo de batalha. Que isso te faz ser frio e perigoso.
— Se isso for verdade, então é melhor você sair antes que me veja irritado. — Estapeou a mão do velho para longe.
— Mas eu não acho que é. Seus companheiros do exército possuem uma dedicação e honra impecáveis, mas são deficientes no que diz respeito a empatia. Acredito que os sentimentos são sim um problema nos ambientes de guerra. O único fato de te julgarem é porque são raras as pessoas sensíveis que sobrevivem a mais de uma batalha na vida.
— Quando foi que isso virou uma sessão de terapia?
— O que eu quero dizer é que você está cercado de pessoas que não o entendem. Eles te chamam de assassino frio e você começa a agir como se fosse verdade. Mas acho que o único perigo que o senhor representa é para si mesmo.
Arthur pegou suas muletas e se levantou da cadeira. Fitou diretamente os olhos esbranquiçados do padre.
— Nós nunca nos vimos antes… Que papo é esse? Por que você acha que me conhece?!
— As histórias que contam sobre o senhor são lendárias. O escudeiro do Cavaleiro da Paz, que salvou a vida do próprio mestre. Quem ouve as histórias de como você esmagou o Gigante de Wymeia até pode pensar que o major Blake é um troglodita homicida. Mas, desde que entrou no meu hospital, só vejo você saindo desta sala para ir ao banheiro. Não tem comido ou dormido desde que sua tenente entrou em coma.
O cavaleiro tentou retrucar, mas não tinha argumentos contra a leitura do padre, que prosseguiu:
— A senhorita Vesper passará por uma cirurgia complicada. Recomendo que descanse um pouco em seus aposentos, antes de acompanhar o processo. Caso contrário, pode acabar se exaurindo além da conta. As coisas são estressantes por aqui.
— Odeio ter que admitir, mas talvez esteja certo, padre… Se ficar aqui te ouvindo por mais cinco minutos, eu teria que trocar de lugar com ela. Vou pedir para alguém me avisar quando você tiver ido embora.
Quando Arthur estava prestes a sair, Hector concluiu:
— Há uma chance da tenente não sobreviver. Dizem que Deus faz o certo através de linhas tortas, major. Você deveria tentar aprender um pouco mais sobre Ele. Pode ajudar a decidir o que fazer daqui para frente.
Blake decidiu rapidamente o que fazer: se entorpeceria até aceitar a ideia de que estava morrendo.
***
Neverfall era a única joia de um reino que vivia de conflitos e destruição.
Para um observador sem tato, a capital era como um formigueiro infestado de pessoas, sonhos e ideais vazios, que esmagavam qualquer esperança de viver numa sociedade que não fosse regida puramente pelo caos.
Mas, para aqueles que admiravam o conhecimento humano, a “Cidadela Intrespassável” era a encruzilhada que ligava todas as culturas da Costa Brydenfall, desde os piratas do Porto de Carvalho, aos apotecários da Vila Daggerden, as mercadoras do Deserto Eleynora e os botânicos do Vilarejo Irinália.
Sendo assim, a região era uma amálgama das mais diversificadas invenções, como os navios de guerra, armas de fogo e drogas importadas.
Arthur planejava gastar seu salário na terceira opção.
Apressado, o subcomandante saiu do hospital, sentindo uma fissura se abrir em seu interior. Uma ansiedade que ficava maior a cada vez que se lembrava dos prazeres indescritíveis que a goma thandriana lhe propiciava.
Era uma substância perigosa, assim como suas vias de acesso, mas os sentimentos ocasionados pelo doce de ervas eram a única coisa que seu corpo viciado desejava.
O Inferno. Era como chamavam as periferias da capital que, em plena noite, era iluminada apenas pelos cachimbos de indigentes e os barris que incendiavam para se proteger do frio invernal.
Blake adentrou um beco estreito, trocando olhares com cada criminoso que observasse suas espadas quebradas e a armadura do exército brydeniano.
Pegou sua bolsa de moedas quase vazia e arremessou contra um obeso mal encarado, que se sentava num chão coberto de seringas usadas e garrafas quebradas, próximo a um tronco de madeira apodrecido.
— Uma de dez, por favor.
— Dez de pó ou de pedra?
— De erva.
Era como chamavam as gomas thandrianas, feitas com uma mistura de óleos e plantas tóxicas, cobertas por uma película de gelatina elaborada com algas.
Uma especiaria vinda de Thandriam, a nação da honra e da paz, que faz fronteira com Wymeia e Brydenfall.
— Boa sorte. — O traficante levantou o tronco ao seu lado, revelando dezenas de produtos alucinógenos em um buraco no chão.
Selecionou a maior entre as bolas de goma, entregando ao soldado que já salivava ao pensar na droga estourando entre seus dentes, com o líquido oleoso adormecendo as gengivas e suprimindo os pensamentos negativos, ao mesmo tempo em que destruía seu organismo.
Parecia o método perfeito de suicídio, repleto de prazer e excitação, ocasionando uma morte lenta e dolorosa após poucos anos de uso.
Blake inspirou o perfume herbal, constando que não era uma imitação barata.
— Paz — desejou a todos, enquanto saía do mercado negro.
— Só se for pra você, escravo do rei.
Os criminosos desataram em risadas secas, que culminaram numa tosse conjunta.
Depois que recuperaram seus fôlegos, voltaram aos desejos químicos.
Uma figura imponente surgiu por um beco, investindo contra Arthur e pegando-o de surpresa. Prensou o corpo do subcomandante contra uma parede de tijolos, com um braço no pescoço.
— O que você pensa que tá fazendo?! — Os olhos verdes de Oriana transbordavam raiva.
— Boa tarde para você também, irmãzinha. — Blake não ofereceu resistência, soltando as muletas.
— O padre Hector acabou de me contar que a sua subordinada vai perder uma perna e você decide comemorar aqui no Inferno?!
— Você queria que eu ficasse chorando ao lado da cama até desidratar?
— Eu só queria que demonstrasse um pouco de preocupação por alguém que não seja você.
A discussão despertou um viciado brutamonte, que resolveu intimidá-los. Cuspiu na direção dos irmãos.
— O que tá rolando aí? As duas meninas resolveram namorar?!
Oriana sacou seu canhão de mão, com pólvora o suficiente para estourar três cabeças em um único disparo.
Apontou contra o intruso da conversa, que arregalou os olhos, atônito.
— Quer perguntar mais alguma coisa, seu morto-vivo de merda?
— Milady… Eu sinto muito… não vi que era a senhora! — o viciado reconheceu a nobre loira, que trajava uma armadura escarlate, com o símbolo da família real: uma torre erguida na ponta de uma agulha.
— Três… Dois… — Antes que chegasse ao “um”, já havia feito o brutamonte sumir de sua vista. — Agora voltando ao que interessa: por que você faltou a reunião com o Orion?
— Já disse tudo que eu sabia sobre aquelas coisas. Não tenho mais como ajudar. Você sabe que a minha habilidade com estratégias é negativa.
— E o que você vai falar com a Gwyn, quando ela acordar? Que desistiu do Niall e do Griggs, porque preferia se drogar numa viela qualquer?!
— Eu desmaiei no caminho para cá. Demorei bem mais do que deveria… E só nós vimos o estado do Porto de Carvalho… Aquelas aberrações… Sinceramente, é impossível qualquer um ter sobrevivido àquele lugar.
Oriana desferiu um soco no queixo de Arthur, deslocando seu maxilar.
Olhou-o de cima para baixo, com desprezo.
— Queria poder te chamar de covarde, mas não é isso que te faz ser egoísta assim. Também não é mal como se faz parecer. Você é só um desistente. — Virou as costas ao meio-irmão. — Se quiser ser útil pelo menos mais uma vez, eu vou estar na sala do marechal. Nós vamos marchar ao Porto de Carvalho, o quanto antes.
Blake permaneceu no chão.
Pôs a goma na boca e começou a rir quando percebeu que não conseguia mastigar a droga, sem o auxílio de sua mandíbula. Ela sabia exatamente como manipular alguém.
O major tentou se lembrar onde era a sala do marechal Orion.
— Lá vamos nós, de novo.
***
Dois dias antes
Um novo filho de Deus estava para nascer.
Era o fim de mais uma madrugada gélida, quando Grey se aproximou das muralhas de Neverfall, alertando os sete soldados que faziam guarda.
— Alto lá! — um deles bradou.
O almirante mal podia respirar, de tanto muco na garganta.
Estendeu a mão para a luz das tochas no grande portão, despencando do cavalo que roubara de Ed. Um dos guardas desceu as escadas e puxou uma alavanca para ativar engrenagens que moviam a entrada.
Correu na direção do sobrevivente ferido.
É um prazer conhecê-lo, criança.
Auxiliado pelo guarda Andrin, Grey conseguiu se erguer, rilhando os dentes e sentindo um frio inexplicável.
— Vai ficar tudo bem. — o soldado tentou tranquilizá-lo, ao notar a armadura de alta patente que o nobre trajava. — Vamos levá-lo para o hospital imediatamente.
O corpo do almirante formigava como se seus nervos estivessem lentamente parando de funcionar.
Percebeu que nasciam mais oito caninos em sua boca cada vez maior.
As novas fileiras de dentes cresceram numa velocidade absurda, provocando uma coceira incômoda, seguida pela fome.
Nas muralhas, uma figura esguia se aproximava dos guardas. Um deles sacou seu sabre, alertando os companheiros.
— Identifique-se!
Perceberam que o desconhecido, recoberto por um manto negro, permanecia caminhando lentamente, completamente calado.
Os outros cinco vigias se juntaram ao colega, preparando-se para derrubar o suspeito que conseguiu acessar uma muralha de doze metros de altura, sem passar pelas escadas.
— É bom você falar alguma coisa, se não quiser cair daqui! — avisou uma última vez.
— Você por acaso fala com cada prato de comida, antes de se alimentar? — o estranho perguntou, com uma voz grave.
Sem deixar tempo para o soldado respondê-lo, investiu com uma velocidade sobre-humana.
Seus pés eram cascos de bode, perfeitos para uma arremetida. Na palma de suas mãos cresceram chifres pontiagudos como lanças, gerados em milésimos de segundo.
Utilizou-os para penetrar as gargantas dos primeiros dois guardas que se aproximaram.
Deixou que se afogassem no próprio sangue.
Os quatro restantes tentaram desferir cortes e estocadas, mas o invasor se movia com o vento, demonstrando um equilíbrio e agilidade incomparáveis. Desarmou um dos adversários e perfurou seu olho até atingir o cérebro.
Quando Andrin percebeu que seus colegas estavam sendo trucidados, apressou o passo, enquanto arrastava o moribundo Grey.
Apoiou o almirante no portão e correu para as escadas, sacando sua espada longa.
Ele virou as costas e você não o matou. Está com medo de algo, pequeno Grey? Não negue o seu instinto.
— Cala essa boca… — Grey sussurrou. — Eu não recebo ordens, tá me ouvindo?!
O corpo de um guarda despencou da muralha, chocando-se contra o solo de ladrilhos.
Sua face, prensada pelo impacto, ficou praticamente plana.
Um cheiro suave foi levado pelos ventos secos, atingindo o olfato do almirante e despertando desejos primitivos. Era o sangue que lentamente se acumulava em uma poça onde o cadáver tombou.
Não veja como uma ordem. O que eu ofereço a você… é o que sempre buscou. Ou prefere terminar como a lamentável Brynevere?
Sem mais oponentes, a figura desceu a escadaria, enquanto seus chifres eram desfeitos, retornando ao interior do corpo.
Os cascos se tornaram pés novamente. Arremessou a cabeça de Andrin contra o chão e ela quicou antes de terminar entre as pernas de Grey.
O cadáver ainda guardava uma expressão do mais puro horror, com os olhos arregalados, o nariz quebrado e pouquíssimos dentes.
Sacie sua fome. Fique acima dos limites de sua espécie. Você queria ser um rei, não é mesmo? Pois eu lhe dou a chance de ser um deus.
As fileiras de dentes não paravam de crescer.
Sua pele se tornou úmida e albina. O estômago do infectado recém-nascido começou a roncar, com um desejo específico por carne.
Pessoas são feitas de carne, não é mesmo?
Quando recobrou a consciência, estava mastigando os últimos resquícios da cabeça de Andrin. A carne tenra e suculenta, temperada pelo sangue espesso e os ossos crocantes, era como uma droga para seu organismo.
Já precisava de mais.
A figura do manto negro estendeu sua mão para o novo devoto de Deus.
— Eu vim para ajudá-lo. — Tinha a face estoica de um soldado experiente em guerras. — Pode me chamar de Lucius.